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Um ousado diagnóstico de nosso tempo (resenha de “Totalitarianism, Globalization, Colonialism”)

História | 24/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Totalitarianism-Redner

Quando puxamos do fundo do baú da memória nossa primeira aula de história no colégio, invariavelmente recordamos a justificativa fornecida pelo professor para nos motivar a estudar vidas e eventos que transcorreram há tanto tempo: para compreendermos o mundo em que vivemos e para onde ele caminha, é necessário conhecermos o passado da humanidade. Não raramente esse chamado à curiosidade ecoa de maneira profunda em nossas almas, motivando-nos até mesmo a comprometer nosso futuro financeiro cursando uma graduação em história ou filosofia.

Mas quando, cheios de entusiasmo, iniciamos nossos estudos superiores, fatalmente vem o balde de água fria, sob a forma de uma solene advertência por parte de nossos mestres universitários: hoje em dia os estudos históricos devem se limitar à reconstituição minuciosa de eventos pontuais. É passado o tempo das grandes sínteses históricas e quem nelas se aventurar corre o risco de fazer má futurologia ou, pior, filosofia da história (atividades não sérias ou cientificamente superadas). Mas serão mesmo estas as únicas opções? Poderá a história, aliada com a filosofia, fornecer subsídios para a compreensão de nosso tempo sem renunciar à seriedade e ao rigor metodológico? É a este desafio que o filósofo e historiador australiano Harry Redner busca responder, levantando corajosamente uma discussão a respeito de um conceito banido por boa parte dos estudos acadêmicos atuais: o de civilização.

Em obra publicada neste ano de 2014, o autor argumenta que presenciamos um processo de destruição da civilização, mas, diferentemente do que sustenta o renomado historiador Eric Hobsbawm, tal processo não culmina num retorno à barbárie[1], mas naquilo que podemos chamar de era “pós-civilizacional”. Enquanto a destruição que conduz ao barbarismo atinge todos os elementos que possibilitam a vida civilizada, incluindo os de ordem material, o estágio pós-civilizacional é marcado por um desenvolvimento acentuado da ciência, da tecnologia, das formas de administração burocrático-legais, da riqueza material (pelo menos nos grandes centros da Europa e dos Estados Unidos) e da alfabetização. Em contrapartida, aquilo que está na raiz da civilização é paulatinamente varrido do mapa, a saber, os padrões éticos de convivência social e a alta cultura, corporificada na literatura e nas artes em geral. Dito de maneira breve: o ensino técnico prospera, mas as profundezas da razão que o tornaram possível definham.

Para o autor, a ideia de civilização está baseada no desenvolvimento da cultura literária que se desdobra a partir de um grupo de obras seminais. No caso do ocidente, as de Platão e Aristóteles, a Bíblia e o aporte do direito romano, que criaram a possibilidade do desdobramento daquilo que podemos chamar de forças da modernidade: o capitalismo industrial, o estado racional-legal e a ciência/tecnologia.

Retomando e desenvolvendo uma tese sustentada por Max Weber, Redner afirma que o desdobramento das forças da modernidade radica na própria natureza humana, uma vez que as perguntas que a elas deram origem foram colocadas por todas as grandes civilizações, mas, por razões de contingência histórica, floresceram de maneira predominante apenas na civilização ocidental, uma vez que as grandes civilizações do oriente (notadamente China, Índia e Islã) entraram em colapso.

Contudo, ao contrário da tese hegeliana, segundo a qual o desenvolvimento da razão implica necessariamente na ampliação da liberdade, Redner procura mostrar que o desabrochar das forças da modernidade do ocidente ocorreu de modo bastante ambíguo, com o surgimento de três fenômenos cujos desdobramentos ameaçam a própria existência da civilização: o colonialismo, o totalitarismo e a globalização.

Dessas três forças, a mais destrutiva foi o totalitarismo, cujas formas principais elencadas por Redner são o bolchevismo (que está na origem de todas as demais adaptações nacionais do marxismo) e o antissemitismo (que lançou as bases para o nazismo alemão). Uma vez que a história da humanidade apresenta um extenso rol de regimes ditatoriais, repressores e assassinos, a nota distintiva do totalitarismo do século XX deve ser procurada na sua ligação com uma ideologia totalitária: faz sentido falar sobre a ideologia nazista, mas não falar sobre a ideologia de Gengis Khan. O legado do totalitarismo foi o maior morticínio já perpetrado na história da humanidade, mas, sobretudo, a destruição de padrões morais de comportamento humano.

