Consciência e smartphones


Costumo assistir às atividades acadêmicas sempre na turma do fundos. Isso me possibilita algum trânsito sem incomodar o restante da plateia. E, se a apresentação estiver pouco atraente, posso sair à francesa. De uns tempos para cá, essa estratégica localização tem me possibilitado o acesso privilegiado a um fenômeno muito interessante: invariavelmente, observo que a metade das cabeças da sala fica enfiada em seus smartphones.

Onde, antes, num passado não muito distante, essa mesma metade oscilava entre o dormir e o escutar, hoje, essa metade não dorme e duvido muito que escute. O smartphone é um inimigo do tédio existencial e proporciona uma festa constante e ambulante. De fato, nesse assunto não posso pregar no púlpito. Meu lugar mesmo é na fila do confessionário.

Com muitos filhos e muitos afazeres, prefiro o smartphone: consigo ler as mensagens, colocar em dia assuntos pendentes, acompanhar as notícias do meu clube de futebol, agendar ou cancelar compromissos, separar alguma receita nova para fazer no almoço de domingo e até prestar atenção no palestrante.

O problema surge quando, nessas atividades acadêmicas, a bateria acaba e não tenho uma reserva. Já pensei em pedir emprestado o aparelho do vizinho ou ir até a secretaria do evento e solicitar o acesso a um microcomputador. Sempre me faltou coragem. Ou cara de pau.

Então, nessas horas, resta apenas escutar. A voz do palestrante e, a partir de um certo momento, a de nossa consciência, porque ter no bolso um aparelho que assegura uma distração permanente é a melhor forma de fugir dos demônios que povoam nosso tédio existencial.

Nesses momentos entediantes, surgem aquelas incômodas perguntas para as quais não temos ou adiamos uma resposta, pelas justificativas mais esfarrapadas: aquele problema com o filho adolescente, aquela compra feita por impulso, aquela dívida que vai vencer logo, aquela briga familiar e assim por diante. Parece que tudo vem à tona e se briga com a mente para se pensar em outra coisa.

Não adianta. A consciência está, a todo tempo, servindo-nos de avaliador e guia. É fato que a ela nos referimos com frequência e, com efeito, podemos assentir em dois pontos. Em primeiro lugar, concordamos que a consciência é algo muito íntimo e sagrado. Dizemos que “não posso interferir nessa decisão e tenho que respeitar sua consciência” ou “não vou fazer isso, porque fere minha consciência”.

Em segundo lugar, temos exata noção de que as questões de consciência não são devaneios sobre teorias puras, mas sempre são juízos de valor sobre questões práticas, referentes ao nosso modo pessoal de atuar, de decidir ou de nos posicionarmos a favor ou contra algum assunto.

Dizemos que “isso foi ruim” ou “aquilo foi bacana”, mas nunca que “minha consciência me impede de aceitar o teorema de Pitágoras ou de aderir à pintura renascentista ao invés da barroca”. No fundo, quando falamos em consciência, sempre nos referimos ao nosso juizo sobre a qualidade moral de uma ação: foi boa ou má, foi correta ou incorreta.

Então, não posso reclamar da privação do smartphone. Graças a ele, ou melhor, ao vazio dele, posso perceber um problema entre eu e o mundo e olhar para a realidade sem fugas, a fim de agir em conformidade, dando espaço para minha consciência sair de si e tomar conta de mim.

No porvir, suspeito de que não será só a metade, mas a totalidade da audiência que estará mergulhada nas telas dos smartphones. Os palestrantes, privados de pensar e sem nada para dizer, seguirão o mesmo caminho. Será um encontro de silêncios, onde todos os presentes estarão ausentes. Salvo para aqueles presentes que, por descuido, esqueceram-se de carregar, antes, a bateria do smartphone: a consciência não se fará ausente. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 06/06/2018, Página A-2, Opinião.




Como viver?


