Somos todos Ilitch


Dez mortos em Suzano, três mortos em atentado na Holanda, 35 mortos em protestos na Venezuela, 209 mortos em Brumadinho… Diariamente nos deparamos com notícias que retratam mortes devidas a diferentes circunstâncias. Quase inevitavelmente, porém, focamos nossas atenções (ou indignações) nas circunstâncias da morte e não na realidade da morte. A dizer, tendemos a nos voltar para as causas que nelas resultaram e nos possíveis meios de as evitar – o que é justo e fundamental que façamos – mas, poucas vezes, refletimos sobre a própria morte.

A reflexão sobre a inevitabilidade da morte tende a surgir quando perdemos uma pessoa próxima, especialmente se de forma repentina. Mas, quando distante e referida em grandes números, depreendemos da morte reflexões sobre a violência, sobre a infraestrutura do sistema de saúde, sobre a corrupção, sobre a guerra, mas não sobre a morte em si.

Apesar de se tratar da realidade mais certeira que possuímos, parecemos não compreender a dimensão de sua fatalidade. Tolstói, genialmente, expressa tal incompreensão no momento em que Ilitch depara-se com sua morte: “Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo. O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais (…)”

A mera leitura desse trecho, assim como as corriqueiras matérias em jornal, não são suficientes para internalizarmos a realidade da morte. Como coloca Gustavo Corção, em sua obra Lições do Abismo, é possível ler tal página de Tolstói, e apreciar sua pungente beleza do alto de nossa imortalidade, afinal não somos Caio, nem Ilitch. Logicamente, sabemos que o silogismo permanece verdadeiro se substituído por nosso próprio nome. Mas há uma diferença substancial entre alegar a veracidade de nossa inevitável fatalidade e efetivamente assumi-la em nossa vida.

Refletir sobre a morte nos leva a repensar a própria vida e a nos deparar com questões fundamentais: O que significa a minha existência? Qual o sentido da vida? Para onde vou quando morrer? Há vida após a morte? Deus existe? Questões estas que comumente procuramos postergar, pelo incômodo de adentrar um terreno cujas respostas não se encontram no plano material, palpável, tão mais seguro e certeiro.

As respostas a estas e outras questões existenciais não são um mero exercício de elucubração filosófica. Ao contrário, queiramos ou não, respondemos a elas com nossas vidas. A diferença entre refletir ou deixar de refletir sobre elas é que, no primeiro caso, as respostas são frutos de decisões pessoais, no segundo, as respostas são frutos das circunstâncias. Optar por não refletir, destacadamente sobre a morte e os inerentes questionamentos referentes à percepção da fugacidade da vida, é terceirizar a decisão para as circunstâncias, isto é, abrir mão do atributo caracterizador do ser humano: sua liberdade.

Refletir sobre a morte pode parecer mórbido, deprimente ou um exercício que torna a vida sem sentido. Mas é precisamente o oposto que ocorre. Encarar a realidade da morte permite repensar as prioridades da vida, estabelecer o justo valor às coisas e perceber que, no fundo, em nada satisfaz substituir a falta de sentido por excesso de sensações.

Talvez, se Ilitch tivesse enfrentado os questionamentos mais essenciais de sua existência antes do seu leito de morte, não tivesse concluído que “quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo”. Talvez, pensar na morte seja o remédio que cada pessoa, individualmente, e a sociedade, coletivamente, precisamos para viver de forma autenticamente mais humana.

 

Beatriz Figueiredo de Rezende é bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e membro do IFE Campinas (beatriz.rezende@gmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 27 de Março de 2019, Página A2 – Opinião.




Mário Ferreira dos Santos e o nosso futuro - por Olavo de Carvalho


Quando a obra de um único autor é mais rica e poderosa que a cultura inteira do seu país, das duas uma: ou o país consente em aprender com ele ou recusa o presente dos céus e inflige a si próprio o merecido castigo pelo pecado da soberba, condenando-se ao definhamento intelectual e a todo o cortejo de misérias morais que necessariamente o acompanham.

Mário Ferreira ocupa no Brasil uma posição similar à de Giambattista Vico na cultura napolitana do século XVIII ou de Gottfried von Leibniz na Alemanha da mesma época: um gênio universal perdido num ambiente provinciano incapaz não só de compreendê-lo, mas de enxergá-lo. Leibniz ainda teve o recurso de escrever em francês e latim, abrindo assim algum diálogo com interlocutores estrangeiros. Mário está mais próximo de Vico no seu isolamento absoluto, que faz dele uma espécie de monstro. Quem, num ambiente intelectual prisioneiro do imediatismo mais mesquinho e do materialismo mais deprimente – materialismo compreendido nem mesmo como postura filosófica, mas como vício de só crer no que tem impacto corporal -, poderia suspeitar que, num escritório modesto da Vila Olímpia, na verdade uma passagem repleta de livros entre a cozinha e a sala de visitas, um desconhecido discutia em pé de igualdade com os grandes filósofos de todas as épocas, demolia com meticulosidade cruel as escolas de pensamento mais em moda e sobre seus escombros erigia um novo padrão de inteligibilidade universal?

Os problemas que Mário enfrentou foram os mais altos e complexos da filosofia, mas, por isso mesmo, estão tão acima das cogitações banais da nossa intelectualidade, que esta não poderia defrontar-se com ele sem passar por uma metanóia, uma conversão do espírito, a descoberta de uma dimensão ignorada e infinita. Foi talvez a premonição inconsciente do terror e do espanto – do thambos aristotélico – que a impeliu a fugir dessa experiência, buscando abrigo nas suas miudezas usuais e definhando pouco a pouco, até chegar à nulidade completa; decerto o maior fenômeno de auto-aniquilação intelectual já transcorrido em tempo tão breve em qualquer época ou país. A desproporção entre o nosso filósofo e os seus contemporâneos – muito superiores, no entanto, à atual geração – mede-se por um episódio transcorrido num centro anarquista, em data que agora me escapa, quando se defrontaram, num debate, Mário e o então mais eminente intelectual oficial do Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado Júnior. Caio falou primeiro, respondendo desde o ponto de vista marxista à questão proposta como Leitmotiv do debate. Quando ele terminou, Mário se ergueu e disse mais ou menos o seguinte:

– Lamento informar, mas o ponto de vista marxista sobre os tópicos escolhidos não é o que você expôs. Vou, portanto, refazer a sua conferência antes de fazer a minha.

