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Kafka à beira do abismo (por Rodrigo Duarte Garcia)

Literatura | 23/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ilustração: Paulo von Poser

 

Em um de seus poemas mais famosos, Eugenio Montale pedia que dele não esperassem a fórmula do mundo, mas apenas sílabas torcidas e secas como um ramo. São dois versos e uma assombrosa explicação do que deve ser a literatura e, principalmente, do que ela não deve ser. Montale procurava apenas retratar a realidade em colagens e imagens móveis, fugindo da armadilha de tentar conformá-la a esquemas conceituais, o mundo como idéia de que nos fala Bruno Tolentino. A existência não pode mesmo ser resolvida e representada em fórmulas matemáticas embaladas a vácuo. A obra de arte ordena as trevas da vida – em sílabas torcidas e secas como um ramo -, e a impulsiona imortalizada à frente, com todas as imperfeições inevitáveis da linguagem.

A literatura é, assim, essencialmente o resultado da fissura que existe entre as palavras e a realidade, essa brecha inevitável diante de todas as limitações do conhecimento humano perante a complexidade e o mistério do mundo. Ao defrontar-se com a grandeza da existência e seus dramas intrincados – a solidão, a finitude, o mal, enfim, todos os pontos que definem os paradoxos do ser -, o autor é inevitavelmente impelido a tomar partido por uma de duas posições que, a bem da verdade, podem ser resumidas no respeito diante do assombro ou uma certa arrogância. A tentativa orgulhosa de aprisionar toda a tensão do real em sistemas abstratos encerrados em si mesmos, ou aceitar com prudência o mistério da realidade e a limitação da linguagem para exprimi-lo, renunciando a uma onipotência artística impossível.

É essa, por exemplo, a escolha de Joseph Conrad, que sabia ser a missão do escritor a de apenas fazer o leitor ver e sentir a voragem do abismo. Ou a de Manuel Bandeira e suas platitudes: “Se há estrelas no céu, refleti-las. / E se os céus se pejam de nuvens, / como o rio, as nuvens são água, / refleti-las também, sem mágoa, / nas profundidades tranqüilas”. E também a de Shakespeare, que levava às últimas conseqüências a lição de Hamlet à companhia de atores:

 “[…] qualquer coisa exagerada foge ao propósito de representação, cujo fim, tanto no princípio como agora, era, e é, oferecer um espelho à natureza; mostrar à virtude seus próprios traços, ao ridículo sua própria imagem, e à própria idade e ao corpo dos tempos sua forma e aparência” (Hamlet, Ato 3, cena 2, 19-24; trad. Anna Amélia Carneiro de Mendonça).

 Se ao artista é mesmo exigida uma posição firme frente à realidade que pretende retratar, o verdadeiro criador – de Dante a Bach a Turner – é exatamente aquele que toma o mistério da existência como a sua premissa mais importante. Mário Ferreira dos Santos dizia que no sublime há sempre algo de misterioso, algo que infunde na alma temor e beatitude. E se – em seu impulso à eternidade – a grande arte busca o belo e o sublime, ela precisa necessariamente conter, ainda que de maneira subjacente, os fundamentos transcendentes do ser.

Por outro lado, a exigência de que se tenha como princípio estético esse assombro perante as tessituras da realidade de maneira alguma equivale à defesa de uma arte estritamente religiosa. O exemplo da pintura holandesa – o insight é de Hegel, na Estética – é bastante esclarecedor, porque, embora a arte flamenga do Século de Ouro estivesse completamente inserida no contexto do calvinismo e do horror à representação de imagens sagradas, ela ainda assim se assentava sobre uma base metafísica. É notável verificar como mesmo aqueles temas profanos – as paisagens, as naturezas-mortas, todas as cenas do quotidiano – estão sempre ancorados em luzes e cores de uma visão de mundo transcendente, nesse profundo respeito pelo mistério da existência, o inesauribile segreto de que falam Ungaretti (“Ali chega o poeta / e depois regressa à luz com seus cantos / e os dispersa / Desta poesia / me sobra / aquele nada / de inesgotável segredo“; trad. Geraldo Holanda Cavalcanti) e o Drummond de Claro Enigma.

Na longa história da literatura, as grandes obras foram sempre construídas sobre esses pilares metafísicos da realidade, mas não muitos autores fizeram do próprio mistério do mundo o seu projeto, como de maneira universal o fez Franz Kafka. Dirigindo a luz da literatura para os recantos mais escuros e insondáveis da natureza humana, ele de fato não apenas tomava os fundamentos transcendentes do mundo como sua premissa estética. Muito além, Kafka fez do mistério o seu tema central. E o resultado, como nos diz Borges, são parábolas sobre a relação moral do indivíduo com a divindade e o universo, uma obra feita de fábulas terríveis que retratam em fragmentos toda a agonia da existência.

O peso desse mistério existencial foi mesmo a constante que acompanhou Kafka durante a vida inteira. Na Carta ao pai (1919), é ele próprio quem diz: “Desde que comecei a pensar, tive uma preocupação com a afirmação espiritual da minha existência que tudo o mais me foi indiferente” [1]. De fato, tudo o mais lhe foi indiferente, e essa preocupação – com todos os assombros de estilo – acabou refletida inteiramente na obra que Kafka se propôs a construir. Ele costumava dizer que havia passado o tempo a escrever e representar os seus piores pesadelos, de maneira que “não sobrou muito da vida”.

