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A armadilha do preconceito

Opinião Pública | 29/12/2018 | | IFE CAMPINAS

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O filho ainda não falara oi para ninguém. Estavam em uma padaria quando o dono do estabelecimento se dirigiu à criança e disse:

— Oi!

O menino de quatro anos olhou para o senhor e falou:

— Oooi.

Foi um oi baixinho, bem mal falado, como o pronunciado por uma pessoa com grande dificuldade de falar. Mas o pai do menino estava exultante: o filho comunicara-se com eficiência e, melhor, a um desconhecido.

Porém, o senhor não pensou assim e completou:

— Que oi sem graça! Até o meu cachorro falaria melhor!

O pai não disse nada, mas o seu coração estava em pedaços. Sei bem o que se passava com ele porque o pai era eu. O meu filho autista tinha realizado um grande feito para a sua condição, mas o nosso interlocutor não viu dessa forma.

Já contei essa história para diversas pessoas. Com justa indignação, perguntaram-me o que falei, como reagi, se o tinha xingado, batido. Não fiz nada, porque minha tristeza naquele momento me deixou mudo. Também porque, logo em seguida, o senhor percebeu que havia cometido um erro. Começou a perguntar se meu filho gostava de sorvete e que poderia comer um se o quisesse. Mas não: agradeci e fui embora, não sem antes ele fazer alusão que se enganou e agora entendera que meu filho era diferente. Ok, tchau.

Conto mais uma vez essa história porque para mim ela foi educativa. Dizem que aprendemos com a dor e penso que foi o que realmente aconteceu nesse episódio.

Seria o típico caso para eu chegar em casa e escrever um textão no Facebook contando como é difícil viver em um mundo tão preconceituoso. Contar que as pessoas não aceitam quem é diferente. Que é inadmissível passar por essa humilhação. Poderia também dar o nome da padaria e pedir aos amigos que a boicotassem. Teria êxito? Não sei, mas me sentiria vingado e certo de ter feito a minha parte para que os autistas não fossem mais tão mal acolhidos. Entretanto, cometeria um erro.

Não? Pense comigo o leitor: aquele homem agiu de forma preconceituosa? Não, porque ele não tinha a menor ideia de que meu filho era autista. Não zombou de sua condição, porque sequer sonhava que estava cometendo tamanha gafe e dor para nós. Pela reação posterior dele, tive a certeza de que, se soubesse do transtorno, jamais teria proferido tal comentário infeliz.

Hoje, dia 22 de dezembro, fui comprar um fone de ouvido no shopping de Marília, onde passo alguns dias em férias. Meu filho está muito agitado, pois a falta de rotina o deixa abalado. Pois bem: entrou correndo e gritando na loja. Pedi que não gritasse e não corresse. O vendedor da loja disse, com um sorriso: “Deixe-o à vontade”. Em seguida, perguntou: “Ele é autista?” Respondi que sim, pensando na coragem dele de ser tão direto, afinal, poderia ter cometido uma gafe semelhante ao do dono da padaria. Ante minha resposta afirmativa, disse ter uma irmã que, por um problema congênito, vive em uma cadeira de rodas. E concluiu: “O seu está pulando contente, não?” Sorri de volta e não disse nada. Poderia ter respondido que não era bem contentamento, mas entendi o que ele quis dizer.

De onde veio tamanha empatia do vendedor? Do conhecimento. Por isso, acredito que temos de não cair na armadilha do preconceito. Sim, eu sei que ele existe, machuca e deve ser punido. Contudo, penso que o maior problema é a falta de ciência sobre as particularidades de cada um. Acredito que muitas vítimas de bullying não o seriam se lhes dessem a oportunidade de contar s suas histórias. O desconhecimento gera estranheza e afastamento. Muitas vezes, causa medo, tendo em vista que desconhecemos a reação que o outro pode vir a ter. Conhecer leva à empatia, à compaixão. Caso isso não aconteça, estamos ante a maldade, pois a pessoa sabe da condição da outra, mas a quer ferir: preconceito.

Assim, em um mundo que cada vez mais grita preconceito, talvez seja melhor bradar esclarecimento. Meu filho estuda há sete anos na mesma escola e sempre foi acolhido e respeitado por todos. Por quê? Porque as crianças o conhecem bem, seus pais e professores as ajudaram a compreender como deve ser difícil estar no lugar do colega que quase não consegue falar. Que quer brincar com os outros, mas não sabe como. Isso é verdadeira compaixão e é por uma sociedade assim que devemos lutar. E quando pessoas esclarecidas – e maldosas – agirem com preconceito contra o meu filho, tomarei todas as medidas ao meu alcance para que isso jamais ocorra, seja com o meu, seja com o seu filho.

