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Diário de Oxford

Opinião Pública | 28/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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Recentemente, fui para Oxford. “Turismo acadêmico”, até porque, por ali, toda academia é um ponto de visita para os curiosos e de estudo para os privilegiados: Merton, Queen’s, University, All Souls, Trinity, entre tantos outros colleges que encantam os visitantes e os estudantes por sua beleza arquitetônica e pela harmonia estética gerada pela conjunção dos edifícios com os vastos bosques e alamedas. Na cidade, não há um campus para sua universidade. Nem precisaria: a cidade inteira é o campus de sua universidade.

Há muitos pubs e livrarias. E, curiosamente, uns mendigos perdidos aqui e ali. Sempre exibindo um sorriso etílico e agarrados a um opúsculo, uma espécie de companheiro silencioso no último reduto em busca de uma vida ainda não vivida. Deve ser o resultado colateral do alto grau de concentração daqueles estabelecimentos naquela urbe milenar.

Num domingo de sol, depois de uma visita na biblioteca da universidade e de um pit stop num pub, resolvi dar o ar da graça na mais importante livraria de Oxford, a Blackwell’s. Passei pelo primeiro piso e deparei-me com a seção das obras mais vendidas. Como faço por aqui, ignorei solenemente aqueles pratos de lentilha editorializados. Dei um pulo no último piso, onde estavam as obras técnicas, e, depois, desloquei-me até as catacumbas daquela cave literária. Meu coração disparou de excitação.

Sem qualquer traço de poeira ou de umidade e iluminada como um grande magazine, lá, com algum tempo e sede bibliófila – afinal, a sede fisiológica já tinha sido saciada – comecei a fuçar nas obras usadas para venda. A maioria gozava de um excelente estado de conservação, a causar inveja para muitas de nossas bibliotecas públicas. E até mesmo para a minha modesta coleção de livros, sempre a ocupar um crescente “espaço vital” aqui em casa, para o desconforto de minha esposa.

Puxei um volume, com quase noventa anos, cuja lombada impressionou-me. Uma verdadeira pérola artesanal. Contudo, ao abrir a folha de rosto, fiquei mais impressionado ainda com o teor do texto, escrito à mão numa caligrafia irretorquível: “Este livro foi roubado de Mr. Adams”. Ri alto. Uma verdadeira pérola criminal. Digna de um ladrão de casaca. Depois do fato, encomendei umas obras usadas e fui embora.

No fundo, livros não têm donos. Sempre acreditamos que nada pode nos separar de nossos livros. Quando manuseio um de meus livros usados e vejo nele os nomes de seus donos sucessivamente, só posso concluir que, tenho roubado-o ou não, sou uma espécie de guardião temporal e que o fato dele estar sob minha custórdia, lícita ou ilícita, é meramente um breve episódio em sua longa história de vida.

Nunca roubei um livro. Ao menos se roubar significa tomar com a intenção de tirar permanentemente. Mas tenho uns livros “quase” roubados aqui na biblioteca, pois não foram devolvidos ainda. Em minha defesa, invoco o total desapego deles e a completa perda de contato com seus “futuros” antigos donos.

Para minha sorte, a maior parte deles mora no Exterior e não lerá essa minha encabulada confissão. Já para a outra, convém desligar meu celular e tirar a bateria do telefone fixo por uns dias. Só não espero acordar com um oficial de justiça na porta e na posse de um mandado de busca e apreensão.

Desconfio que a consciência dos bibliófilos é um tanto elástica moralmente. Eis um bom assunto para tratar na minha próxima direção espiritual. Enquanto isso, passo a rascunhar minha desculpa: “Roubar um livro não é um roubo, desde que não seja vendido depois”. Bentham iria gostar dessa. Ou: “Como, humildemente, não sou a conclusão suprema que um livro, com décadas de vida, almeja ter, logo, por não ser seu dono, não posso ser acusado, por minha consciência moral, de ser um ladrão”. Sócrates concordaria comigo.

Não será uma tarefa difícil. Afinal, é fácil revelar as intenções dos outros, como a do ladrão da Blackwell’s, quando elas são idênticas às nossas. Ou se parecem em muito. Mas o pior está por vir. Com a patroa, precisarei negociar mais “espaço vital“ para as obras encomendadas em Oxford, o que sempre significa um duelo de visões: onde eu vejo uma unidade orgânica, ela enxerga uma ameaça à habitabilidade do lar.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 28/09/2016, Página A-2, Opinião.