Gran Torino: A liderança de si próprio (por Pablo González Blasco)


(Gran Torino) . Diretor: Clint Eastwood. Clint Eastwood, Bee Vang, Ahney Her, Christopher Carley, John Carroll Lynch. 116 min. 2008.

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“Um filme onde Clint Eastwood, o machão de ‘Dirty Harry’ e ‘Magnum 44’, acerta as contas com ele mesmo”. Esse era o tom das manchetes quando o filme entrou em cartaz. Mais uma vez, porém, fui obrigado a discordar das críticas repletas de lugares-comuns, prontas para serem consumidas por um público em que a superficialidade reina soberana, e que por isso mesmo engole qualquer comentário simplista.

A verdade, no entanto, é outra. Há tempos Clint Eastwood vem arrumando as próprias contas e nos surpreendendo com filmes ótimos, de sensibilidade delicada, tais como “Cartas de Iwo Jima”, “Sobre Meninos e Lobos”, “A Troca”, dentre outros. Longe ficou aquela figura do policial durão, do sexista – como se diz hoje, em rasgado anglicismo – para surgir o homem maduro, o cavalheiro, que sintoniza com o universo feminino e não teme transparecer os próprios sentimentos.

É bem verdade que esse percurso de ajuste de contas teve suas idas e vindas, sobretudo quando Clint entra em cena. É o egoísmo que se disfarça de compaixão em “Menina de Ouro”, incapaz de suportar o sofrimento, não tanto o alheio quanto o próprio. É o romance impossível que transpassa e marca para sempre a vida da mulher rural em “As pontes de Madison”, onde o diretor-ator demonstra notável conhecimento dos sentimentos femininos; verdadeiro ensaio que busca contestar o provérbio “ninguém entende as mulheres”: “Um momento” – parece dizer o fotógrafo das pontes de Madison – “eu as entendo!”. E, para demonstrá-lo, conduz Meryl Streep a construir a inesquecível “Francesca”. São tentativas vitais de quem aposentou as armas do justiceiro implacável – do “eu-resolvo-tudo” –, e quer olhar o interior do ser humano, com respeito, buscgran-torino_1ando apenas aprender. Talvez seja por isso que Eastwood demore a voltar em cena e fique atrás das câmaras, dirigindo – quer dizer, tentando entender os bastidores da alma humana. Agora, porém, entra novamente em ação, apesar de avisar que será seu último filme como ator. Eu tenho cá minhas dúvidas…

Gran Torino é um filme maduro em todos os sentidos.  Maduro na temática – embora a abordagem da questão dos imigrantes pareça-me irrelevante para a densidade da fita. Maduro, sobretudo, na construção da personagem que, convenhamos, é ele mesmo, o próprio Clint. Se tivesse que dar um subtítulo ao filme colocaria algo assim como “sem idade para as mudanças”. Ou, de forma mais rebuscada, atrever-me-ia a imitar o estilo de Cervantes, em Dom Quixote, escrevendo: “Onde se relata como um homem pode mudar aos 78 anos”. Esse é o núcleo do filme: a possibilidade de mudar, fazer questão de tirar o melhor de si próprio, com uma violência que é um transbordar de mansidão. Melhorar “nem que seja a porrete”, como dizia Augusto Matraga, do nosso Guimarães Rosa.
O filme começa lento, com um enterro que posiciona Walt Kowalski em seu novo papel de viúvo. Demora a decolar, parecendo até que não há argumento. Uma espera de quem nada espera, porque nada lhe sobrou. É o momento de reflexão sobre a rotina que preside os dias, a vida. O velho viveu a vida recolhendo insatisfações, e agora sua motivação definha. Lembrei dos comentários de um amigo, médico geriatra, sobre os seus pacientes: “A vida biológica está no fim” –dizia ele – “mas a biografia é rica, muito rica. É preciso encontrar algo que ative a biografia para substituir a biologia”. E Walt encontra nos vizinhos orientais a faísca que dispara o arco voltaico, a vontade de viver e, com ela, a necessidade de mudar.

Lembranças entranháveis foram se assomando à minha memória durante as duas horas de filme. Lembrei-me de um grande amigo já falecido: “Minha vida pode se dividir em duas partes: antes e depois de conhecer vocês, este grupo de amigos formidáveis – costumava dizer ele, quando nos reuníamos periodicamente. Ele, que à época tinhagran-torino_2 70 anos, ilustrava esta mudança com uma recordação da sua vida: “Quando tinha 40 anos, um amigo me disse que tomasse cuidado para não brigar com as pessoas, porque nessa idade era difícil fazer novos amigos. Ele estava tremendamente equivocado”. Mário – assim se chamava – veio a falecer com 85 anos, rodeado de amigos, velhos e novos. Para mim, sempre foi a prova cabal de que não existe idade para mudar. Assisti ao esforço de um homem que conseguiu dominar um temperamento forte, superar limitações que arrastava desde a adolescência, entusiasmar-se como uma criança com projetos de vida.