Eduardo Gama é membro do IFE Campinas, Mestre em Literatura pela USP, professor de Redação e Literatura.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, Página A2 – Opinião, Edição de 26/12/2018.

Leandro Karnal e o autismo

Opinião Pública | 15/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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No dia dois de outubro, o professor Leandro Karnal ministrou uma palestra no Café Filosófico, na CPFL Cultura. Muito concorrida, como de costume. Fui testemunha porque, como moro perto do local, passava por lá de carro e pude ver a fila que se formou para escutá-lo.
Ao que tudo indica, a palestra foi brilhante. Contudo, ao fim da apresentação, uma senhora fez uma pergunta ao professor: por que insistia em usar o termo autismo como metáfora de pessoas isoladas, que se distanciam dos outros? A resposta de Karnal não poderia ter sido mais equivocada. Lamentou o politicamente correto reinante na sociedade e o patrulhamento de palavras que ocorre na sociedade de hoje. E ainda publicou o vídeo na internet.
Breves parênteses: um dia antes, ocorria um novo massacre nos Estados Unidos. Um homem de 30 anos, Christ Mintz, teve um gesto heroico: acionou o alarme, avisou os alunos para fugirem e voltou ao lugar onde estava o atirador para fazer algo. Antes de levar o primeiro tiro, pediu para não ser alvejado, pois naquele dia seu filho completava seis anos. O filho é autista. Mintz levou sete tiros, mas passa bem.
Fiz esses breves parênteses, porque sei que os pais e as mães de crianças nessa condição fariam o mesmo. O primeiro pensamento que nos vem à mente são sempre nossos filhos, que dependem tanto de nós. Certo, todo filho precisa de seus pais, mas o que dizer dessas frágeis criaturas?
Nós, pais de crianças com autismo, não queremos policiar as expressões de ninguém, não queremos impedir qualquer pessoa de falar sobre autismo. Pelo contrário: quanto mais gente, ainda mais da capacidade intelectual de Karnal, tocar no assunto, melhor. Mas do modo correto, que impeça o preconceito. Sei que a intenção do professor não foi má, porém, a pergunta da senhora também não foi.
Sabemos que poucas pessoas sabem como lidar com os nossos filhos. Não é fácil. Quando a criança busca um canto para se refugiar, pensa-se que ela não gosta dos outros, que prefere mexer as suas mãozinhas ou fazer sons estranhos. Mas, hoje já se sabe que os autistas têm interesse pelos outros. O problema é que eles não sabem como interagir com as pessoas, nem elas com eles. Não é um mundo à parte, mas diferente.
Um colega contou-me que escutou a conversa entre dois alunos de treze anos. Um disse: “Fui ao Mac Donalds outro dia e o atendente era down. Sabe o que eu fiz? Pedi um Mac down”. É essa a sociedade que queremos? Meu colega corrigiu com veemência o aluno e explicou que aquela pessoa era uma vitoriosa, assim como sua família, pois lutaram e lutam para que o portador da síndrome tenha uma vida digna.
Portanto, não se trata de politicamente correto, de patrulhamento. Trata-se de vidas, de pessoas que amam seus filhos e querem proporcionar-lhes, dentro de todas as suas limitações, o melhor possível.
Acabei de ler a edição espanhola do livro de Josef Schovanec, “Je suis à l’Est”. Schovanec, além de autista, é filósofo, escritor e militante pelos direitos dos autistas. Na obra, descreve que, quando era criança, tinha medo dos coleguinhas: “No plano social, estava sozinho. Tinha medo dos outros; infelizmente, por uma boa razão: recebia pancadas diariamente.” Em outro trecho: “As crianças sabem logo quem será popular e quem será rechaçado. A sociedade dos adultos é similar, mas sua hipocrisia mais refinada: em lugar de bater diretamente, utilizam expressões de exclusão, certas atitudes, para atingir um objetivo mais ou menos análogo.”
Hoje, Schovanec tem 30 anos e ainda se lembra dessas feridas. Eu desejo uma sociedade mais humana. Desejo que meu filho não passe por isso.
Aliás, sr. Karnal, a senhora que fez a pergunta é autista.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE-Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/10/2015, Página A-2,Opinião.