Vida que enfim lhe foi curta e relativamente sem emoções: nascido em Praga, no verão de 1883, Kafka passou ali quase toda a existência. Formou-se em direito e trabalhou como advogado para algumas companhias de seguro, utilizando todo o tempo livre – que incluía temporadas de convalescença devidas à tuberculose que viria a matá-lo – para escrever. Sentia-se terrivelmente oprimido em sua relação com o pai, que desprezava o ofício de escritor e a literatura como um todo. Embora tenha chegado a envolver-se com algumas mulheres, havendo inclusive frustrado dois noivados com Felice Bauer, Kafka nunca se casou e acabou morrendo aos quarenta anos, em um sanatório nos arredores de Viena.

A obra de Franz Kafka é composta de fragmentos móveis e colagens, à maneira justa e dolorosa dos paradoxos que percebia na realidade. São contos, novelas e romances que – em um estilo transparente lapidado nas leituras de Flaubert, Swift e das Sagradas Escrituras – retratam o respeito pelo mistério do mundo e todo o assombro da existência.

Se de um modo ou de outro toda arte tem pretensão ao realismo, Kafka buscava representar em formas novas essa realidade psíquica do espírito atormentado e espantado pelo mistério. As atmosferas criadas em sua obra remetem a terras devastadas, campos estéreis de inverno, labirintos burocráticos, catedrais arquitetonicamente incorretas e aldeias isoladas, perdidas na neve. Do mesmo modo, cada personagem é sempre construído conforme o plano de um intermediário com o inefável em suas formas mais terríveis: o mal e a culpa. Por isso talvez seja mesmo impossível amar um personagem de Kafka. São anti-heróis burocratas, agrimensores e caixeiros-viajantes por quem experimentamos às vezes – e no máximo – uma certa pena, mas é só.

A verdade é que, para retratar a face mais terrível da realidade, Kafka renunciou a uma arte que buscasse o belo e atirou-se de cabeça a uma representação do sublime, tal como o entendia Edmund Burke, em seu A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, de 1757: aquele delight fundado no terror que despertam em nós a vastidão e o infinito, o atributo artístico psicológico que infunde no receptor uma sensação de terror, aliada entretanto à margem de segurança da consciência serena de que, na realidade, não se está a correr perigo algum. É essa, por exemplo, a experiência que nos marca quando lemos em Melville a descrição da batalha travada entre Ahab e Moby Dick. Kafka, porém, levou essa empreitada da representação do sublime às últimas conseqüências. Porque, em suas obras, o horror não apresenta margem de segurança alguma. Muito ao contrário, faz aflorar a consciência assustadora de que o perigo está sempre à espreita e é inerente à existência humana.

As imagens simbólicas e transcendentes permeiam toda a obra de Franz Kafka, e – ao contrário do que se poderia supor -, seus escritos não deixam de ser uma afirmação de fé e esperança. A angústia metafísica não é desespero. No melhor estilo do que propõe Kierkegaard, ela é apenas a conseqüência da fé difícil que vem de uma agonia. Em um aforismo famoso, Kafka dizia que “a fé é como uma guilhotina, tão leve, tão pesada”. Mas o fato é que este ato kafkiano de fé não propõe modelos ou algum tipo de resposta exata: é de certa forma uma abstenção, uma suspension of disbelief elevada à segunda potência, nos limiares da sanidade. Em muitos momentos, o respeito que ele demonstra pelo mistério toma mesmo ares de uma completa incomunicabilidade [2], que, entretanto, a sua grandeza espiritual não seria nunca capaz de conceber.

Kafka era um judeu heterodoxo – “às portas de um cristianismo em que é incapaz de entrar”, segundo Otto Maria Carpeaux – e que, em todo caso, sentia-se incapaz de dar uma resposta a certas perguntas da existência. Pelo que enfim devemos agradecer imensamente. Tolstoi foi irrelevante quando se propôs a fundar uma nova religião e passou a escrever fábulas de um cristianismo água-com-açúcar. Franz Kafka nunca teve pretensão semelhante. Para ele, as possibilidades deixadas em aberto representam sempre uma recusa consciente.

Mário Ferreira dos Santos dizia que a unidade do verdadeiro artista está no fato de que a transposição de cada limite e de cada fronteira não implica jamais um salto no abismo, mas sempre uma preparação para a transfiguração. Que em Kafka nunca vem – e não por perversão ou niilismo. O anti-clímax e a ausência de redenção refletem justamente essa renúncia de Kafka a pretender resolver artisticamente os paradoxos do ser. Mas também não era um pessimista, pois sabia que, apesar das sombras, do peso da culpa e do mal no mundo, há sempre a esperança em algo além. Kafka nos traça uma janela apavorante no mais das vezes, mas verdadeiramente aberta ao infinito.