E assim fez. Muito apreciado no grupo anarquista, não por ser integralmente um anarquista ele próprio, mas por defender as idéias econômicas de Pierre-Joseph Proudhon, Mário jamais foi perdoado pelos comunistas por esse vexame imposto a uma vaca sagrada do Partidão. O fato pode ter contribuído em algo para o muro de silêncio que cercou a obra do filósofo desde a sua morte. O Partido Comunista sempre se arrogou a autoridade de tirar de circulação os autores que o incomodavam, usando para isso a rede de seus agentes colocados em altos postos na mídia, no mundo editorial e no sistema de ensino. A lista dos condenados ao ostracismo é grande e notável. Mas, no caso de Mário, não creio que tenha sido esse o fator decisivo. O Brasil preferiu ignorar o filósofo simplesmente porque não sabia do que ele estava falando. Essa confissão coletiva de inépcia tem, decerto, o atenuante de que as obras do filósofo, publicadas por ele mesmo e vendidas de porta em porta com um sucesso que contrastava pateticamente com a ausência completa de menções a respeito na mídia cultural, vinham impressas com tantas omissões, frases truncadas e erros gerais de revisão, que sua leitura se tornava um verdadeiro suplício até para os estudiosos mais interessados – o que, decerto, explica mas não justifica. A desproporção evidenciada naquele episódio torna-se ainda mais eloqüente porque o marxismo era o centro dominante ou único dos interesses intelectuais de Caio Prado Júnior, ao passo que, no horizonte infinitamente mais vasto dos campos de estudo de Mário Ferreira, era apenas um detalhe ao qual ele não poderia ter dedicado senão alguns meses de atenção: nesses meses, aprendera mais do que o especialista que dedicara ao assunto uma vida inteira.

A mente de Mário Ferreira era tão formidavelmente organizada que para ele era a coisa mais fácil localizar imediatamente no conjunto da ordem intelectual qualquer conhecimento novo que lhe chegasse desde área estranha e desconhecida. Numa outra conferência, interrogado por um mineralogista de profissão que desejava saber como aplicar ao seu campo especializado as técnicas lógicas que Mário desenvolvera, o filósofo respondeu que nada sabia de mineralogia mas que, por dedução desde os fundamentos gerais da ciência, os princípios da mineralogia só poderiam ser tais e quais – e enunciou quatorze. O profissional reconheceu que, desses, só conhecia oito.

A biografia do filósofo é repleta dessas demonstrações de força, que assustavam a platéia, mas que para ele não significavam nada. Quem ouve as gravações das suas aulas, registradas já na voz cambaleante do homem afetado pela grave doença cardíaca que haveria de matá-lo aos 65 anos, não pode deixar de reparar na modéstia tocante com que o maior sábio já havido em terras lusófonas se dirigia, com educação e paciência mais que paternais, mesmo às platéias mais despreparadas e toscas. Nessas gravações, pouco se nota dos hiatos e incongruências gramaticais próprios da expressão oral, quase inevitáveis num país onde a distância entre a fala e a escrita se amplia dia após dia. As frases vêm completas, acabadas, numa seqüência hierárquica admirável, pronunciadas em recto tono, como num ditado.

Quando me refiro à organização mental, não estou falando só de uma habilidade pessoal do filósofo, mas da marca mais característica de sua obra escrita. Se, num primeiro momento, essa obra dá a impressão de um caos inabarcável, de um desastre editorial completo, o exame mais demorado acaba revelando nela, como demonstrei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas, um plano de excepcional clareza e integridade, realizado quase sem falhas ao longo dos 52 volumes da sua construção monumental, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas.

Além dos maus cuidados editoriais – um pecado que o próprio autor reconhecia e que explicava, com justeza, pela falta de tempo –, outro fator que torna difícil ao leitor perceber a ordem por trás do caos aparente provém de uma causa biográfica. A obra escrita de Mário reflete três etapas distintas no seu desenvolvimento intelectual, das quais a primeira não deixa prever em nada as duas subseqüentes, e a terceira, comparada à segunda, é um salto tão formidável na escala dos graus de abstração que aí parecemos nos defrontar já não com um filósofo em luta com suas incertezas e sim com um profeta-legislador a enunciar leis reveladas ante as quais a capacidade humana de discutir tem de ceder à autoridade da evidência universal.

A biografia interior de Mário Ferreira é realmente um mistério, tão grandes foram os dois milagres intelectuais que a moldaram. O primeiro transformou um mero ensaísta e divulgador cultural em filósofo na acepção mais técnica e rigorosa do termo, um dominador completo das questões debatidas ao longo de dois milênios, especialmente nos campos da lógica e da dialética. O segundo fez dele o único – repito, o único – filósofo moderno que suporta uma comparação direta com Platão e Aristóteles. Este segundo milagre anuncia-se ao longo de toda a segunda fase da obra, numa seqüência de enigmas e tensões que exigiam, de certo modo, explodir numa tempestade de evidências e, escapando ao jogo dialético, convidar a inteligência a uma atitude de êxtase contemplativo. Mas o primeiro milagre, sobrevindo ao filósofo no seu quadragésimo terceiro ano de idade, não tem nada, absolutamente nada, que o deixe prever na obra publicada até então. A família do filósofo foi testemunha do inesperado. Mário fazia uma conferência, no tom meio literário, meio filosófico dos seus escritos usuais, quando de repente pediu desculpas ao auditório e se retirou, alegando que “tivera uma idéia” e precisava anotá-la urgentemente. A idéia era nada mais, nada menos que as teses numeradas destinadas a constituir o núcleo da Filosofia Concreta, por sua vez coroamento dos dez volumes iniciais da Enciclopédia, que viriam a ser escritos uns ao mesmo tempo, outros em seguida, mas que ali já estavam embutidos de algum modo. A Filosofia Concreta é construída geometricamente como uma seqüência de afirmações auto-evidentes e de conclusões exaustivamente fundadas nelas – uma ambiciosa e bem sucedida tentativa de descrever a estrutura geral da realidade tal como tem de ser concebida necessariamente para que as afirmações da ciência façam sentido.

Mário denomina a sua filosofia “positiva”, mas não no sentido comteano. Positividade (do verbo “pôr”) significa aí apenas “afirmação”. O objetivo da filosofia positiva de Mário Ferreira é buscar aquilo que legitimamente se pode afirmar sobre o conjunto da realidade à luz do que foi investigado pelos filósofos ao longo de vinte e quatro séculos. Por baixo das diferenças entre escolas e correntes de pensamento, Mário discerne uma infinidade de pontos de convergência onde todos estiveram de acordo, mesmo sem declará-lo, e ao mesmo tempo vai construindo e sintetizando os métodos de demonstração necessários a fundamentá-los sob todos os ângulos concebíveis.

Daí que a filosofia positiva seja também “concreta”. Um conhecimento concreto, enfatiza ele, é um conhecimento circular, que conexiona tudo quanto pertence ao objeto estudado, desde a sua definição geral até os fatores que determinam a sua entrada e saída da existência, a sua inserção em totalidades maiores, o seu posto na ordem dos conhecimentos, etc. Por isso é que à seqüência de demonstrações geométricas se articula um conjunto de investigações dialéticas, de modo que aquilo que foi obtido na esfera da alta abstração seja reencontrado no âmbito da experiência mais singular e imediata. A subida e descida entre os dois planos opera-se por meio da decadialética, que enfoca o seu objeto sob dez aspectos:

 

1. Campo sujeito-objeto. Todo e qualquer ser, seja físico, espiritual, existente, inexistente, hipotético, individual, universal, etc. é simultaneamente objeto e sujeito, o que é o mesmo que dizer – em termos que não são os usados pelo autor – receptor e emissor de informações. Se tomarmos o objeto mais alto e universal – Deus –, Ele é evidentemente sujeito, e só sujeito, ontologicamente: gerando todos os processos, não é objeto de nenhum. No entanto, para nós, é objeto dos nossos pensamentos. Deus, que ontologicamente é puro sujeito, pode ser objeto do ponto de vista cognitivo. No outro extremo, um objeto inerte, como uma pedra, parece ser puro objeto, sem nada de sujeito. No entanto, é óbvio que ela está em algum lugar e emite aos objetos circundantes alguma informação sobre a sua presença, por exemplo, o peso com que ela repousa sobre outra pedra. Com uma imensa gradação de diferenciações, cada ente pode ser precisamente descrito nas suas respectivas funções de sujeito e objeto. Conhecer um ente é, em primeiro lugar, saber a diferenciação e a articulação dessas funções. Alguns exercícios para o leitor se aquecer antes de entrar no estudo da obra de Mário Ferreira: (1) Diferencie os aspectos e ocasiões em que um fantasma é sujeito e objeto. (2) E uma idéia abstrata, quando é sujeito, quando é objeto? (3) E um personagem de ficção, como Dom Quixote?