Privilegiando definições histórico-genéticas, isto é, procurando a origem e o desenvolvimento histórico dos fenômenos e não definições essencialistas, o autor identifica os vários componentes que deram origem ao bolchevismo (os movimentos conspiratórios russos aliados a uma instrumentalização oportunista do marxismo operada por Lênin) e ao nazismo (a ideologia arianista, o darwinismo social, a teoria da guerra de Clausewitz). Também recebe destaque a ligação originária entre as duas ideologias, materializada na obra de Georges Sorel, que interpretou as lutas sociais em termos de mitologia, despertando reações de aprovação tanto de Lênin quanto de Mussolini.

Como contribuição original para o estudo do totalitarismo, o autor classifica os regimes totalitários em tipos ideais, que podem se suceder de modo cronológico: em primeiro lugar, implanta-se um regime proto-totalitarista, marcado pela mobilização geral da população, pela imposição da ideologia através da força e pela consolidação de um partido no poder. Foi o caso da Rússia desde a tomada do poder pelos bolcheviques em 1917 até o início da coletivização forçada das terras por Stalin em 1929.

Em segundo lugar, surge o totalitarismo propriamente dito, um regime de terror irrestrito, onde a repressão atinge potencialmente toda a população e a ideologia se instaura não como uma meta futura, mas como uma realidade presente (foi o caso da URSS até a morte de Stalin e da China, de 1949 até a morte de Mao Tse-Tung, em 1976). Após a morte do líder, seu partido procura se manter no poder afrouxando – mas não banindo – a repressão e implantando uma liderança colegiada, instaurando o chamado subtotalitarismo. Por fim, quando o partido único é apeado do poder, passa-se a uma fase pós-totalitarista  (fato que só ocorreu com o fim da URSS, mas não na China, que permanece subtotalitária).

Colonialismo e globalização são, por assim dizer, irmãos siameses, cirurgicamente separados quando a tocha da civilização ocidental se transfere da Europa para os EUA, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Seu princípio é o mesmo: a expansão do capitalismo ocidental e a conseqüente modernização do globo terrestre em bases européias (e depois estadunidenses), operada sobre os destroços das antigas civilizações chinesa, indiana e islâmica. Fugindo ao simplismo de imputar culpas pela destruição destas últimas, Redner busca analisar o fenômeno com isenção e chega à seguinte conclusão: o chamado despotismo oriental (conceito trabalhado de maneiras distintas por Marx, Weber e Wittfogel) resultou historicamente em becos sem saída: quando os ocidentais buscaram (brutalmente e de maneira moralmente injustificável em muitos casos) implantar a europeização, os antigos impérios persa, otomano, Mugal e Qing apresentavam sinais claros de decrepitude. O autor dedica longas páginas ao estudo de cada um desses casos.

Com o retraimento da civilização europeia, parte do antigo continente acolheu a ocupação americana de braços abertos e adotou a cultura de massas e o individualismo empreendedor que se sobressaíam nos Estados Unidos. O resultado foi o crescimento da prosperidade material, mas uma redução significativa do nível cultural. De outra parte, o lado oriental da Europa e os chamados países do terceiro mundo, tanto a América Latina quanto os territórios descolonizados, experimentaram a modernização em maior ou menor medida sob a influência da União Soviética: o socialismo, travestido de terceiromundismo, incentivou um agigantamento do Estado e da planificação, com conseqüências materiais e culturais bastante perniciosas.

O autor conclui sua obra com um prognóstico não otimista, mas aponta uma tarefa fundamental que hoje bate às portas da humanidade: a preservação daquilo que restou da civilização em um mundo globalizado. Para que isso seja possível, é mister sobretudo preservar as línguas nacionais das ingerências do vocabulário técnico e científico, que empobrece significados e torna boa parte da experiência humana indizível. Em segundo lugar, é preciso preservar e desenvolver as expressões artísticas nacionais. Não devemos, contudo,  nutrir o sonho de que a modernidade possa ser desfeita, com o retorno a formas pré-modernas de convivência, ou que ela possa ser reformada em termos não ocidentais (nesse ponto, Redner sustenta uma interessante polêmica contra Samuel Hutington e sua tese do conflito de civilizações), mas é preciso salientar que a manutenção daquilo que nos resta da civilização não pode ser feita de outra forma que não a de um empreendimento pacífico, com a participação de todos os povos do mundo.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é advogado, professor de filosofia e gestor do Núcleo de História do IFE Campinas.

LIVRO DA RESENHA: REDNER, Harry. Totalitarianism, Globalization, Colonialism: The Destruction of Civilization since 1914. Londres e New Brunswick, 2014.

NOTAS

[1] Cf. HOBSBAWM, Eric. Barbárie: Manual do Usuário. In. Sobre a História. São Paulo; Companhia das Letras, 1998.