Franz Kafka realmente não pretendia explicar o mundo por meio da literatura e, a bem da verdade, parecia possuir um verdadeiro terror de que os leitores o tomassem – e a sua obra – como fio condutor para o que quer que fosse. E talvez tenha sido justamente esse repúdio por um papel sagrado – que efetivamente não lhe podia pertencer – o motivo pelo qual pediu que os seus escritos fossem queimados pelo amigo e testamenteiro Max Brod, no que foi sabidamente desobedecido. Em um pequeno conto das Narrativas do espólio (1914-1924), é inevitável pensar em Kafka como o guarda que, ao ser consultado por alguém sobre direções e caminhos a serem tomados, responde: “De mim você quer saber o caminho? Desista, desista”. E podemos ler no mesmo contexto as últimas linhas do conto “Uma folha antiga”, de Um médico rural (1919): “A nós, artesãos e comerciantes, foi confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar”.

Do escritor não se deve mesmo exigir nada além de sílabas secas como um ramo. Porque a arte em si não redime nada, não pode salvar ninguém. A narração e a memória podem perpetuar tanto a luz da salvação quanto a treva da mais terrível perdição. É exatamente a questão que Ian McEwan propõe em Reparação: “Como pode um romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação, ela determina os limites e as condições” (trad. Paulo Henriques Britto). McEwan conta o caminho da expiação de uma culpa antiga por meio da literatura e a sua conclusão é o desespero, o reconhecimento tardio de que “desde o início a tarefa era inviável”. Em uma cena famosa de A metamorfose (1912) – considerada por muitos como a obra-prima de Kafka -, Gregor Samsa é atraído à sala de estar pela música do violino tocado por sua irmã e, arrastando-se sob a forma de um inseto asqueroso, quer ser redimido de sua condição pelo belo e pela identificação com aquilo que nos torna homens. E é na frustração e no anti-clímax desse objetivo que somos mais uma vez confrontados com a verdade dura de que, se a arte humaniza e civiliza, em última análise não salva ninguém.

O mistério da salvação foi um tema muito caro a Kafka. Em duas de suas obras principais, O Processo (1914) e O Castelo (1922), a questão é vista sob pontos de vista diametralmente opostos, mas complementares. A primeira – O Processo – conta a trilha circular de Josef K., “detido sem ter feito mal algum”, e que passa a buscar os motivos desse processo ao mesmo tempo em que tenta ser absolvido das acusações feitas por um tribunal insondável. Kafka dizia que o Juízo Final é uma corte marcial permanente, e é justamente essa realidade transcendente que ele parece querer retratar nos fragmentos de O Processo: a sombria noção de um pecado original talvez irremissível e de uma divindade de quem muito pouco ou quase nada se pode saber. A impressão que temos é a de que o mal percebido por ele é tão grande que a própria idéia de salvação lhe parece bastante improvável. E Josef K. revolta-se: “Não há dúvida de que por trás de todas as manifestações deste tribunal […] se encontra uma grande organização. […]. E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários? É impossível, nem o supremo magistrado teria êxito”.

Por outro lado, há a perspectiva da personagem Leni, uma mulher lá não muito casta, por assim dizer, mas que aponta o caminho para Josef K.: “Por favor, não pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não seja mais tão inflexível, contra esse tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão. Na próxima oportunidade, faça essa confissão. Só aí existe a possibilidade de escapar – só aí. No entanto, mesmo isso não é possível sem ajuda externa”. Reconhecer a própria miséria, humilhar-se e talvez contar com a ajuda da graça divina, mas Kafka não parece admitir esse socorro gratuito com muita facilidade. E Josef K. também não parece muito empenhado em acatar o conselho de Leni e empreender qualquer tentativa de auto-conhecimento de suas próprias faltas, preferindo investigar os motivos externos que poderiam ter originado o seu processo. A questão da culpa e da necessidade de uma autoconsciência das próprias falhas humanas já havia sido tratada como tema central da pequena obra-prima Na colônia penal (1914), sobre a máquina terrível que usa uma espécie de rastelo para imprimir o castigo das sentenças no corpo dos condenados.

De uma forma ou de outra, Kafka faz do percurso individual a única possibilidade de salvação. Em O Processo, ele diz: “Nada que seja comum pode se impor contra o tribunal. Cada caso é examinado em si mesmo, é o tribunal mais cauteloso que existe. Portanto, não se pode obter nada numa ação conjunta, só um indivíduo isolado às vezes alcança alguma coisa em segredo – e só quando o alcança é que os outros ficam sabendo; ninguém sabe como aconteceu”. É o mesmo ponto de vista mostrado no conto “Diante da Lei”, de Um médico rural – também uma parábola incorporada a O Processo -, em que existe uma única porta e via de salvação para cada indivíduo. E as perspectivas de alcançá-la não parecem nada boas. No final, a morte de Josef K. – “como um cachorro” – reforça a consciência de que, embora a existência e a salvação sejam um mistério a que aspiramos em nossa condição humana caída, não podemos obter todas as respostas. E nem Kafka se propõe a fornecê-las.

Se em O Processo esse mistério da salvação é apresentado sob uma perspectiva “de cima para baixo”, O Castelo inverte completamente as premissas e coloca a questão sob uma ótica oposta. Otto Maria Carpeaux dizia que O Processo narra o processo de Deus contra o Homem, ao passo que em O Castelo, ao inverso, é o Homem quem move um processo contra Deus. O romance conta a história de K., o agrimensor que chega no meio da noite a uma aldeia isolada e envolta pela neve e a névoa escura. Aparentemente contratado pelo conde do lugar, ele passa então a buscar a sua admissão no Castelo – repetida e sumariamente recusada – e é confrontado com uma infinidade de situações absurdas, entre a inacessibilidade das autoridades oficiais e a contradição que reina entre todas as suas ordens. K. persiste e persegue obsessivamente as respostas que não lhe podem ser dadas. A história é uma narração épica e metafísica do homem em busca de sentido, em busca da salvação. E a atmosfera em que o enredo se dá é idêntica a de um daqueles pesadelos terríveis em que tentamos chegar a certo lugar sem nunca conseguir. Borges comparava o drama kafkiano de O Castelo a uma renovação literária do famoso paradoxo de Zenão de Eléia: a flecha não pode jamais alcançar o seu alvo porque precisa antes passar por sucessivos pontos intermediários ad infinitum.