Essas lições de vida ganhavam agora nova perspectiva ao ver Clint Eastwood às voltas com as mudanças. Mário também tinha um carro antigo, que havia comprado do próprio João Goulart (nunca soube se era verdade, provavelmente o era), e surpreendeu-me quando, muitos anos depois, roubaram-lhe uma perua Chevrolet modelo Caravan 1978, que deixara estacionada à frente da casa de outro amigo comum. Ficou sereno, sorridente. Descobrimos que o carro não tinha seguro, e perguntamos o motivo de tamanha tranqüilidade: “Eu tenho dinheiro para comprar outra. Tenho mais é que agradecer a Deus. É o mesmo que vocês quando dizem que perderam dinheiro na bolsa. Felizes vocês que tinham dinheiro para aplicar”. Orgulhava-se de nunca ter comprado nada a prazo, e de ter honrado todos os seus compromissos antecipadamente. Andava sem relógio porque sempre chegava antes da hora. Foi um privilégio ser amigo desse homem que, certamente, teria gostado de Gran Torino.

O Cinema evoca lembranças, faz-nos pensar. E quando nos deparamos com um filme maduro como este, a reflexão acompanha cada um dos fotogramas. Na verdade, quando se faz cinema nesta idade – na idade do Clint e do Mário – não se perde tempo com superficialidades. Já se viveu muito; viu-se praticamente tudo; já houve oportunidade de se lidar com as grandezas e as misérias humanas. Por isso, parte-se diretamente para o que interessa; atinge-se o miolo do ser humano, sem rodeios, direto ao ponto. Dizia Victor Frankl – o psiquiatra austríaco que sobreviveu à Auschwitz e lá confirmou sua teoria sobre a necessidade de se ter sentido para a vida para se viver bem – que seria bom termos duas vidas: uma para tentar acertar e outra para ser vivida, de fato, passando a limpo a vida, sem erros. Nessas idades tem-se a certeza de que a vida é uma só, que está passando, e não há tempo a desperdiçar. A reflexão assume o papel de protagonista: do ator, do diretor e do espectador, todos em perfeita sintonia.

A reflexão não é hábito em alta nestas épocas de muita comunicação, de rapidez, de vida “on line”, e até de “second life”. O virtual desloca o real e confunde o homem que se encontra perdido entre os dois mundos, náufrago da sua própria indigência. Mesmo assim, o Cinema impacta, tem pegada. Mas quando falta o hábito de refletir, o impacto dura pouco. Surgem lembranças, emoções, até alguma saudade pontual, um par de lágrimas, mas tudo fica por isso mesmo. São como fotografias instantâneas – aquelas polaróides horrorosas – que se desbotavam com o tempo. Hoje, a técnica da fotografia progrediu muito e as facilidades estão ao alcance de qualquer bolso. Câmaras, celulares, palms e blackberrys registram tudo, de todos, a todo o momento. Pode-se até antever que se saiu bem na foto; e, na dúvida, repete-se a tomada. Mas a reflexão continua ausente. Por isso, tenta-se compensar a carência daquelas outras imagens que se plasmam no coração e se incorporam à própria biografia, com fotografias disparadas em profusão.
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Com freqüência, tenho a possibilidade de comprovar tudo isso quando me convidam para ministrar palestras sobre a educação das emoções, cenário onde utilizo habitualmente cenas de filmes. Projeto imagens, faço comentários simultâneos, facilito a reflexão. A opinião do público costuma ser sempre a mesma: “Eu já tinha visto esses filmes, mas não com esses olhos. Vou ter de ver de novo”. Na verdade, os olhos são os mesmos, mas a reflexão sobre o que se contemplou é que dá o tom de novidade. E acontece o que sempre ocorre quando nos debruçamos em atitude reflexiva sobre a vida, ou sobre os filmes que, afinal, são espelho da vida de todos nós: abre-se um panorama novo, sente-se vertigem diante das possibilidades que a vida – e o celulóide – nos oferecem. Conhecer é lembrar com afeto, re-cor-dar, extrair do coração (cor, cordis, em latim) as imagens que lá estão ocultas, colocar outras novas, dialogar com elas sem medo. O homem – dizia o filósofo – é um ser que esquece e, por isso, necessita recordar. E como esquece o essencial – não os detalhes – tem de lembrar quem ele é, o que pretende, o que busca na vida. O Cinema nos ajuda a recordar estes aspectos essenciais, quando há disposição para refletir.

