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Pai e filho

Opinião Pública | 05/06/2019 | | IFE CAMPINAS

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Há pouco tempo, um grande amigo disse-me que a partir do momento em que nosso filho nasce é virada uma chave em nossa cabeça que nunca mais é desvirada. Penso que essa afirmação pode ser assimilada de diferentes maneiras a depender de seu receptor. Para o homem imaturo, negligente na paternidade, essa “chave virada” é traduzida na falsa percepção de uma liberdade tolhida, fardo da vida que indesejadamente gerou. Para outros, como meu amigo, pai de 6 filhos, enxergar seu filho respirando, rindo, chorando, indefeso, carente e dependente, ativa no interior do coração um profundo senso de responsabilidade que transforma tudo, desde a maneira como se pensa e pondera as decisões até o agir.

Em aproximadamente 6 meses, será a chave da minha cabeça a virar para não desvirar mais. Em verdade, confesso que já está girando, gradualmente, assim que recebi de minha esposa a maravilhosa notícia de que nosso amor frutificara. Desde então, não paro de refletir sobre a paternidade, não somente da minha, mas na figura do pai em si.

O mundo vive uma inegável crise da paternidade. É deprimente constatar os inúmeros casos de abandono parental e o alarmante número de ações judiciais de cobrança de alimentos, sem falar dos casos, ainda mais angustiantes, em que é necessário o ingresso prévio com uma investigação de paternidade. Quantos não são os “pais” que integram o polo passivo dessas demandas, simplesmente porque se escusaram de cumprir com o mínimo dos deveres, o de prover a mais básica condição material humana, o alimento.

Não bastasse a engenharia jurídica criada a forçar o cumprimento de um dever tão elementar, como a constrição de bens, a penhora de crédito em conta corrente e até mesmo o desconto direto em folha salarial, o direito foi forçado a se inovar e criar, ao menos no Brasil, a única hipótese de prisão civil por dívida, o do devedor de pensão alimentícia.

Em paralelo, existe outra realidade, tão sensível quanto a primeira, mas ainda mais numerosa, constituída de pais que, inobstante proveem o “pão de cada dia” a seus filhos, não os alimentam com as necessidades imateriais do indivíduo, como o amor, o bom modelo e a presença. As consequências desse abandono são as mais nefastas, pois geram uma fome e uma sede que possuem prazo de validade para ser saciadas. Geralmente, até o final da infância. Com o tempo, as carências afetivas não supridas vão deixando marcas dolorosas, que podem se manifestando de diferentes formas ao longo do crescimento do filho, como traços de rebeldia, falhas no aprendizado, uma personalidade demasiadamente sensível ou excessivamente fria, dificuldades em manter relacionamentos emocionalmente estáveis, até problemas psicológicos mais sérios.

Diante desse diagnóstico que atesta uma sociedade doente da figura paterna, é legítimo questionar quais seriam as raízes para tal prognóstico. Na certa, várias, mas acredito que a imaturidade causada pelo egoísmo é uma razão que não pode ser descartada. É natural o desejo por satisfazer os gostos e realizações pessoais, em sentir-se livre para fazer o que bem desejar, mas a partir do momento em que aquele pequeno ser, inocente, frágil e dependente, entra na história, as responsabilidades mudam, o medo cresce e o egoísmo reluta, pois bem sabe que, para melhor ou para pior, as coisas mudaram.

No fundo, é aquela chave que meu amigo mencionava. O pai disposto a desprender-se heroicamente de si mesmo para atender às necessidades – materiais e imateriais – de seu filho é aquele em que a chave virou para o lado certo. Presenciei 24 anos, na privilegiada condição de filho, meu querido pai dar tudo de si, inclusive a vida, para o bem estar de sua esposa e de seus 11 filhos. Em compensação, ao contrário do que se possa imaginar, não foi um sujeito de personalidade aniquilada, mas um homem muito feliz, porque se doou muito.

É particularmente duro refletir e escrever sobre o tema. Afinal, ano passado perdi meu amado pai. Neste, serei papai. Também tenho medo. Também tenho egoísmo. Mas, o que posso dizer? Minha chave está virando e não quero desvira-la.

Marcos Moraes é bacharel em história pela Unicamp, advogado e membro do IFE-Campinas (marcos.jimoraes@gmail.com)

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 5 de junho de 2019, Página A2 – Opinião.