Kafka costumava dizer que por impaciência fomos expulsos do Paraíso e também por impaciência é que não chegamos à vida eterna. Porque a impaciência conduz ao desespero. E o desespero está sempre a rondar o agrimensor K., em O Castelo: “Certamente essa permanência e essa espera inúteis, dia após dia, que sempre se renovam sem qualquer perspectiva de mudança, que esmagam, tornam a pessoa incerta e, no final, até mesmo incapaz para qualquer outra coisa que não seja esse ficar sem fazer nada desesperado”. A tentação da angústia é transformar-se em desespero. Daí a importância dessa paciência que vem de uma fortaleza sobrenatural. Kierkegaard afirmava que, ao contrário da justiça e da coragem, a paciência é a virtude mais difícil de retratar e simbolizar poeticamente. O insight é interessante e Kafka talvez tenha conseguido esse prodígio na representação da perseverança de K.
em suas andanças perdidas entre borrascas de inverno e os becos sem saída que nunca o levam ao Castelo. E essa paciência vem-lhe da certeza de uma vocação insondável: afinal, “o que poderia ter me atraído para este lugar ermo se não fosse o desejo de permanecer aqui?”

Mas a perseverança de K. tem algo também de diabólico, da justificação auto-suficiente e a qualquer custo pelas próprias obras – à mesma maneira descrita em O Processo -, sem recurso à graça divina ou sequer aceitação da sua possibilidade. K. pretende alcançar o Castelo exclusivamente por seus méritos, mesmo porque não lhe parece haver outra hipótese possível. As tribulações do caminho representam para ele a certeza do abandono definitivo de um deus absconditus, e é confrontando essa impressão que a personagem Olga lhe diz: “Existem obstáculos, pontos discutíveis, decepções, mas isso significa apenas aquilo que já sabíamos antes, que nada será dado de presente a você”.

Apenas nas últimas e inacabadas páginas do romance é que K. toma consciência dessa impossibilidade de extorquir a salvação a fórceps. No diálogo final, ele percebe enfim que as suas tentativas de chegar ao Castelo com mãos de ferro são “como se nós dois tivéssemos nos empenhado muito, com bastante ruído, infantilmente demais, inexperientes demais, para alcançar algo que, por exemplo, com a tranqüilidade, a objetividade de Frieda, tivesse sido fácil de ganhar, fácil e imperceptivelmente; como se esperássemos obtê-lo através do choro, arranhando, puxando, à maneira de uma criança que puxa a toalha da mesa mas não consegue nada, apenas põe abaixo todo o esplendor exposto e o torna inacessível para sempre”. A tentativa empreendida durante toda a história de alcançar o Castelo à força é a perdição de K. Ao fazê-la, torna as portas do Paraíso inacessíveis para sempre. “Quem quiser salvar a sua vida, a perderá”, diz o Evangelho. A perseverança de K. era, desde o início, apenas um anúncio do seu fracasso.

O universo de Kafka é feito exatamente dos paradoxos e vielas obscuras que infundem no leitor essa perplexidade frente à verdade exposta de que certas coisas simplesmente não podemos conhecer. A realidade é misteriosa e a literatura de Franz Kafka espelha os fragmentos desse mistério, o terror de nossas limitações em face de toda a vastidão que envolve a existência humana. Em um grande ensaio, Samuel Johnson conta a lenda do monarca oriental que possuía um empregado apenas para lembrá-lo de sua mortalidade. Todas as manhãs, em determinada hora, o homem gritava: “Remember, prince, that thou shalt die“. A obra de Kafka é esse oficial de plantão, lembrando-nos a cada momento do mistério que circunda cada vão de nossas misérias. E, diante disso, o impulso que nos assalta é o de repetir-lhe o que sussurra ao médico o paciente do conto Um médico rural, no livro homônimo: “Em vez de me socorrer, está tornando mais estreito o meu leito de morte”. Franz Kafka não queria socorrer ninguém. Ele não podia socorrer ninguém. E a verdade é que autor nenhum pode. Olhando de frente o mistério do mundo e todos os seus abismos, Kafka segue à risca os versos de Montale e oferece apenas as sílabas torcidas e secas que tornam mais estreito e incômodo esse nosso leito de dor.

Rodrigo Duarte Garcia, poeta, escritor e ensaísta, é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, vice-presidente do Instituto de Formação e Educação e trabalha como advogado em São Paulo.


NOTAS:

[1] Todas as transcrições da obra de Kafka remetem aqui às traduções de Modesto Carone ao português, nas edições da Companhia das Letras.