Sim, é possível mudar, transformar-se, tornar-se melhor, buscar caminhos novos para a vida, sem aceitar a idade como desculpa para o conformismo. Nisto consiste a liderança de si próprio, que é a primeira e a mais importante das lideranças. “O homem paciente” – lê-se no livro dos Provérbios – “vale mais do que o valente; e o que domina o seu ânimo, mais do que o conquistador de cidades”. Esta liderança, agregada à experiência de vida, é exemplo contundente para todos – jovens e velhos –exemplo que nos chega temperado pela compreensão de quem viveu muito, e por um carinho doce, aconchegante. “No entardecer da vida” – dizia o místico João da Cruz – “seremos julgados no amor”. O que realmente conta no final da vida é a capacidade de olhar as coisas com ternura, com amor. Olhar para si próprio, fazer questão de melhorar a cada dia e contagiar os outros com essa vontade de mudar. A idade nada tem a ver com a aposentadoria da alma.

“O difícil não é lidar com o que você fez porque foi obrigado, mas com o que você fez e ninguém lhe obrigou a fazer”. Bela declaração do velho Clint-Kowalski, que transpira a coragem de quem assume os próprios erros. Jogar as culpas no “sistema” – na família, no emprego, no chefe, na sociedade, no governo – é o recurso dos medíocres, alérgicos a qualquer tipo de responsabilidade. Algo que hoje é lugar-comum. Saber matar a bola no próprio peito e sair jogando implica liderar a si próprio. Alguém me disse que Clint continua querendo resolver as coisas sozinho, bancar o herói, embora tenha deixado distante a figura do matador. Respondi que há coisas na vida que tem de ser resolvidas individualmente, de nada servindo apelar para o “sistema”. Não entender isso é o que transforma reuniões e trabalhos-em-grupo em verdadeiros fracassos. Só é possível trabalhar em grupo quando cada um sabe arcar, a priori, com a própria responsabilidade. Trabalho em equipe não é diluição de responsabilidades, uma espécie de variante do inconsciente coletivo em versão indolente. Saber trabalhar em equipe é ter a humildade de ouvir, de querer entender os outros, de assumir para valer as próprias responsabilidades. É o binômio humildade-honestidade, indispensável para arcarmos com as responsabilidades que nos cabem, mesmo que os outros não nos cobrem ou sequer consigam visualizá-las.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2009/05/19/a-lideranca-de-si-proprio/>




As Neves do Kilimandjaro: Humanismo em Tempos de Crise (por Pablo González)


(Les Neiges du Kilimandjaro). 2011. Diretor: Robert Guédiguian.   Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Marilyne Canto, 104 minutos. 

     Foi um amigo que mora no Canadá quem, há meses, recomendou-me este filme. “Dá uma olhada. Eu o intitularia ‘humanismo em tempo de crise’. Acho que gostarás”. Segui o conselho, vi o filme. Gostei. Busquei o tal humanismo na crise. Penso que até o encontrei. Mas engavetei os possíveis comentários; as pendências eram muitas no último trimestre do ano. Depois vejo isso, pensei.

Entre as pendências, figuravam um par de conferências num congresso que aconteceu numa cidade onde moram outros amigos. Um dos dias passei por lá para jantar. No final me anunciaram: vamos ver um filme, queres ficar? Naturalmente, o filme era este mesmo. Estas Neves me perseguem – pensei logo de cara. Tracei o plano: assistir a largada e depois pegar um taxi de volta para o meu hotel. Mas não consegui sair. O humanismo em tempo de crise martelava minha memória. Fiquei até o final e voltei de carona. Os comentários –no fundo da imaginária gaveta- revolveram-se, mas as pendências ainda pesavam. Tranquei a gaveta com chave. Mais para frente, agora não tenho tempo.

O golpe de misericórdia foi há duas semanas, quando topei com outro amigo que não via há tempo. “Estranhou-me não encontrar nenhum comentário teu sobre ‘As Neves do Kilimandjaro. Você não viu o filme ainda?”. As pendências continuam em alta, mas a vida é assim mesmo. Não se pode esperar ter tempo para atender os outros, as solicitudes que nos dirigem. Não é que a vida de ninguém dependa de estas linhas, simples reflexões sobre um filme, mas vale a lição simbólica. Quem espera as condições ótimas de temperatura e pressão – leia-se tempo na agenda, esquema bem previsto – para se ocupar do que o próximo precisa, provavelmente incorrerá em omissões contínuas, isso sim, todas muito bem justificadas.

Esse deve ser o tal humanismo em momentos de crise –crise de agenda, de tempo sempre escasso, naturalmente de dinheiro- que se caracteriza pela flexibilidade, pela improvisação elástica que, como o coração de uma mãe, sabe atender com carinho todas as demandas. Sem dar-se importância, sem fazer barulho. Certa vez me fizeram notar que a característica da mãe de “Os Incríveis” era justamente a elasticidade, porque chega a tudo. A gênese deste comentário encerra em si o mais importante. Lição aprendida; nem por isso fácil de colocar em prática de modo habitual.