2. Campo da atualidade e virtualidade. Dado um ente qualquer, pode-se distinguir entre o que ele é efetivamente num certo momento e aquilo em que ele pode (ou não) se transformar no instante seguinte. Alguns entes abstratos, como por exemplo a liberdade ou a justiça, podem se transformar nos seus contrários. Mas um gato não pode se transformar num antigato.

3. Distinção entre as virtualidades (possibilidades reais) e as possibilidades não-reais, ou meramente hipotéticas. Toda possibilidade, uma vez logicamente enunciada, pode ser concebida como real ou irreal. Só podemos obter essa gradação pelo conhecimento dialético que temos das potências do objeto.

4. Intensidade e extensidade. Mário toma esses termos emprestados do físico alemão Wilhelm Ostwald (1853-1932), separando aquilo que só pode variar em diferença de estados, como por exemplo o sentimento de temor ou a plenitude de significados de uma palavra, e aquilo que se pode medir por meio de unidades homogêneas, como por exemplo linhas e volumes.

5. Intensidade e extensidade nas atualizações. Quando os entes passam por mudanças, elas podem ser tanto de natureza intensiva quanto extensiva. A descrição precisa das mudanças exige a articulação dos dois pontos de vista.

6. Campo das oposições no sujeito: razão e intuição. O estudo de qualquer ente sob os cinco primeiros aspectos não pode ser feito só com base no que se sabe deles, mas tem de levar em conta a modalidade do seu conhecimento, especialmente a distinção entre os elementos racionais e intuitivos que entram em jogo.

7. Campo das oposições da razão: conhecimento e desconhecimento. Se a razão fornece o conhecimento do geral e a intuição o do particular, em ambos os casos há uma seleção: conhecer é também desconhecer. Todos os dualismos da razão – concreto-abstrato, objetividade-subjetividade, finito-infinito, etc. – procedem da articulação entre conhecer e desconhecer. Não se conhece um objeto enquanto não se sabe o que tem de ser desconhecido para que ele se torne conhecido.

8. Campo das atualizações e virtualizações racionais. A razão opera sobre o trabalho da intuição, atualizando ou virtualizando, isto é, trazendo para o primeiro plano ou relegando para um plano de fundo os vários aspectos do objeto percebido. Toda análise crítica de conceitos abstratos supõe uma clara consciência do que aí foi atualizado e virtualizado.

9. Campo das oposições da intuição. A mesma separação do atual e do virtual já acontece no nível da intuição, que é espontaneamente seletiva. Se, por exemplo, olhamos esta revista como uma singularidade, fazemos abstração dos demais exemplares da mesma tiragem. Tal como a razão, a intuição conhece e desconhece.

10. Campo do variante e do invariante. Não há fato absolutamente novo nem absolutamente idêntico a seus antecessores. Distinguir os vários graus de novidade e repetição é o décimo e último procedimento da decadialética.

 

Mário complementa o método com a pentadialética, uma distinção de cinco planos diferentes nos quais um ente ou fato pode ser examinado: como unidade, como parte de um todo do qual é elemento, como capítulo de uma série, como peça de um sistema (ou estrutura de tensões) e como parte do universo.

Nos dez primeiros volumes da Enciclopédia, Mário aplica esses métodos à resolução de vários problemas filosóficos divididos segundo a distinção tradicional entre as disciplinas que compõem a filosofia – lógica, ontologia, teoria do conhecimento, etc. –, compondo assim a armadura geral com que, na segunda série, se aprofundará no estudo pormenorizado de determinados temas singulares.

Aconteceu que, na elaboração dessa segunda série, ele se deteve mais demoradamente no estudo dos números em Platão e Pitágoras, o que acabou por determinar o upgrade espetacular que marca a segunda metanóia do filósofo e os dez volumes finais da Enciclopédia, tal como expliquei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas. O livro Pitágoras e o Tema do Número, um dos mais importantes do autor, dá testemunho da mutação. O que chamou a atenção de Mário foi que, na tradição pitagórico-platônica, os números não eram encarados como meras quantidades, no sentido em que são usados nas medições, mas sim como formas, isto é, articulações lógicas de relações possíveis. O que Pitágoras queria dizer com sua famosa afirmação de que “tudo são números” não é que todas as qualidades diferenciadoras podiam se reduzir a quantidades, mas que as quantidades mesmas eram por assim dizer qualitativas: cada uma delas expressava um certo tipo de articulação de tensões cujo conjunto formava um objeto. Mas, se de fato é assim, conclui Mário, a seqüência dos números inteiros não é apenas uma contagem, mas uma série ordenada de categorias lógicas. Contar é, mesmo inconscientemente, galgar os degraus de uma compreensão progressiva da estrutura do real. Vejamos, só para exemplificar, o que acontece no trânsito do número um ao número cinco. Todo e qualquer objeto é necessariamente uma unidade. Ens et unum convertuntur, “o ser e a unidade são a mesma coisa”, dirá Duns Escoto. Ao mesmo tempo, porém, esse objeto conterá em si alguma dualidade essencial. Mesmo a unidade simples, ou Deus, não escapa ao dualismo gnoseológico do conhecido e do desconhecido, já que aquilo que Ele conhece de si mesmo é desconhecido por nós. Ao mesmo tempo, os dois aspectos da dualidade têm de estar ligados entre si, o que exige a presença de um terceiro elemento, a relação. Mas a relação, ao articular os dois aspectos anteriores, estabelece entre eles uma proporção, ou quaternidade. A quaternidade, considerada como forma diferenciada do ente cuja unidade abstrata captamos no princípio, é por sua vez uma quinta forma. E assim por diante.

A mera contagem exprime, sinteticamente, o conjunto das determinações internas e externas que compõem qualquer objeto material ou espiritual, atual ou possível, real ou irreal. Os números são portanto “leis” que expressam a estrutura da realidade. O próprio Mário confessa não saber se essa sua versão muito pessoal do pitagorismo coincide materialmente com a filosofia do Pitágoras histórico. Seja uma descoberta ou uma redescoberta, a filosofia de Mário descerra diante dos nossos olhos, de maneira diferenciada e meticulosamente acabada, um edifício doutrinal inteiro que, em Pitágoras – e mesmo em Platão – estava apenas embutido de maneira compacta e obscura. Ao mesmo tempo, em A Sabedoria dos Princípios e demais volumes finais da Enciclopédia, ele dá ao seu próprio projeto filosófico um alcance incomparavelmente maior do que se poderia prever até mesmo pela magistral Filosofia Concreta. A esta altura, aquilo que começara como conjunto de regras metodológicas se transmuta num sistema completo de metafísica, a mathesis megiste ou “ensinamento supremo”, ultrapassando de muito a ambição originária da Enciclopédia e elevando a obra de Mário Ferreira ao estatuto de uma das mais altas realizações do gênio filosófico de todos os tempos.