[2] No pequeno conto “O novo advogado”, de Um médico rural (1919), o narrador afirma: “mas ninguém, ninguém, sabe guiar até a Índia. Já naquela época as portas da Índia eram inalcançáveis, mas a direção delas estava assinalada pela espada do rei. Hoje as portas estão deslocadas para um lugar completamente diferente, mais longe e mais alto; ninguém mostra a direção; muitos seguram espadas, mas só para brandi-las; e o olhar que quer segui-las se confunde”.


Texto originalmente publicado na revista-livro Dicta&Contradicta (Edição nº 1, Junho/2008) do Instituto de Formação e Educação (IFE). Disponível [online] também em <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-1/kafka-a-beira-do-abismo/>.

Dom Quixote e a superação da melancolia (por Renato José de Moraes)

Literatura | 26/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é um clássico autêntico. Segundo as sempre discutíveis normas de “leituras obrigatórias para se chamar culto”, a obra de Cervantes costuma estar entre as primeiras leituras exigidas. No entanto, referir-se a uma “obrigação de ler” quando falamos do Quixote soa estranho, pois fruir do livro de Cervantes é antes um enorme prazer, uma autêntica dádiva! O mesmo não acontece com a maioria dos livros chamados “canônicos”, muitos dos quais têm o dom de enfadar e afastar da leitura as vítimas que se julgam obrigadas a enfrentá-los (não vamos citar exemplos, para evitar ferir suscetibilidades…).

Cabe então perguntar: por que Dom Quixote é um livro tão bom? Qual a razão de ser sempre contemporâneo a nós, muito mais do que a quase totalidade dos livros recém-lançados? Como Cervantes tornou a sua criação um dos livros mais importantes e deliciosos de todos os tempos?

Responder a essa pergunta não é fácil. A apreciação da grande arte dificilmente pode ser traduzida em palavras ou raciocínios. Antes, experimentamos que algo é grandioso e excepcional, mas não sabemos explicar exatamente o porquê. Há um mistério da arte, que tocamos de maneira especial ao examinar um livro como Dom Quixote. Apesar dessa dificuldade, vamos tentar traçar algumas considerações que nos ajudem a desfrutar dessa leitura, ao mesmo tempo em que buscamos desvendar parte desse mistério próprio da arte.

Comecemos com a vida de Cervantes. Sua personalidade formou-se em um ambiente peculiar – a Espanha do final do século XVI e início do século XVII -, durante uma vida cheia de percalços e aventuras, elementos todos que se refletirão em sua obra. Assim, é importante conhecer algo da vida do criador, de modo especial os eventos marcantes, que nos esclarecerão aspectos do seu livro.

Miguel de Cervantes y Saavedra nasceu, provavelmente, em 29 de setembro de 1547, em Alcalá de Henares, uma cidade de Castela. Sua família não tinha lá muitos meios econômicos, e seu pai, um modesto cirurgião, chegou a ser preso por dívidas. Em 1569, publicou a sua primeira poesia, e nesse mesmo ano foi para a Itália, fugindo por haver ferido em duelo um fidalgo (embora não seja certa essa atribuição, pois há quem argumente que se trataria de um homônimo).

Pouco depois, em 7 de outubro de 1571, participou da batalha naval de Lepanto, destacando-se pelo heroísmo. Nesse evento singular, por ele mesmo descrito como “a mais alta ocasião que viram os séculos passados, os presentes, e que não esperam ver os vindouros”, teve a mão ferida em combate.

Em 1575, quando voltava para a Espanha, seu barco foi capturado por corsários turcos, que o levaram cativo para Argel, onde passaria cinco anos. Neste período, tentou fugir quatro vezes, sempre levando seus companheiros; capturado todas as vezes, sempre assumiu diante das autoridades turcas a responsabilidade pelas tentativas de fuga. Decidiu-se deportá-lo para Constantinopla, de onde a fuga seria impossível. No dia 19 de setembro de 1580, quando já estava no navio “com duas correntes e um grilhão”, dois padres trinitários trouxeram a quantia exigida pelo seu resgate e o libertaram.

Ao voltar à Espanha, Cervantes relacionou-se com uma mulher casada, com a qual teve uma filha, Isabel. Em 1584, casa-se com Catalina de Salazar y Palacios, jovem de 22 anos. No ano seguinte, publicou La Galatea, uma novela pastoril. Durante esses anos, trabalhou como provedor de mantimentos para as galeras reais, e foi acusado – tudo indica que injustamente – de haver vendido trigo sem autorização, o que acarretou em sua primeira prisão, em 1592. Seria preso novamente em 1597, por não pagamento de dívidas, em conseqüência da quebra do banqueiro junto ao qual depositara quantias relacionadas com o seu trabalho. Foi nesses três meses de cárcere que começou a escrever o Don Quijote de la Mancha

A primeira parte deste livro foi publicada em 1604, e seu sucesso foi grande e imediato; no entanto, não acabaram aí as dificuldades na vida do nosso herói. Em 1605, uma pessoa foi morta em frente à sua casa em Valladolid, e esse fato levou-o novamente à prisão por uns poucos dias, sendo depois comprovada a sua inocência. E não faltaram falatórios suspicazes sobre a moralidade do seu lar, no qual também moravam as suas irmãs.