O cinema francês destes últimos tempos tem nos oferecido filmes simples, de temática bem centrada. Singeleza de forma –e de orçamento- e filosofia como guarnição, servida em diálogos que enriquecem. Abordando um problema de cada vez, um agradável fatorial da complexidade que a vida apresenta, para que ninguém desanime. Vamos aos poucos, uma coisa hoje, outra amanhã. Sem golpes espetaculares, nem efeitos especiais, nem surpresas, ou sustos, ou suspense. Tudo muito claro, apoiado em atores de imensa categoria, pois atuam como na vida mesma. Teatro filmado, a vida filmada.

     O humanismo na crise não é contundente nem heroico. É arroz com feijão, fazer o que é possível – que, por sinal, quase ninguém faz, porque na crise, colocar mais água no feijão implica no risco de ficar com fome. É cuidar dos outros, são os detalhes que se embrulham num pudor que nos impede comentar o que fazemos de bom. Com simplicidade, sem dar-se importância.

Mas essa naturalidade em fazer o bem – grande recado do filme-, não é atitude que se conquiste sem esforço. O virtuoso toca o violino com aparente facilidade porque investiu muitas horas ensaiando. As virtudes da convivência são hábitos esculpidos com teimosa repetição de atos, numa ginástica permanente por vencer a gravidade –tremenda, constante, densa- do próprio ego que atrai com toneladas de força.

E aqui está o grande segredo dessa ginástica do caráter: somente se pode progredir, ganhar forma física e, consequentemente, fazer a diferença na vida dos outros quando se enfrentam as próprias limitações e defeitos. Aqueles que todos tão bem conhecem, embora nós sejamos os últimos a reconhecê-los. Não se pode espalhar o bem, se não se admitem as imperfeições que levamos dentro, primeiro passo para enfrenta-las. Ninguém dá o que não tem. Tema difícil este, porque a consciência de culpa –responsabilidade consciente das más ações- é tema banido na nossa sociedade pós-moderna.

Enquanto desengaveta as reflexões que o filme me tinha provocado, caiu em minhas mãos um livro que recolhe umas conferências que o Professor Ratzinger pronunciou em 1981, publicadas posteriormente com o título “Criação e Pecado”. Na última dessas quatro conferências Ratzinger explica de modo claro o tema que nos ocupa. A culpa é um tema silenciado no nosso tempo; a Sociologia, o Direito, a Psicologia, e mesmo a Religião tentam se arrumar sem inclui-la nas variantes da equação antropológica e, naturalmente, se perde a verdadeira perspectiva. De fato, é difícil ouvir alguém dizer que é responsável ou tem culpa de alguma coisa. Basta fazer a experiência e contar, com os dedos de uma mão, as vezes que se pode ouvir semelhante confissão. Provavelmente sobrarão dedos se nos dedicamos a essa pesquisa durante um mês, por exemplo.

Mesmo encostada, a noção de culpa e maldade faz sua aparição diariamente. Assim lemos na conferência em questão: “Mesmo esquecida, continua existindo e fica suficientemente demonstrado com a agressividade disposta a saltar a qualquer momento, como experimentamos na nossa sociedade; e essa disposição para insultar o outro, considerando-o culpável da nossa própria desgraça; e estigmatizamos a sociedade tentando mudar o mundo através da violência”. Uma descrição que encaixa como uma luva no argumento do filme. A culpa existe, e sempre é dos outros. Trata-se de encontrar o culpado que, certamente, nunca serei eu.

     Os conceitos de bem e mal –seguimos o raciocínio do Professor Ratzinger- são substituídos pelas noções de comportamento desviado e normal, o que não garante que amanhã o desvio não seja incluído na normalidade, pois a moral passa a ser assunto quantitativo, estatístico, variável. O homem se faz norma para ele mesmo e abomina de qualquer medida objetiva externa, porque a enxerga como uma ameaça para a liberdade. Entendem-se bem as palavras de Simone Weil: “O conhecimento do bem somente se tem enquanto se pratica. Quem faz o mal, não o reconhece, porque o mal foge da luz”. O bem se reconhece somente quando se faz. Não existe um conhecimento teórico, isento. Para conhecer o bem é preciso envolver-se, comprometer-se, exercitar-se nele.

Por isso, apenas quem enfrenta seus defeitos –que é assumir responsabilidade e intimar sem medo com as culpas que cada um carrega- é capaz de militar no partido dos que espalham o bem. É a própria limitação a que leva a entender a necessidade de um motivo superior que nos impulsione a promover o bem, a doar-nos aos demais. Precisamos sentir-nos compreendidos, perdoados, para poder compreender e perdoar. Sem transcendência, as tentativas de fazer o bem acabam se extinguindo em espasmos filantrópicos que nunca perduram. Afinal, por que vou me embarcar nessa empreitada se ninguém me recompensa? E eu, como é que fico? Quem se preocupa comigo?

E as Neves de Kilimandjaro, onde estão? Foi a pergunta que me fiz quando vi o filme. O argumento arranca de um romance de Vitor Hugo, que também não tem neves nem montanhas africanas. Estes elementos são por conta de uma canção que fez sucesso nos anos 60 e que vale a pena escutar enquanto refletimos no recado deste pequeno-grande filme que nos fala de solidariedade comprometida.