Recentemente, numa disciplina para introduzir os alunos de pós-graduação no mundo da ética e realçar suas distinções ao longo da história do pensamento, fiz a eterna pergunta do famoso romance russo Crime e Castigo, uma das mais famosas obras literárias de Dostoievski: “Por que eu não deveria matar uma velha agiota a quem devo algum dinheiro?”.

Um sujeito temente a Deus responderia que não o faria para não ser condenado ao inferno, pois matar fere um mandamento do Decálogo. Um sujeito mais pragmático admitiria que ninguém gostaria de ser futilmente morto por outra pessoa e, por isso, não só se absteria de matá-la, mas tal conduta ainda deveria ser punida socialmente.

Um sujeito kantiano diria que matar alguém, nessas condições, não estaria de acordo com o postulado apriorístico segundo o qual o homem é um fim em si mesmo. Se a resposta viesse de algum homem grego do século V a. C., ele diria que não mataria, porque teria que viver consigo mesmo pelo resto de seus dias e, logo, não gostaria de estar sempre na companhia de um assassino.

A mesma resposta negativa com diferentes justificativas, mas todas elas sugerem que o foco esteja no caráter do devedor da velha agiota. “Como viver?” – é a pergunta de Sócrates que inaugura na Grécia do século V a investigação das questões humanas, feita na linha de uma ideia de moralidade pessoal e em tom reflexivo.

A questão socrática indica que o plano ético permeia as ações humanas, porque o homem é um ser livre e, sem liberdade, não há ética. A liberdade supõe a operação sobre alternativas contingentes e variáveis: diante das opções postas na mesa, avaliamos e escolhemos. A decisão supõe a possibilidade e a necessidade de se estimar as coisas e as ações humanas para o atendimento de nossas demandas.

Nesse momento em que estimamos que isso é bom e aquilo é ruim, então, adentramos na esfera do valor. Eis a sacada socrática. Na medida em que se escolhe, avalia-se para obter a consciência daquilo que é preferido. Ao se decidir entre duas ou mais opções, pondera-se, sob algum prisma, o que é melhor em relação à outra e, depois, opta-se por um caminho apenas.

Contudo, não há fórmulas matemáticas ou manuais acabados na órbita ética. É o campo do encontro do indivíduo com seus deveres prático-existenciais, donde ninguém está a salvo. A medida da ética é sempre uma conquista particular, uma experiência prudencial e uma atitude intransferível de cada um.

Podemos partilhar dificuldades, aconselharmo-nos, ler e instruir-nos. Sentir e aquilatar o que intuem nossa mente e nosso coração. Mas, ao final, qualquer que seja a resposta, o outro será o destinatário de nossa ação e, por isso, aquela medida é a forma mais apropriada de se exercer a responsabilidade moral, a irmã-siamesa da liberdade.

A ética permeia não só o agir pessoal, mas também o agir profissional dos indivíduos. No Direito, por exemplo, seu conhecimento não pode ser detidamente elaborado, cuidadosamente meditado e humanamente vivido sem que as questões de ética estejam presentes no ambiente de formação e de qualificação para o exercício das profissões jurídicas, porque os membros desse ramo devem substituir a violência e a arbitrariedade pela consecução do justo concreto das pessoas, ao mesmo tempo em que promovem a paz que toda sociedade necessita para seu desenvolvimento harmônico.

A ética também navega por outras dimensões profissionais de nossa realidade, como a política e a economia. Mas, hoje, ficaremos por aqui. Num mundo dividido entre o individualismo consumista e o coletivismo estrutural homogeneizante, convém resgatar a ética em suas duas principais dimensões: a liberdade individual e a reciprocidade ao outro.

Se nossa experiência oscila entre a dinâmica da virtude e do vício, do acerto e do desacerto, da luta e do sossego, do racional e do irracional, nesse resgate ético, é importante seguir o conselho aristotélico: não se estuda ética para se saber o que é a virtude, mas para se aprender a ser virtuoso.

Por isso, é acertada a pergunta “Como viver?” e não “O que é viver?”. Dessa maneira, teremos mais chance de saber que matar uma velha usurária não é a coisa certa a se fazer. Por quaisquer dos motivos anteriores. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/03/2018, Página A-2, Opinião.