A partir de 1613, impulsionados pelo sucesso de Dom Quixote, foram publicados outros livros de Cervantes, sendo o último o já póstumo Persiles y Segismunda (1617). O êxito literário que encontrou junto ao público não trouxe consigo o reconhecimento das suas excepcionais qualidades de escritor pelos seus “colegas de profissão” (afinal, dizem que “é a inveja que move o mundo”…). Numa época em que os livros eram caros e os direitos autorais oscilavam entre míseros e inexistentes, a remuneração de um autor dependia essencialmente de mecenas, a que tinha acesso por meio dos seus pares; e o resultado foi que Cervantes encontrou na miséria uma companheira constante dos seus anos.

Morreu em Madri, em 22 de abril de 1616, e foi enterrado em um convento de freiras trinitárias, entre as quais talvez estivesse a sua filha Isabel de Saavedra. As monjas mudaram-se pouco depois para outro convento, e com isso perdeu-se o rastro do seu túmulo. Por isso, não é possível hoje identificar os seus restos.

Esses poucos dados da vida de Cervantes servem para mostrar um aspecto um tanto surpreendente: a antítese entre uma existência cheia de desilusões e dificuldades, e uma obra com um fundo alegre e otimista.

Realmente, Cervantes nada tem de atormentado, mas mostra-se alguém que cresce diante das dificuldades sem se deixar abater por elas. Mais ainda, parece que o sofrimento torna o seu humor mais aguçado e verdadeiro, porque não esquecia a realidade da aflição e da desgraça. Em certo sentido, podemos aplicar a ele os versos de Manuel Bandeira, tão distantes do modo de pensar hedonista e burguês:

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Nesse mesmo sentido, impressiona a serenidade com que escreve sobre a morte que se avizinha, em uma dedicatória na qual cita uns versos então bem conhecidos:

Puesto ya el pie en el estribo,
con las ansias de la muerte,
gran señor, ésta te escribo.

“Ontem deram-me a extrema-unção, e hoje escrevo esta; o tempo é breve, as ânsias crescem, as esperanças mínguam, e com tudo isso levo a vida com o desejo que tenho de viver […]. Mas se está decretado que tenha de a perder, cumpra-se a vontade dos céus”.

Um livro como o Dom Quixote só podia ser produzido por alguém com essa têmpera. As dificuldades da vida não foram capazes de criar nele o desespero ou a amargura – tão característicos de uma época de vitalidade mais frágil, como a nossa -, mas serviram de fundamento para uma construção artística otimista e admirável. Penso que a maioria de nós, se tivéssemos passado pela metade do que sofreu Cervantes, se encerraria provavelmente em um quarto escuro, remoendo as próprias amarguras e refletindo sobre como o mundo é injusto e como todos são infelizes. Já o nosso autor relevou – melhor ainda, assimilou – tudo isso e o plasmou no Quixote.

Por mais interpretações negativas que se tenham formulado sobre esta obra (“sublimação do fracasso”, “sarcasmo amargo”), por mais que tenham tentado descobrir nela amargura e supostas “tragédias”, o Dom Quixote é inegavelmente um livro humorístico, e mais, de um humor leve e amável. Essa opinião, sustentada por Martín de Riquer no admirável estudo Cervantes y el “Quijote”, também encontra guarida no Prólogo do livro, em que Cervantes põe na boca de um amigo imaginário estas palavras:

“Procurai também que, ao ler vossa história, o melancólico seja movido ao riso, o risonho ria mais, o simples não se canse, o discreto se admire da imaginação, o grave não a despreze e o prudente não a deixe de louvar”.

 

Não há dúvida que Cervantes foi bem sucedido ao seguir esse conselho, pois “quem não ri ao ler o Dom Quixote, ou não entendeu o romance, ou não possui a capacidade de rir” (Martín de Riquer).

Esse humor surge já da finalidade primeira do livro, que é “derribar a máquina mal-fundada dos livros de cavalaria, detestados por tantos e louvados por muitos mais” (Prólogo). Os romances de cavalaria – os best-sellers da época – enchiam a cabeça dos leitores com narrativas inverossímeis e de baixa qualidade artística. Foi o que aconteceu com Dom Quixote, que

 

“enfrascou-se tanto na sua leitura que passava as noites lendo de claro em claro, e os dias de turvo em turvo; e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-se-lhe o cérebro, de maneira que veio a perder o juízo”.

 

Por outro lado, o romance “não é uma sátira da cavalaria ou dos ideais cavaleirescos, […] mas a paródia de um gênero literário muito em voga durante o século XVI. O Quixote não é, como creram alguns românticos, uma burla do heroísmo e do idealismo nobre, mas sim a burla de uma espécie de livros que, por seus exageros extremos e sua falta de medida, punham em ridículo o heróico e o ideal” (Martín de Riquer).

Cervantes não tem um espírito cético ou irônico – como o encontramos em Machado de Assis ou em Montaigne -, mas um olhar compreensivo e terno para com o ser humano. Por isso, há diversos momentos de nobreza em seu livro, muitas vezes em personagens secundárias; aliás, não podemos esquecer que o próprio autor foi heróico inúmeras vezes, de modo especial em Lepanto e no seu cativeiro em Argel.