 

Fala do manto branco que as neves tenderão para podermos para dormir em paz. Com serenidade, com a consciência tranquila. Fazer o bem, semear o humanismo em tempo de crises, não é atividade de voluntariado, mas algo que toma conta da própria vida. Um compromisso inserido na alma que busca, mediante a ginástica por ser melhor – ginástica,askesis em grego- fazer melhor o mundo, e a diferença na vida dos outros.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2012/12/22/as-neves-do-kilimandjaro-humanismo-em-tempos-de-crise/>




Uma Boa Mentira: Virtudes humanas em estado puro. Sem vírgulas. (por Pablo González)


The Good Lie. USA. (2014). Diretor: Philippe Falardeau.  Reese Witherspoon, Corey Stoll, Sarah Baker, Sope Aluko, Sharon Conley, Mike Pniewski, Arnold Oceng, Clifton Guterman, Ger Duany, Emmanuel Jal. 110 min. 

Uma boa mentira - capaUma lufada de ar refrescante. Imprevista. Tinha este filme nos meus arquivos, vários meses esperando. Algo tinha lido em alguma crítica: ativista americana que ajuda refugiados sudaneses. Mais do mesmo, pensei. E deixei esperando. Um dia –sempre é desse jeito- , sem pensa-lo muito (aliás, parece-me que tinha previsto assistir outro filme), coloquei-o na tela do computador, talvez até por engano. E deixei correr. Vejo jovens africanos embarcando de um campo de refugiados para América. E a seguir, em flashback, a explicação conveniente.

Imediatamente, conforme as lembranças dos protagonistas desfilam na tela, a minha memória evoca outras paralelas, vindas de um livro que li há alguns meses. Correr para viver. A história de um refugiado sudanês, que acaba se transformando em atleta olímpico em USA. O livro é sua história, e o débito que com justiça e com elegância paga a todos os que lhe ajudaram. Uma boa mentira - 7Aqui os protagonistas são outros, não parece que tenham aptidões especiais como o corredor do livro, mas evidentemente o marco histórico é o mesmo. Os meninos perdidos do Sudão, órfãos durante a guerra civil de 1983 que assolou o pais e emigraram para os campos de refugiados do Quênia. No final dos anos 90 começa o êxodo facilitado pelos Estados Unidos, que através de organizações variadas, acolhe os órfãos sudaneses. Até o 11 de Setembro, onde o processo se interrompe, por motivos de segurança. O filme –como o livro- conta uma história real, e os atores são realmente emigrados sudaneses, ou filhos daqueles. Argumento simples, atitudes humanitárias, enfim, um capítulo da história humana que carrega lamentos pelas barbaridades perpetradas e louvores para os que tentaram minimizá-las.

Uma boa mentira - 1Mas a força do filme –pelo menos o que me impactou- não esta ai, mas nas entrelinhas. São as atitudes dos africanos as que esbanjam virtudes. O tempo todo. Durante a massacre étnica, nos tempos que passam no campo de refugiados e, com destaque, na sua chegada a USA. Até parece que são pessoas de outro planeta pelo modo, simples, franco, direto, como se comportam. Lealdade, afeto, generosidade distribuída sem medida. Elogios aos policiais que mantém a autoridade, porque no entender deles –na cultura africana- são pessoas que estão ao serviço da sociedade. Compartilhar com quem não tem, porque é assim que eles foram criados, não concebem outro modo de viver. Integridade a prova de bomba, simplicidade que lhes permite apreciar o que para outros passa desapercebido. E uma amizade temperada pelo sentimento de lealdade, de honra, que ultrapassa as categorias vigentes. A boa mentira, que dá titulo ao filme, é importada de um romance de Mark Twain, onde um dos protagonistas se faz passar por outro, para ajudá-lo, arcando com o débito que o beneficiado tinha em conta. Gente de outro planeta? Ou somos nós os que mudamos e arrastamos nessa mudança saturada de mentira, corrupção e deslealdade os cacos deste mundo nosso?

Uma boa mentira - 2Virtudes em estado puro. Esse foi o resumo que cristalizou na minha mente, enquanto desfilavam na tela os créditos finais. E ao tempo, lembrei de uma conversa singular, acontecida numa das muitas reuniões humanistas nas que ando envolvido. Recordo-a como a reunião das vírgulas. Em teoria, todos concordamos que se deve viver a honestidade –ou a sinceridade, a lealdade, e por ai afora- , mas há situações onde…..O “mas”, golpe adversativo, costuma ser precedido por uma vírgula. A vírgula, que fornece um ponto de inflexão à virtude, é o começo do descaminho. Sim, tudo isto é muito importante, mas….. Ai está a vírgula. Como esclarecendo: no meu caso, nesta situação, em tais circunstâncias, …..E, com a vírgula segue-se a desculpa para eximir-se da atitude virtuosa.