Corrupção, crime e castigo


 

“Em primeiro lugar, vem a questão da confiança. Lá em casa, sempre digo para as minhas filhas que papai perdoa tudo, menos mentira”. Esse é um pequeno trecho da entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, em 2010, por Marcelo Odebrecht, preso recentemente na Operação Lava jato. O título é “Bota quem tem culpa na cadeia”. Em outra declaração, desta vez à Folha de São Paulo, o empresário novamente citou os filhos para se defender de ataques: “Não faria nenhum pedido que não pudesse ser feito de maneira transparente. Que mais tarde pudesse me deixar mal com meus filhos.” Odebrecht passou o dia dos pais preso, acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Após ler essas declarações, lembrei-me da obra magistral de Dostoievski, Crime e Castigo. Há uma cena em que o personagem principal, Raskolnikov, conta à Sônia os motivos do seu crime: “Por acaso eu matei a velhota? Foi a mim mesmo que eu matei. O diabo matou a velha”. Penso que o mesmo se aplica àqueles corruptos envolvidos em falcatruas: roubaram o Brasil? Não, roubaram a si mesmos.

Sei que muitos podem considerar esse pensamento equivocado e retrucar que “esses homens” não têm consciência moral, como se já tivessem roubado a bolsa da enfermeira logo após o parto. Mas acredito que um homem se torna bom ou mau com o tempo e suas escolhas. Claro que considero a capacidade humana de se enganar. Os corruptos podem pensar que a culpa não é deles, que é assim que as coisas funcionam, que o mundo é podre, etc. Esses argumentos têm certa razão, por isso o seu poder de iludir. Mas é impossível dizer isso a uma criança, ainda mais se for o próprio filho. Ele só entende a verdade, que seria: “Papai está cadeia porque fez algo muito errado”.

Não seria bom apenas para o país que os empreiteiros envolvidos nos recentes escândalos parassem de mentir e assumissem a culpa pelos seus atos, como se fossem Raskolnikovs de hoje. Platão, no livro Górgias, afirmou que o melhor para quem comete um delito é ser punido. Para o filósofo, feliz é quem não possui vícios e “em segundo lugar, vem a pessoa que ficou livre do vício.”

Além da felicidade, Platão tinha em mente a vida eterna, assim como a personagem Sônia, de Crime e castigo. Por isso a necessidade de reparação. O autor de Górgias conta nessa obra uma fábula, na qual diz acreditar, pois a tinha como “pura verdade”: “No tempo de Cronos, havia uma lei, a saber: que o homem que houvesse passado a vida com justiça e santidade, depois de morto iria para a Ilha dos Bem-aventurados. Quem tivesse vivido impiamente e sem justiça, iria para o cárcere da punição e da pena, a que dão o nome de tártaro.”

No dia primeiro de setembro, Marcelo Odebrecht, em depoimento à CPI da Petrobras, disse ser moralmente contra a delação premiada. Afirmou não ser dedo-duro. Além de apelar à moral, novamente – e já é a terceira entrevista dele que, acuado, cita a família – faz menção às filhas. Considerou que, quando havia uma briga em sua casa, talvez brigasse mais com que dedurou do que com quem provocou o conflito.

Não duvido de que o empreiteiro ame as filhas. As citações recorrentes a elas é uma prova. O que chama a atenção é não perceber o quanto seria importante, em primeiro lugar para ele, a verdade. Em segundo lugar, para as suas tão amadas filhas. Os fatos são sujos? Por que não limpar-se através de uma confissão pública que iria também ser extremamente útil para o país? Sei.
Há muito mais coisa nesse mundo corrupto além do que sonha a minha vã inocência.

Mesmo que os acusados jamais confessem suas culpas, é importante para todos que os culpados sejam punidos. O culto à impunidade já fez muitas vítimas. E as primeiras são os próprios criminosos.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE-Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular​, edição 14/9/2015, Página A-2.