Sendo a sua intenção desmoralizar os livros de cavalaria, Cervantes fez muito mais do que isso: como acontece freqüentemente com os grandes escritores, sua obra acaba sendo muito melhor do que a encomenda. Dom Quixote e Sancho Pança formam uma dupla que passa por aventuras que nos emocionam, elevam e divertem. O diálogo entre os dois é fundamental para o bom desenvolvimento do romance, e o autor introduz nele inúmeras pérolas de sabedoria, sempre com graça e oportunidade. Assim, o Dom Quixote nos leva a refletir sobre a vida, a honra, a nobreza, a fidelidade, o idealismo, ao mesmo tempo que a estória do cavaleiro e do seu escudeiro se desenrola à medida que encontram personagens secundárias muito bem construídas: nobres, fazendeiros, hospedeiros, mulheres da vida, letrados, barbeiros, e assim por diante.

Temos diálogos e aventuras em justa medida, com os episódios ligando-se com naturalidade e enriquecendo-se mutuamente. Aqui vemos que Cervantes é escritor de qualidades excepcionais, que sabe contar maravilhosamente histórias simples. A sua prosa é de uma leveza, de uma fluidez, de uma plasticidade e expressividade praticamente insuperáveis. Embora encontremos muitas páginas admiráveis em outras obras suas, especialmente nas Novelas ejemplares, poucas atingiram a qualidade do seu escrito mais famoso.

Otto Maria Carpeaux, no sugestivo “Ensaio de análise em profundidade”, lembra-nos de que “a literatura universal chega ao cume na criação daquelas personagens típicas, representantes simbólicas da humanidade”. Aqui encontramos novamente uma pista da grandiosidade do Quixote, símbolo de toda a humanidade (juntamente com seu fiel escudeiro…). Na sua loucura, considerava-se um cavaleiro andante chamado a vencer gigantes, salvar princesas, desfazer todo gênero de agravos, “granjear fama e renome eternos”. No entanto, a verdade é que se debatia com moinhos de vento, chamava de elmo a bacia de um barbeiro, era espancado com uma freqüência muito maior que a desejável… Enfim, havia uma enorme distância entre o que pensava de si e a realidade dos seus “feitos”, e isso é parte fundamental da sua loucura.

Somos forçados a reconhecer humildemente que todos temos muito dessa loucura. Julgamo-nos heróis, sábios, nobres e importantes, mas acabamos deparando-nos com a realidade da nossa mediocridade, mesquinhez, covardia e comodismo. Muitas vezes custa-nos aceitá-lo, e reagimos como o nobre cavaleiro, que atribuía a maior parte das suas desgraças à inveja de “encantadores e magos”.

Ao mesmo tempo, a loucura ajuda-nos a buscar metas mais altas, que os “prudentes” consideram tolas, mas que dão sentido aos nossos esforços. Somos bem menos do que pensamos, mas… que seria de nós sem os sonhos? Sem ideais, a vida do homem não vale nada, e o Dom Quixote lembra-nos disto. A loucura de Alonso Quijano, o bom, fez dele o Dom Quixote de La Mancha; e graças a isso –
entre muitas surras, situações ridículas e decepções -, o cavaleiro realizou também grandes feitos, ajudando a consertar a vida de boa parte das pessoas que o rodeavam. Podemos colocar na boca do Cavaleiro da Triste Figura aquilo que Fernando Pessoa atribuía a Dom Sebastião de Portugal:

 

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

 

Haveria muito mais que falar sobre esse livro. Mas terminemos agradecendo a Cervantes por nos ter dado o seu Dom Quixote. Este, florescendo em um terreno marcado por contratempos e tristezas, mostra-nos que o seu autor soube superá-las; que, se era um grande escritor, soube ser um ser humano ainda maior.

 

Renato José de Moraes é Mestre pela Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 2, Dez/2008. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/dom-quixote-e-a-superacao-da-melancolia/

 

Os gênios das artes: Mozart

Artes | 26/01/2015 | | IFE CAMPINAS

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Mozart é um caso único na história da música, ou melhor, na história das artes. Aos cinco anos já compunha, ainda que com a ajuda do pai. Viveu apenas 35 anos (1756-1791) e escreveu 626 obras. Já em sua época, um dos grandes nomes da música e maior nome da música então, Joseph Haydn, disse a Leopold, pai de Mozart que “seu filho é o maior compositor que conheço (…). Ele tem gosto e, além disso, o maior conhecimento possível da ciência da composição.” (Op. Cit. pág. 138)

Quando adolescente, conta-se a história de que havia uma composição que era executada apenas na Capela Sistina, o Miserere de Allegri. A música era muito bonita, mas ninguém tinha autorização para fazer cópias da partitura. Entretanto, Mozart assistiu à uma apresentação da obra. Fixou-a na memória e foi correndo ao hotel em que estava hospedado. Em uma segunda audição corrigiu os erros que havia feito. Em pouco tempo a música caiu em domínio público. ¹ (Vida de Mozart, H. De Curzon, pág 48). Outro fato que se conta sobre o modo como Mozart demonstrava seu talento era o plano de programa de concerto que ele exibiu em 1770 (14 anos). O jovem Mozart apresentava as suas composições e, em seguida, um concerto para cravo era apresentado e executado à primeira vista, ou seja, um outro músico tocava uma composição inédita para o jovem que logo após a repetia integralmente.