Uma boa mentira - 3Na vírgula damos entrada aos exemplos –maus exemplos, entende-se- que outros dão e que parecem desculpar-nos das nossas obrigações. Na vírgula se desbota a virtude, perde cor e atrativo. E como nunca foi mais atual aquele ditado de que quem não vive como pensa, acaba pensando como vive, construímos toda uma antropologia da vírgula, que se veste de questões culturais, modernas –ou pós-modernas- desculpas eruditas para fugir do cumprimento do dever. Integridade? Compromisso? Lealdade? Sim, de acordo, mas….E lá vem a vírgula, confortante e salvadora. Impossível não recordar aquele fato que contam ocorreu com Alexandre Dumas, o filho. Chegou a uma reunião social e uma das damas espetou-lhe: “Deve ser muito difícil para o senhor ter um pai com costumes tão licenciosos como o pai do senhor”. Parece que a fama de bon vivant do Dumas pai era pública. Mas o interpelado respondeu-lhe com imensa calma: “Nada disso, minha senhora. Se ele não me serve como exemplo, funciona bem como desculpa”.

Uma boa mentira - 4A reunião das virgulas ficou famosa. Lembro que alguns dias depois recebi um e-mail de um dos participantes, comentando um assunto profissional –por certo, de modo muito competente- e desculpando-se por não ter feito ainda melhor. “Sei que você não gosta de vírgulas, afirmava no final”. Não é uma questão de gosto, mas de coerência. Quando se permite que as virgulas tomem conta, as modulações e orações subordinadas acabam apagando a sentença principal.

Uma boa mentira - 5Os atores deste filme não são gente de outro planeta. São humanos, como nos, mas sem vírgulas. E ai minha imaginação voo para outro livro que também li recentemente e que comentei neste espaço, o Caçador de Pipas. Recomendo a leitura do comentário –eu mesmo acabo de reler o que escrevi- porque é um complemento ao tema das vírgulas. Atrai-nos o exótico, emociona-nos a amizade, a lealdade destes seres longínquos –do Sudão ou do Paquistão- e até nos arranca lágrimas. Mas os deixamos lá, em outro planeta, porque permitir a entrada no nosso provocaria uma enxurrada de reflexões, e vai ver que nos pega de calça curta.

Uma boa mentira - 6A maldita lealdade inabalável do protagonista do Caçador de Pipas, a amizade íntegra do sudanês da Boa Mentira, são uma bofetada para a nossa sociedade medíocre. É sabido o pouco espaço que as noticias dos países africanos ou asiáticos que estão no terceiro (ou quarto?) mundo, têm nos meios de comunicação. Dizem alguns que talvez porque não são relevantes para a economia e para os destinos do poderoso ocidente e de quem corta o bacalhau. Atrevo-me a pensar que há talvez outros motivos muito mais perigosos: vai ver que o confronto com essas vidas simples, diretas, repletas de virtudes em estado puro, sem vírgulas, nos incomodaria sobremaneira. Sim, uma bofetada; ou, pelo menos, uma luva que nos é jogada na cara, para enfrentar o duelo e resgatar uma vida digna, sem vírgulas, e tomar posse real do nosso planeta, em solidariedade de virtudes com quem tem tanto para nos ensinar.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/07/31/uma-boa-mentira-virtudes-humanas-em-estado-puro-sem-virgulas/#more-2417>




[FILME] “‘Gravidade’: Epopeia Feminina à Conquista do Espaço (interior)” (por Pablo González)


     Um belíssimo filme. Com peso, densidade, com a gravidade que parece faltar no cenário espacial. Dito isto, e para aumentar os créditos, vale comentar a seguir o processo como fui seduzido. Os filmes de ficção nunca foram a minha praia. Se a ficção é espacial, e as críticas recomendam ver em 3D, sei que posso esperar uma constelação de efeitos especiais que tentam compensar a falta de conteúdo humano, que é a verdadeira isca com a que um filme consegue me fisgar. Resisti-me à aventura espacial de Clooney e Bullock, fui encontrando desculpas –afinal há muito filme na lista de espera para ser visto- até que, num momento desavisado, apertei o play. Impactante. Não soube dizer por quê, mas deixou marca.

Como dizia Ortega, somos também nossas circunstâncias. As minhas guardavam, ainda quentes, as ponderações geradas pelos livros que tinha acabado de ler e comentar. Garotas no limite, de Leonard Sax, onde se fala das mulheres –adolescentes, para ser mais preciso- que estão conectadas com metade do planeta, e desconectadas delas mesmas, da sua intimidade. A biografia de Marañon, onde se adverte que o romantismo precisa de tempo e solidão para ser vivido, distanciando-se da pressa e da técnica. E um texto que o Papa Francisco enviou no dia mundial das comunicações aos detentores da mídia, sugerindo que se esforcem por encontrar no ambiente digital o sentido da pausa e da calma, o silêncio que permite escutar, dimensões todas que nos ajudam a crescer em humanidade e em compreensão recíproca