Não tenho a menor dúvida de que, quando passar a atual fase de degradação intelectual e moral do país e for possível pensar numa reconstrução, essa obra, mais que qualquer outra, deve tornar-se o alicerce de uma nova cultura brasileira. A obra, em si, não precisa disso: ela sobreviverá muito bem quando a mera recordação da existência de algo chamado “Brasil” tiver desaparecido. O que está em jogo não é o futuro de Mário Ferreira dos Santos: é o futuro de um país que a ele não deu nada, nem mesmo um reconhecimento da boca para fora, mas ao qual ele pode dar uma nova vida no espírito.

 

Olavo de Carvalho lecionou Filosofia Política na Pontifícia Universidade Católica do Paraná de 2001 a 2005 e é autor de vários livros bem conhecidos, entre os quais O Jardim das Aflições: de Epicuro à Ressurreição de César – Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil (1995), Aristóteles em Nova Perspectiva (1996) e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (1996). Colunista de vários jornais brasileiros que o expulsaram de suas páginas quando passou a denunciar as atividades criminosas do Foro de São Paulo, ele hoje vive em Richmond, Virginia, EUA, como correspondente do Diário do Comércio, de São Paulo. Olavo de Carvalho foi também o primeiro estudioso brasileiro a retirar do ostracismo as obras de Mário Ferreira dos Santos, pronunciando a respeito inúmeros cursos e conferências e preparando, com introdução e notas, a edição do manuscrito A Sabedoria das Leis Eternas (São Paulo: É-Realizações, 2001). Website: www.olavodecarvalho.org.

NOTAS:

[1] São Paulo: É-Realizações, 2001.

Publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3, disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/mario-ferreira-dos-santos-e-o-nosso-futuro/>




Renan, Cunha e Gollum


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Renan Calheiros, como sabemos, é o atual presidente do Senado. Tem 60 anos e é autor de alguns livros, entre eles um de título sugestivo, “Contadores de balelas”. Sua primeira eleição aconteceu em 1978, quando foi eleito Deputado Estadual pelo então MDB. Nessa época, travava uma luta feroz contra o prefeito de Maceió, Fernando Collor. Duas eleições para Deputado Federal mais tarde, filiou-se ao PRN e foi nomeado assessor de Collor, então candidato à presidência. Mas, devido a uma desavença política pelo Governo de Alagoas, deixou o partido e, à época da queda de Collor, pediu o seu impeachment. Em 1994, foi eleito Senador, cargo que ocupa até hoje. Responde, no Supremo, a 12 inquéritos, nove ligados a investigações sobre o esquema de corrupção na PETROBRÁS, um relativo à Operação Zelotes e outros dois que apuram irregularidades no pagamento de pensão a uma filha.

Eduardo Cunha tem 57 anos. Entrou na política graças a Fernando Collor, pois trabalhou durante sua campanha ao lado de P. C. Farias. Assim como Calheiros, era filiado ao PRN. Logo após a eleição, foi nomeado presidente da TELERJ, onde foi acusado de sua primeira irregularidade e teve de deixar o cargo. Trabalhou em outras estatais e, em 2000, teve de ser novamente afastado do cargo, desta vez da Companhia Estadual de Habitação, devido a irregularidades. Graças a Anthony Garotinho, elegeu-se Deputado Federal em 2002. Em 2015, assumiu a presidência da Câmara, de onde acaba de ser afastado pelo Supremo Tribunal Federal. Responde a três inquéritos na Lava-Jato e é réu em uma ação no STF.

Gollum é um personagem de O Hobbit e de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien. Inicialmente era um bom sujeito, mas, com o tempo, deixou de olhar para o alto: “Sua cabeça e olhos só se dirigiam para baixo”. Foi o começo da sua derrocada. Logo após viu o Um Anel, o mais poderoso de todos, com o seu primo. Matou o parente para obtê-lo. Com a preciosidade em mãos, ganhou o poder de se tornar invisível. Porém, tornou-se impopular com a família e foi expulso de casa e se escondeu em um lugar ermo. Lá ficou até perder o anel para Bilbo.

O que une esses três personagens é a sede de poder, que acaba por corromper um homem (ou hobbit). Em O senhor dos anéis, o fim de Gollum mostra o que acontece com todos os que buscam o poder para proveito próprio. Tolkien afirma que Gollum passou a odiar a luz e a escuridão e, curiosamente, passou a detestar acima de tudo o anel.

O simples hobbit Frodo – talvez como nós – não conseguia entender essa sede de poder e como Gollum passou a detestar o que mais amava. O sábio Gandalf explicou que ele nutria os mesmos sentimentos que por si próprio e por isso não podia deixar o anel, assim como nós não podemos nos libertar de nós mesmos. Dominado por esse poder maléfico, “não tinha mais vontade própria”.

Na conversa com o mago, Frodo pergunta por que não mataram Gollum quando tiveram a oportunidade. Gandalf diz que quem não deu a vida não deve tirá-la e acrescenta que não sabemos os percursos de uma vida. Portanto, seria precipitado achá-la digna de um fim. O que fazer, então, com Gollum? Tirar o seu anel de poder. Foi o que, de certa maneira, Frodo fez. O que fazer com Renan e Cunha? Destituí-los do poder e, se as acusações provarem-se verdadeiras, prendê-los. O STF fez a sua parte com Cunha. Falta Renan.

O fim de Gollum é triste: tornou-se um solitário que busca voltar a ter o poder de antes. Jurava ter sido injustiçado e que tinha bons amigos que iriam resgatar a sua dignidade. Renan e Cunha poderiam ser mais honrados: usar o anel uma última vez e desaparecerem para sempre da vida pública. Já fizeram mal o bastante.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE – Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 19/5/2016, Página A-2, Opinião.




Joaquim Nabuco e a reforma do estadista (por Martim Vasques da Cunha)


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“Todos os seres, desde o primeiro instante do nascimento, são, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer”. (Aristóteles, Política)

 

Sem dúvida, a seguinte cena poderia fazer parte de uma peça de Tom Stoppard. Em uma das salas de leitura do British Museum, de Londres, por volta de 1883, onde o teto igual a uma cúpula circular dava a impressão – junto com as escrivaninhas que formavam uma série de pequenos círculos e a ausência de janelas que criava uma atmosfera sufocante – de que se estava dentro do inferno de Dante Alighieri, encontrava-se um rapaz esbelto, formoso (apelidado de “Quincas, o Belo” pelos colegas de Pernambuco e do Rio de Janeiro), admirado com os 600 mil livros à sua disposição, pronto para arregaçar as mangas e começar a escrever a obra que, segundo ele, denunciaria o sistema de escravidão sobre o qual o seu país se sustentava. Ao seu lado, enquanto pesquisava dados e estatísticas para fundamentar a sua argumentação política e econômica, havia um outro senhor, todo desalinhado, com a barba enorme e grisalha encostando na madeira da escrivaninha, mexendo-se sem parar na cadeira devido aos furúnculos que incomodavam as suas nádegas, soterrado entre livros e mais livros. Seu nome era Karl Marx, e o livro que estava a escrever era O Capital.