     Todos estes pensamentos temperavam-se com os comentários dos protagonistas no filme. “Metade da américa ficou sem Facebook” –diz Clooney quando perde a comunicação com Houston. “O que você mais gosta de estar aqui em cima?” –pergunta ele para a cientista. “Creio que é do silêncio” –responde Sandra Bullock. Retornei ao filme outra vez, buscando agora o eco das reflexões que tinha me provocado. Borges dizia que quando voltamos uma e outra vez sobre um livro, o vemos de modo diferente porque nós mudamos durante o processo. Foi o que me aconteceu. Um efeito retardado, a ficha demorou em cair completamente, o fez em câmara lenta, como os atores movimentando-se na ausência de gravidade. Assim as ideias que cercavam minha mente, em busca do peso próprio, lentamente, em silêncio.

     O filme é, todo ele, uma epopeia feminina, a conquista da uma mulher sobre ela mesma. O espaço sideral, as questões técnicas, são guarnição, detalhe sem importância. Surgem máquinas que respondem a ordens em russo ou em chinês, tentativas de diálogos em sintonias perdidas que tem cães por interlocutores, crianças, e canções de ninar. E o frio que congela a cápsula espacial e, sempre, o silêncio que permite encontrar-se com ela mesma: refletir sobre a sua vida, suas frustrações e alegrias, suas dores e feridas que encontram , na ausência da atmosfera tóxica, possibilidades de cicatrização. “Você rezará uma prece por minha alma?. Eu vou tentar rezar uma também, embora nunca rezei na minha vida, ninguém me ensinou”. Uma cura da própria vida. Uma conquista do espaço, não do astral, mas do interior, dos meandros da alma.

     Tinha escutado de algum crítico que a performance da Sandra Bullock merecia um Oscar. Como é possível uma mulher ser feminina enfiada num traje de astronauta e movendo-se em câmara lenta? –pensei. Ela consegue; impõe-se, nos gestos, na modulação da voz, nas miudezas, e faz do entorno escuro, gélido, silencioso, o seu habitat. Lembrei –como não?- de Ortega, naquele ensaio magnífico sobre a alma feminina, “Estudos sobre o amor”: A mulher muda o entorno, como o clima faz com o vegetal. E faz de tudo o que a circunda, costume; transforma o ambiente –mesmo inóspito e adverso- num lar.

O nascer do sol, lindo, imponente, sem nuvens na atmosfera que filtrem a sua contundente luz. O oxigênio que escasseia e que é preciso saborear, respirando devagar, como quem degusta vinho, e não cerveja para apagar a sede.

     Alfonso Cuarón, o diretor Mexicano, leva com mérito o Globo de Ouro. Afinal, não é fácil dirigir um ator e meio e quatro vozes ao longo de um filme, mantendo o interesse, segurando uma trama tensa em suspense magnífico. Hitchcock dizia que dar sustos no cinema não requer muito talento, além do que, tudo se resolve em cinco segundos. O mérito mesmo é por conta do suspense onde o diretor brinca com a plateia, minutos, até horas, porque envolve o espectador na trama, torna-o partícipe do que se passa no celuloide. O susto e o terror ficam por conta dos efeitos especiais, da surpresa grosseira. O suspense requer a habilidade de sintonizar de modo quase interativo com os sentimentos do público –emoções, expectativas, medos- e, de algum modo, projetá-los como num espelho nas ações e figuras das personagens. O suspense faz-nos, por algum tempo, viver a vida peculiar dos protagonistas.

Quando o suspense não depende apenas de ações externas, mas das decisões vitais dos protagonistas, a empatia abre um canal de comunicação todo especial. Por isso Sandra Bullock e a sua epopeia particular nos fascinam. Ficamos presos aos seus solilóquios, nos emocionamos quando busca o conforto no latir dos cachorros, nas coisas simples da vida. “Houston in the blind’- assim começam sempre os registros que envia a cegas porque não sabe se alguém a escuta. Têm o sabor daqueles diários femininos, onde se estampavam o colorido da alma, fatos e sonhos, medos e receios, realidades e fantasias em igual proporção. E junto com a cientista que se debate pela sobrevivência, somos obrigados a pensar na nossa própria realidade. Vale a pena estar conectados com milhares de pessoas –quer dizer, com uma plateia que é tão numerosa como irreal e infiel- ou aproveitaria mais nutrir a própria intimidade, e conhecer-nos melhor? Vai ver que é quando desparecem as supostas conexões o momento em que começamos a conhecer-nos. É conhecida a piada daquele que está sendo enterrado, contemplado por apenas um par de sujeitos que comentam: “quem diria, ele tinha milhares da amigos no Facebook. Cadê eles?”.