“Quincas, o Belo” tinha o nome completo de Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo e nasceu em 19 de agosto de 1849. Mais tarde, cerca de sessenta anos depois, quando morreu em 17 de janeiro de 1910, era conhecido somente como Joaquim Nabuco. Nesse meio tempo, transformou-se de filho de senador do Império em exemplo de estadista e defensor de uma política que deixava a todos intrigados, porque não se prendia a abstrações e a sistemas organizados perfeitamente. Para muitos, era falta de coerência; para alguns poucos, era ausência de profundidade; para o próprio Nabuco, significava ouvir o chamado de uma alma dilacerada entre o desejo de ter uma vida contemplativa e o impulso de viver uma existência agitada, calcada no cotidiano, sem perder a noção de que o país de onde viera necessitava de reformas profundas para continuar a sobreviver.

Por isso, seria interessante se acontecesse de fato o encontro entre Marx e Nabuco. Ambos eram filhos do seu tempo, mas o primeiro criou uma obra inteira baseada na revolução que, quando chegou, destruiu tudo o que existia antes, enquanto o segundo baseou a sua vida na constante e delicada reforma de estruturas tão arraigadas na alma do povo brasileiro, que não seria exagero dizer que esta se encontrava literalmente escravizada.

Este é o tema oculto que atravessa O Abolicionismo, a primeira tentativa de estabelecer uma síntese interpretativa sobre o que seria o Brasil. Publicado em 1883, depois do breve exílio de Nabuco em Londres, em que a campanha mundial pela abolição dos escravos negros atingia o máximo de fermentação política, o pequeno livro marcou a carreira do filho de Nabuco de Araújo, então um dos homens de maior prestígio da época, como o representante de um movimento que logo o catalogaria como “liberal” e “progressista”. O jovem Quincas, dividido entre as cirandas amorosas da alta sociedade e a obrigação moral de observar o Brasil tal como era, decidiu pela última opção – e pagou um preço caro por isso: nada mais nada menos que a incompreensão de seus pares e, claro, também a de seus inimigos, que nunca entenderam que aquele o seu combate contra a escravidão não era um momento de oportunismo e sim a única forma de descrever um triste estado de coisas.

E qual era este estado? Segundo as palavras do próprio Nabuco, quando se falava em escravidão, dever-se-ia entendê-la sempre no sentido lato. Não significava apenas “a relação entre o senhor e o escravo”. Significava muito mais: “a soma do poderio, influência capital, e clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regímen a que estão sujeitos; e por último, o espírito, o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína”.

Portanto, não estamos a falar de uma escravidão ligada a um povo ou a uma raça específicos. Trata-se de algo que aniquila a alma, o espírito e a mente. É claro que Nabuco tinha plena consciência do problema da raça negra – e ele ternamente simpatizava com as questões humanitárias – mas o problema, como diria o vulgo, estava mais embaixo: o Brasil apresentava-se ao mundo com a psicologia de um escravo, e é justamente esta preocupação que guiará Nabuco nas páginas de O Abolicionismo.

Seu ataque contra a escravidão não evocava o ressentimento de uma luta de classes, muito menos de uma ação afirmativa avant la lettre. Suas preocupações eram práticas: a escravidão era um sistema econômico viável e lucrativo? O movimento abolicionista era uma causa que já estava vencida ou tinha algum futuro? E, por fim, o que se pode fazer pelos negros de maneira eficaz a partir do momento em que conseguirem a sua liberdade? Para cada uma delas, Nabuco tentava dar uma resposta igualmente prática, mesmo que se deparasse com o obstáculo que era a influência psíquica da escravidão em cada fissura da estrutura desumana que moldava o país. A partir disso, suas inquietações aumentavam cada vez mais porque percebeu que a resposta a essas perguntas só poderia terminar na negativa.

Tal diagnóstico aparentemente pessimista – outros diriam que não passava de um realismo precavido – mostra, na verdade, um anseio pela reforma estrutural do Brasil. A maior prova disso está na análise implacável que Nabuco faz da equivalência moral entre a escravidão do negro e a do funcionário público. Se, na primeira escravidão, apenas uma raça é atingida, na segunda é toda uma suposta elite a cair na armadilha que ela mesma preparou. São palavras duras – tão duras que nenhum outro intérprete tupiniquim, talvez fascinado pela mesma arapuca, ousou repeti-las: “A estreita relação entre a escravidão e a epidemia do funcionalismo não pode ser mais contestada que a relação entre ela e a superstição do Estado-providência. Assim como, neste regímen, tudo se espera do Estado, que, sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público, sugando as economias do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do rico; assim também, como conseqüência, o funcionalismo é a profissão e a vocação de todos. Tomem-se, ao acaso, vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar onde se reúna a nossa sociedade mais culta: todos eles ou foram ou são, ou hão de ser, empregados públicos; se não eles, seus filhos”.

A descrição de Nabuco é tão atual que qualquer brasileiro se reconheceria nestas linhas. Afinal, ele se via na mesma situação: seu pai era senador e Nabuco, quando jovem, teve de ser adido de legação diplomática para pagar as suas contas (que, não por acaso, eram um tanto perdulárias). Contudo, desde cedo, tinha plena consciência de suas limitações e nunca hesitou em descrevê-las – especialmente para si mesmo. Em uma anotação de seu diário em setembro de 1877, quando estava nos Estados Unidos, Nabuco expunha o dilema entre viver o carrossel da agitação diplomática e querer a reclusão necessária para pensar os assuntos do espírito: “O homem sociável pode ser muito diverso do homem solitário? Posso eu no fundo ser inteiramente outro do que pareço quando na sociedade? A minha natureza pode ser melancólica sem que os que vivem comigo o saibam pelo simples fato de que a presença deles afugenta o homem solitário. Meses e meses eu não penso em religião nem em poesia, mas quando volto a elas, o prazer que sinto revela-me que a tristeza do pensamento solitário é a pedra-de-toque de minha natureza”.

Com uma divisão psíquica tão intensa, era urgente, como o próprio Nabuco já teria percebido, fazer uma reforma interna, uma reforma da própria alma. Eis aí a diferença entre um simples funcionário público e um estadista. Durante a juventude, Nabuco observou como seu pai procedia nas consultas para o Imperador D. Pedro II, nas sessões do Senado, nas redações de jurisprudência e do projeto do Código Civil (jamais terminado depois da morte do senador), e, sem saber, cultivava uma imagem própria do que deveria ser um político: alguém que respeita sempre as tensões do real e que evita, ao realizar qualquer espécie de reforma, que o ideal abstrato da revolução elimine todo elo com o passado, conservando o que este tem de bom para a sua continuidade no futuro. Esta imagem amadureceria de vez somente após a morte do pai em 1878, quando, quase vinte anos depois, Nabuco publicaria Balmaceda (1895)[1], seu relato sobre o golpe de Estado que o presidente chileno de mesmo nome queria realizar sob um parlamento que nunca aceitaria tais demandas “jacobinas”. As linhas seguintes, escritas no mesmo período em que elaborava sua obra máxima, Um Estadista do Império, e sua outra polêmica contra a República de Floriano Peixoto, A intervenção estrangeira durante a Revolta de 1893, mostra o Nabuco que sabe que a verdadeira política, feita pelos estadistas, recusa qualquer espécie de escravidão do espírito, em especial a de uma teoria com pretensões de ser científica e repleta de certezas:

“Não há em política pretensão mais fútil do que essa apresentada em nome da ciência. A ciência pode criar tanto uma sociedade como a glótica pode inventar uma língua, ou a filosofia uma religião. A política chamada científica propõe-se poupar a cada sociedade as contingências da experiência própria, guiá-la por uma sabedoria abstrata, síntese das experiências havidas, o que seria enfraquecer e destruir o regulador da conduta humana, que é exatamente a experiência humana de cada um. Certas leis existem em política que se podem chamar científicas, no sentido em que a economia política, a moral, a estatística, são ciências, mas a política em si mesma é uma arte tão prática como a conduta do homem na vida. O estadista que aprendeu a governar nos livros é um mito, e provavelmente os Pitts, os Bismarcks, os Cavours do futuro hão de se formar na mesma escola que eles. Conhecer o seu país, conhecer os homens, conhecer-se a si mesmo, há de ser sempre a parte principal da ciência do homem de Estado. Era um rei sábio o que dizia que para castigar uma província, o melhor seria entregá-la a filósofos políticos. Entre o espírito de reforma levado mesmo à utopia e o de sistema, há a mesma diferença que entre a fisiologia e a matemática. Há até diferença de temperamento. Os reformadores pertencem principalmente a duas classes, os sentimentais e os juristas. A tradição toda da palavra reforma, tomada primeiro à mais tranqüila de todas as histórias, a dos mosteiros, é conservadora, e encerra em si dois grandes sentimentos: o de veneração e o de perfeição. Perguntaram a Pausânias por que entre os lacedemônios não era permitido a ninguém tocar nas antigas leis: ‘Porque as leis’, respondeu ele, ‘devem ser senhoras dos homens e não os homens senhores da lei’. Este é o espírito de imobilidade voluntária, espírito enérgico de uma raça forte. ‘Há um povo’, diziam os deputados de Corinto, ‘que não respira senão a novidade, que não conhece o repouso, e não pode suportá-lo nos outros’. Este é o espírito de inspiração transbordante e de eterno movimento das raças de gênio, como a ateniense, a florentina e a francesa. Entre os dois extremos há o espírito combinado de conservação e aperfeiçoamento, privilégio superior das instituições muitas vezes seculares, como é, por exemplo, o Papado, na ordem religiosa, e, na ordem política, a constituição inglesa, ou a democracia suíça.

“Entre esse espírito de aperfeiçoamento gradual e o espírito sistemático, científico, radical, não há afinidade; há pelo contrário antagonismo, mesmo, como eu disse antes, de naturezas. O reformador em geral detém-se diante do obstáculo; dá longas voltas para não atropelar nenhum direito; respeita, como relíquias do passado, tudo que não é indispensável alterar; inspira-se na idéia de identidade, de permanência; tem, no fundo, a superstição chinesa – que não se deve deitar abaixo um velho edifício, porque os espíritos enterrados debaixo dele perseguirão o demolidor até a morte. A natureza intransigente é exatamente o oposto; mesmo o Racionalismo Jacobino de 1793 não é porém sistemático, arrasador, como o metodismo científico. Não há paixão, por mais feroz, que se possa comparar em seus efeitos destruidores à inocência da infalibilidade. Os Terroristas de Paris, ‘massacravam’ brutalmente como assassinos ébrios; os Teoristas inovadores amputam com a calma e o interesse frio de cirurgiões. Estes não conhecem a dificuldade que sentia Catarina da Rússia; escrevem as suas constituições na pele humana tão bem como no papel; lavram suas utopias na sociedade, a tiros de canhão, quando é preciso”.

Neste trecho exemplar, digno de um Edmund Burke (o único pensador político com quem Nabuco pode ser comparado, devido às semelhanças de temas abordados e de postura perante a vida), escrito em linguagem que não fica nada a dever a um Machado de Assis ou a um Eça de Queiroz (sim, Nabuco é um dos grandes estilistas da língua portuguesa), percebe-se o tom de um homem desiludido com qualquer campanha “abolicionista” que possa mudar o seu país. Afinal, o Brasil estava novamente tomado por outra teoria de escravos: o positivismo, esta ideologia disfarçada de ciência e que faria a cabeça dos defensores da República. É um período em que ele sente na própria carne a ironia da História: acusado de ser um dos responsáveis pela queda do regime que apoiava – o Império que se dissolvia aos poucos devido à Guerra do Paraguai e ao sistema escravocrata que, por fim, o sugou completamente -, agora era considerado um homem da oposição porque atacava a República com as únicas armas que possuía: a inteligência e as palavras.

Esta é a fase que Nabuco chamaria como a do “ostracismo”, mas ele não se acostumou com o ócio. Em apenas uma década (1889-1900) produziu os pilares de sua obra – além de Balmaceda e de A Intervenção Estrangeira durante a Revolta de 1893 (dois livros que devem ser lidos juntos), temos o já citado Um Estadista do Império, biografia monumental de seu pai, e os relatos autobiográficos Minha Formação e Minha Fé (conhecida com o título francês de Foi Volue). Não são livros simples ou os relatos de um homem amargo, também classificado por seus algozes como “nostálgico”. Vistos como um todo, formam um painel complexo de um Brasil indeciso entre a reforma e a revolução e que, por motivos inexplicáveis (pelo menos para Nabuco), escolheu esta última.

Nabuco foi na contramão do seu país. Decidiu-se pela reforma, definida da seguinte forma neste trecho de Minha Formação, memória autobiográfica que Gilberto Freyre não hesitou em comparar com A educação de Henry Adams: “(…) As reformas, as modificações serão governadas por algumas regras elementares. Uma destas será conservar do existente tudo o que não seja obstáculo invencível ao melhoramento indispensável; outra, que o melhoramento justifique – e para justificar não basta só compensar – o sacrifício da tradição, ou mesmo do preconceito que o embarga; outra regra é respeitar o inútil que tenha o cunho de uma época, só demolir o prejudicial; outra, substituir tanto quanto possível provisoriamente, deixando ao tempo a incumbência de experimentar o novo material ou a nova forma, para consagrá-lo ou rejeitá-lo; uma última, esta rara e extrema, será reformar no sentido originário da instituição, o mais antigo, procurando o traçado primitivo. Dessas regras resulta o dever de demolir com o mesmo amor e cuidado com que outras épocas edificaram. Nenhum explosivo é legítimo, porque a ação não pode ser de antemão conhecida; é preciso demolir a nível e compasso, retirando pedra por pedra, como foram colocadas”.