     Conhece-te a ti mesmo, reza a máxima dos clássicos. Ao que poderia se acrescentar o conselho do monge sábio do século XII, Bernardo de Claraval: “Por maior que pareça o teu saber, de nada vale se não te conheces. Não é sábio aquele que não o é para si mesmo”. Conhecer-nos para, depois, poder conhecer os outros e sabermos servir, ser úteis. Conhecimento, silêncio, ponderação, paciência. Aqui encaixa o recado do Papa Francisco, que se recolhe na mensagem já comentada: “Temos necessidade de ser pacientes, se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: uma pessoa expressa-se plenamente a si mesma, não quando é simplesmente tolerada, mas quando sabe que é verdadeiramente acolhida”

E para tudo isso ser possível é preciso sair do barulho, da correria da alma. É preciso desprender-se da gravidade que nos amarra à terra. Gravidade que nos prende à mediocridade e nos impede, como dizia Guimarães Rosa, de “botar para se esquecer uma porção de coisas -as bestas coisas em que a gente no fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão, mas sem fidalguia”. E ai sim, focar-se no que interessa, encontrar as verdadeiras prioridades, aquilatando as lembranças, tornando-as reais, na dimensão certa, em câmara lenta, saboreando-as como o oxigênio da alma que se acaba e do qual precisamos para retomar a nossa vida com passo firme, decidido.

Tudo isso gira na órbita de Gravity. Um filme superior. Um diretor corajoso. Uma atriz monumental.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/02/20/gravidade-epopeia-feminina-a-conquista-do-espaco/> Último acesso: 16/07/2015.




Os Miseráveis (por Victor Bariani)


Os Miseráveis (Les Misérables). Diretor: Tom Hooper.  Hugh Jackman, Russel Crowe, Anne Hathaway, Eddie Redmayne, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter. 158 min. (2012)

Miseraveis_Poster_Nacional

A realidade que nos cerca tem um grande poder de puxar-nos para baixo, fazendo com que olhemos apenas para o miserável e sufocante chão. No entanto, às vezes, a vida pode nos dar um belo presente erguendo-nos para cima para que, mesmo por uns instantes, olhemos de um ponto de vista mais alto e humano, respirando novos ares e aproximando-nos das virtudes e dos valores que nos motivam a viver e que, por muitos momentos, são esquecidos, pois não se encontram no chão que nos habituamos a olhar. O cinema é uma dessas cordas elevadoras de almas, e essa obra de arte da qual escrevo é um verdadeiro guindaste.

Através de um belíssimo musical, somos convidados a entender como um homem pode retribuir a injustiça, a dor e o sofrimento com o perdão, a caridade e o amor. O que, ao olhar para o chão, seria entendido como loucura é aqui a forma mais sublime de se chegar a Deus, revolucionando a si mesmo (que me perdoem os céticos, mas é impossível não falar de espiritualidade e, por conseguinte, de Deus, ao se pincelar impressões sobre esse filme). Afinal, qual é a melhor maneira de criar uma revolução? Por meio do convencimento das massas alguns diriam, ou talvez pegando em armas, diriam outros, ou ainda, fazendo algo incrivelmente revolucionário para suas cabeças, muitos iriam compartilhar a torto e a direito qualquer “post no facebook” relacionado à corrupção política. Contudo, existe outro meio de incitar uma revolução, o qual não envolve nada que se encontre na miséria do chão, mas está dentro de nós: a revolução do amor.

O intuito máximo de uma revolução é a mudança. Dito isso, é válido o seguinte questionamento: na obra em questão, quem de fato cumpriu com os objetivos da revolução? Aqueles que devolveram a dor e a violência na mesma moeda ou aqueles  que tiveram a coragem de estender sua caridade e compaixão ao inimigo? Jean Valjean não incitou as massas, não defendeu a guerrilha, nem muito menos ficaria navegando pela internet com a intenção de jogar pragas virtuais em seus inimigos reais. Em lugar dessas ações compreensíveis, mas ineficazes, ele fez sua parte: influenciou para o bem a vida das pessoas que conheceu, procurando amá-las incondicionalmente. Por que fez isso? Pois um dia fizeram isso para ele quando tiveram a oportunidade de pagar no “olho por olho” um crime desesperado que cometeu. E por que esse alguém retribuiu de maneira tão nobre a ação tão miserável de Jean? Pois um dia fizeram, possivelmente, o mesmo para essa pessoa, de modo que chegamos à conclusão que em cada um de nós existe um gancho que espera que alguma corda prenda nele para nos elevar, para tornarmos mais humanos.

Muita ilusão e idealismo, inaplicáveis à realidade? A questão é: de qual realidade estamos falando? Caso essa realidade seja acabar com as guerras e a miséria, sim, isso é um pensamento muito idealista. Entretanto, nossa realidade é aquilo que nos cerca, de modo que colocar um sorriso no rosto de uma criança, cumprir o dever com alegria e simplicidade, ajudar um homem preso em baixo de uma carroça e amar ao próximo como a ti mesmo são, dentre outros, genuínos atos revolucionários.

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2013/06/13/os-miseraveis/