Na comparação entre a reforma e a revolução, segundo as palavras expostas por Nabuco, fica claro que a revolução só tem uma única regra: a de explodir tudo o que veio antes, sem nenhum critério. A defesa pelo resquício da tradição não tem o intento “conservador” (no sentido lato e distorcido que conhecemos). Trata-se somente de um fato prático que o reformador jamais pode esquecer, pois uma vez que se explode o passado, não podemos sequer imaginar construir um futuro. Nabuco percebeu isso na sua década de ostracismo, ao aproximar-se do catolicismo de que se afastara na juventude, culpa de sua admiração por Renan, o avô espiritual dos positivistas que ele criticaria na República de seu país. Novamente exilado em Londres – e com dívidas que ameaçavam o sustento de sua recém-constituída família – ele visitava constantemente o Oratório de Brompton e lá começou a refletir sobre como Cristo exige do homem uma constante reforma de seu próprio ser. Pouco a pouco, seu pensamento político se harmonizava com um pensamento religioso próprio de alguém que nunca aceitou ser um escravo da sua época. A religião era a substância que faltava, segundo ele, para que qualquer reforma fosse realmente eficaz: “A razão pela qual freqüentemente brilhantes reformas mais não fazem que aumentar a sede que pretendiam estancar consiste, via de regra, no exíguo conteúdo religioso que há nos movimentos políticos. Para homenageá-Lo, muitas vezes chamaram Jesus de revolucionário. Existem, em política, pouquíssimos revolucionários de sua escola. Revolucionários aspiram ao poder; Jesus a ele renuncia. Revolucionários têm as mãos cheias de leis; Ele as tem cheias de sementes. Revolucionários, se os matam, sua morte clama por vingadores; a morte de Jesus suscita Franciscos de Assis ou Vincentes de Paulo”.

Portanto, o seu retorno à religião foi um passo coerente para um político que nunca quis ser um funcionário público e sim um exemplo de estadista. Não seria isso apenas mais uma exibição de narcisismo, uma característica já marcante do jovem que outrora era conhecido como “Quincas, o Belo”? Neste nosso Zeitgeist, qualquer político que apareça com um senso de missão calcado nas dificuldades do real (e não nas mistificações de uma mudança inatingível), logo é classificado com os piores adjetivos possíveis. Quando alguém surge com magnanimidade natural nas ações e nas palavras, querem classificá-lo apressadamente com rubricas a que não podemos dar outro nome senão o depusilâmines. Não há nenhuma observação moralista no uso destas palavras; trata-se apenas de usar duas medidas de alma, a primeira aberta às exigências de uma situação concreta que deve ser analisada com o compasso da habilidade e da delicadeza, e a segunda fechada a qualquer detalhe do real que obstrua a coerência artificial de seu sistema.

O homem que escolhe não ser um escravo, seja da sua própria alma ou do espírito do seu tempo, é quem vive a magnanimidade; o pusilânime é aquele que se escraviza, apela para qualquer superstição e torna-se aquilo que T. S. Eliot chamou de carbuncular man. Por isso, não há nada errado em ser um exemplo de estadista. Contudo, apenas poucos podem dar-se ao luxo dessa escolha, feita nos recantos mais íntimos da pessoa e que, infelizmente, não possui nenhuma testemunha além dessa mesma pessoa para comprová-la.

Mas é possível uma outra maneira de vislumbrarmos essa decisão: através dos exemplos que escolhemos para nossa própria vida. Joaquim Nabuco procurou ninguém menos que o próprio pai, Nabuco de Araújo, para que o Brasil tivesse uma amostra do reflexo de sua vida interior na vida política – tanto de suas qualidades quanto do principal dilema que, oculto por anos, quase o deixou novamente escravizado.

Em Um Estadista do Império, publicado em três tomos entre 1898 e 1900 e concebido durante a crise da Revolta da Armada de 1893, Nabuco faz, na verdade, uma longa meditação sobre esta encruzilhada política chamada conciliação. A partir da biografia de seu pai, surge a seguinte pergunta: Como podemos conciliar visões de mundo opostas e que, no fundo, são inegociáveis? A busca por uma harmonia entre posições contrárias sempre foi uma característica marcante da política nacional, segundo Paulo Mercadante em seu admirável A Consciência Conservadora no Brasil. Esta tendência foi acentuada por Nabuco de Araújo, que, inclusive, ficou célebre no Império justamente por proferir no Senado um discurso sobre a conciliação entre “liberais” e “conservadores”, apelidado a ponte de ouro. O filho mostra, em quase mil e quinhentas páginas de uma biografia minuciosamente documentada e repleta de perfis saborosos de outros políticos da época, que o pai pautou a vida e a carreira política por um pragmatismo que nunca foi oportunista e que atendia a um ideal de excelência que a República jamais conseguiria alcançar.  Os críticos de Nabuco perguntam se seria realmente uma biografia confiável ou apenas uma hagiografia. Tal dúvida tem raízes na malícia: Nabuco admite que o pai, quando ocorreu o assunto da Questão Religiosa[2], não conseguiu fazer a tão desejada conciliação – pois ainda guardava alguns sabores anticlericais em sua visão de mundo e, mesmo sendo um católico praticante, entre a Igreja e o Estado, sempre teria pendores pelo último.

O fato é que Nabuco descobre em seu pai, talvez inconscientemente, que a busca pela conciliação pode-lhe trazer a ruína – ou, o que é pior, a sensação de impotência, sentimento que consumiu o herdeiro do senador imperial no final da vida, quando era embaixador republicano (ah, as ironias da História…) em Washington no início do século XX. No final de Um Estadista, Joaquim Nabuco faz suas as palavras de Edmund Burke, quando este tentava convencer um jovem francês de que a Revolução de 1789 era o começo de um mundo que prometia apenas a revolução pela revolução – e nada mais: “Não espero com as minhas opiniões modificar as vossas. Não sei mesmo se deveria fazê-lo. Sois jovem; não podeis guiar, deveis acompanhar a fortuna do vosso país. Mais tarde, porém, aquelas opiniões vos poderão talvez ser úteis em alguma futura forma que a vossa república possa tomar. Na forma presente ela mal pode continuar. Antes, porém, da sua resolução final há de passar, como disse um dos nossos poetas, por grandes variedades de existência nunca ensaiada e em suas transmigrações poderá ser purificada pelo fogo e pelo sangue”.

O jovem jamais entenderá o que o senhor mais velho disse – e Nabuco tentou fazer o oposto com a biografia de seu pai, buscando a conciliação entre o passado e o futuro. Entretanto, ele próprio percebeu-se como o resto de um passado. No seu interior, não havia conciliação entre a imagem de estadista sereno que queria passar ao público – talvez um reflexo do antigo Quincas, o Belo? – e o tormento da sua alma ao sentir a proximidade das garras da morte sem ter vivido plenamente a contemplação espiritual que desejava desde jovem. Nas anotações de seu diário da maturidade, escritas enquanto estava em Washington, ele descreve os efeitos da surdez na sua compreensão das pessoas e do mundo, o isolamento psíquico, os sonhos terríveis com cavalos negros que espreitam casas cobertas de nuvens carregadas de presságio. Temos a sensação de lermos as notas de um sobrevivente de guerra, especialmente ao testemunhar a partida de tantos amigos queridos. Nem mesmo a religião católica lhe dá o alento que espera: ele medita sobre A Imitação de Cristo, as vidas dos santos, inclusive sobre os diálogos de Platão, mas a inquietação permanece, borbulhando, à espera de um fim repleto de impasse.

Jamais saberemos se houve um desenlace – mas isso pouco importa. Afinal, a maior prova de que um homem jamais foi um escravo é justamente a sua capacidade de continuar a luta, seja externa ou internamente. Aquele que suporta até o fim o combate do espírito, sem dúvida contradiz o dito de Aristóteles sobre quem comanda e quem obedece, pois escolheu a liberdade interior que só a mudança constante lhe pode dar. A questão é, como diria um certo príncipe da Dinamarca, fazer a escolha. Joaquim Nabuco nunca imaginou, quando estava no British Museum, nos idos de 1883, que a decisão do país que procurava tanto aperfeiçoar estava ali, ao seu lado, encarnada no homem barbudo que escrevia uma obra contra tudo aquilo em que ele acreditava. Ao morrer, em 1910, o mundo estava prestes a abraçar a revolução de Marx. Enquanto isso, a reforma do verdadeiro estadista, aquele que escolhe conhecer-se a si mesmo, conhecer os homens e conhecer o seu país, entrava em um lento e doloroso eclipse. Como isto terminará? Certamente nenhuma atitude de conciliação poderá nos dizer.

 

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, mestre em Filosofia da Religião pela PUC-SP e Doutor em Ética e Filosofia Política pela USP (Universidade de São Paulo)

 


 

[1] Balmaceda foi republicado em uma edição primorosa pela Cosac Naify em 2008.

[2] “Em 27 de dezembro de 1872, o novo bispo de Olinda, dom frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, jovem capuchinho pernambucano, ordenou ao vigário da paróquia de Santo Antônio, no Recife, que exortasse o Dr. Costa Ribeiro, membro da Irmandade do Santíssimo Sacramento e maçom conhecido, a abjurar a maçonaria, ‘seita condenada pela Igreja’, acrescentando: ‘Se por infelicidade este não quiser retratar-se, seja imediatamente expulso do grêmio da irmandade, porquanto de tais instituições são excluídos os excomungados’. No mesmo sentido, expediu ordem aos vigários de outras freguesias, indicando outros membros de irmandades, que eram maçons conhecidos. A Irmandade de Nossa Senhora da Soledade, na Boa Vista (outro bairro da cidade do Recife), negou-se logo a expulsar do seu grêmio os irmãos que não quiseram abjurar a maçonaria, e imediatamente, em 5 de janeiro de 1873, frei Vital lançou contra a irmandade e a sua capela pena de interdito, que só deixaria de ter vigor pela retratação ou eliminação dos irmãos filiados à maçonaria. Como a matriz da Boa Vista, estavam as outras principais igrejas do Recife, e assim o interdito das capelas de irmandades importava a suspensão do culto público em toda a cidade por tempo indefinido.

“A agitação que se seguiu a esse ato no Recife foi grande, e sendo a maçonaria uma só em todo o país, levantou-se, de todos os focos maçônicos, o mesmo clamor contra o prelado que se mostrava resolvido a separar a maçonaria da igreja”. In: Um Estadista do Império. Topbooks, pp. 945-946.

 

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição n. 3, junho de 2009.

 




O desmembramento dos crimes


Sem título

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal entendeu, por maioria, que alguns dos novos crimes descobertos através de delações no âmbito da famigerada “Operação Lava-Jato” devem ser apreciados por outro juízo. Sinteticamente, alguns dos ministros, convencidos de que esses novos fatos não guardam relação com os que originaram a operação, determinaram que, quanto a alguns investigados, os processos devem ser distribuídos em São Paulo, local onde os delitos supostamente ocorreram, ficando, no próprio Tribunal, o processo em que figura uma senadora, dado o foro privilegiado.

Na imprensa, essa decisão soou com acordes políticos, sobretudo porque o voto condutor, no Pretório Excelso, foi lavrado por um ministro que teve relações muito próximas com um partido político envolvido no esquema investigado pela operação. Nessa linha, muitos brasileiros veem, na decisão, um precedente que pode retirar, de modo paulatino, o processo das mãos do juiz Sérgio Moro, que, na condução do processo, revelou-se um incansável combatente da corrupção.

Entende-se o receio que acometeu os brasileiros quando essa decisão foi noticiada, pois realmente não é comum ver tantos corruptos poderosos julgados, condenados e, principalmente, cumprindo suas penas, sem falar dos que estão, com ratificação dos tribunais superiores, encarcerados em decorrência de prisões preventivas. Com o perdão do lugar-comum, é tudo muito cinematográfico…

No entanto, esse receio precisa ser mais bem digerido pela sociedade, porque o precedente, se mantido, poderá se tornar vezeiro no Supremo, máxime porque a capilaridade da investigação rompe cada vez mais os limites imagináveis, e muitos outros delitos podem vir a ser descobertos. Destes, alguns podem não ter, como endossado pelo Supremo, relação com os crimes originários da operação, e, em consequência, serem remetidos para outros juízos.

Diante desse quadro, é imperioso pontuar que a decisão é juridicamente defensável. Isso porque as normas referentes à competência dispõem que, em regra, caberá ao juízo do local da infração apreciar e julgar o caso (Código de Processo Penal, art. 70). Especificamente na operação “Lava-Jato”, vários outros crimes relacionados aos originários foram descobertos por meio da colaboração premiada, e permaneceram sob a jurisdição da 13ª Vara Federal de Curitiba porque o Código de Processo Penal prevê que esses crimes, ditos conexos, são julgados pelo mesmo juízo; evitam-se, assim, possíveis decisões conflitantes.

Questionável, portanto, não é o desmembramento em si, pois é permitido no ordenamento jurídico. A problemática consiste na interpretação dos fatos, uma vez que a decisão se funda na premissa de que os novos delitos descobertos, embora conhecidos no âmbito da “Lava-Jato”, são alheios aos fatos que desencadearam a operação. E, tratando-se de interpretação, tudo se torna mais complexo, pois, como diria Sherlock Holmes, “as pessoas distorcem os fatos para que se moldem às suas teorias, quando na verdade as teorias deveriam se moldar aos fatos.

De outro lado, é preciso considerar que os crimes que estão sendo desvendados no âmbito dessa operação certamente serão bem apreciados por outros juízes, de modo que não é necessário temer que os processos, caso os fatos não guardem relação com os originários, sejam remetidos a outro juízo. Nesse momento, o mais adequado é depositar confiança nos magistrados que estarão à frente dos casos, porquanto também carregam consigo, temperado pela virtude da justiça, o sentimento de indignação com tantas falcatruas na máquina pública.

A propósito, em recente documento denominado Carta de Florianópolis, os juízes federais criminais, ante a repercussão do caso “Lava-Jato”, reafirmaram que “a sociedade pode contar com o comprometimento dos juízes federais criminais na continuidade dos trabalhos desenvolvidos [contra a corrupção], pois estamos preparados para os desafios que estão por vir”.

Assim, não há o que temer. Em Curitiba ou em outro local, espera-se que os fatos sejam apurados, apreciados, julgados, e que os envolvidos nesse esquema denominado pelo ministro Celso de mello de macrodelinquência governamental sejam punidos.

 

Lázaro Fernandes é bacharel em direito, secretário e gestor do Núcleo de Opinião Pública do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/10/2015, Página A-2, Opinião.