Conhecido como menino prodígio nas cortes européias, pois o pai viajava com o garoto pela Inglaterra, França, Itália desde que ele tinha 6 anos, Mozart sofreu com o fato de que quando cresceu já não despertava a curiosidade das pessoas, apesar de ser Konzertmeister na Corte de Salsburg desde os 13 anos de idade, onde permaneceu até os 25 anos. Um paralelo para que se possa entender a mudança pela qual passou o compositor é o ator mirim que quando criança faz sucesso, mas ao crescer já não é mais “engraçadinho”.  O crítico Otto Maria Carpeaux analisou assim o fato: “Quando Mozart cresceu, o público esperava dele milagres, mas quando os realizou não estava preparado para assimilar a sua genialidade” (História da Música Ocidental). O crítico John Stone também vê assim o desenvolvimento de Mozart: “O magnífico progresso do menino Mozart pela Europa como prodígio de Salzburg teria sérias consequências quando, como rapaz, ele teve de enfrentar o mundo não mais como uma excentricidade encantadora e muito favorecida, mas como um artista supremo (Mozart, um compêndio, págs. 160-161)

Com esse pensamento, Mozart pediu demissão do cargo na corte de Salzburg no dia 8 de junho de 1781. A relação do compositor e do arcebispo Colloredo, responsável por sua nomeação, não era das melhores. Mozart mostrava insatisfação não só com o trabalho que lhe era solicitado: tinha de tocar na Igreja, na corte, na capela, ensinar os meninos do coro, compor música religiosa e secular, mas, principalmente com o tratamento que lhe era dado. A gota d’água foi o dia 8 de abril. Mozart foi obrigado a tocar para o arcebispo na mesma noite em que a condessa Thun o convidara para se apresentar em sua residência. Não seria nada de mais, caso não fosse a presença do imperador na casa da condessa. Além disso, Mozart receberia o equivalente a metade do seu salário anual para esse concerto. Parte para Viena.

Em Viena – 1781-1791

Ao contrário do que se pensa, Mozart não viveu na pobreza em Viena. Os primeiros anos passados na corte foram de muito sucesso. Apenas nos últimos anos de sua vida passou por dificuldades financeiras. Os críticos analisam esse fato tendo em vista o meio social em que vivia, entre os ricos, e em uma cidade cara e devido à sua condição de “freelancer”: somente em 1787 ele teve um emprego com salário regular. Deve-se levar em conta também a opinião do pai do compositor sobre a sua maneira de ser: “Se não precisa de nada, então fica imediatamente satisfeito, se torna despreocupado e preguiçoso. Se é forçado à atividade, então se agita e quer prosperar imediatamente.” (Carta à condessa Waldstätten, 23 de agosto de 1782). Em 1782 casa-se com Constanze Weber, que teve seis filhos. É também durante essa primeira etapa em Viena que Mozart tem duas doenças graves

Em relação à música, os primeiros anos são de grande atividade. Compõe serenatas, os seis quartetos dedicados a Haydn, as óperas “As Bodas de Fígaro” e “Don Giovanni”. Em 1782-3 compõe três concertos para piano e no ano seguinte mais seis.

A genialidade

O que mais surpreende os críticos da obra de Mozart é que não há uma relação direta entre a obra e a vida do compositor. Sente muito a morte do pai, em 1787, mas em sua obra nada se nota. Em maio morre Leopold, em agosto compõe a sua obra mais popular até hoje, a Pequena Música Noturna (Eine Kleine Natchmusik, KV 525).

Há duas características da obra de Mozart que são pouco admiradas hoje em dia, mas que sempre acompanharam os grandes artistas. A primeira é que nunca buscou a originalidade. A segunda era a preocupação de Mozart em fazer músicas que fossem acessíveis ao grande público, como explica em carta ao pai: “Aqui e ali só os entendidos podem extrair satisfação, mas de uma tal maneira que o não entendido se agradará sem saber por quê (28 de dezembro de 1782).”

É de se notar que suas últimas composições o fizeram voltar às origens. Mozart não compunha música sacra desde 1781. Mas no último ano de sua vida compõe duas obras belíssimas: Ave verum corpus e o Réquiem.

Essa última gerou muitas lendas. Mas se sabe hoje que foi encomendado por um misterioso personagem que não era nenhum enviado do além, mas um aristocrata que gostava de encomendar obras em sigilo para exibir como suas. Aliás, atualmente, até esse fato é contestado. Ao que tudo indica, o tal misterioso, o conde WallseggStuppach, costumava fazer apresentações em sua casa para que os participantes adivinhassem quem era o compositor (Mozart, um compêndio, pág. 370).

Outro belo fato sobre essa composição é que Mozart, no leito de morte, pediu para que os que estavam ao seu lado cantassem um trecho do hino, Lacrimosa:

Lacrimosa dies illa                         Dia de lágrimas será aquele

qua resurget ex favilla                   no qual os ressurgidos das cinzas

judicandus homo reus.                  serão julgados como réus.

—–

Huic ergo parce, Deus                  A este poupa, ó Deus

pie Jesu Domine                           piedoso Senhor Jesus

Dona eis requiem, Amen.             Dá-lhes repouso. Amém.

 

Vale a pena ouvir:

Eine Kleine Natchmusik – KV 525 (numeração da obra). Composição mais famosa de Mozart, porém, não a mais bela, mas de um charme irresistível

 Quartetos a Haydn – KV 458, chamado posteriormente de “A caça” e KV 428 (de um total de seis, todos ótimos). Como o título diz, dedicados ao famoso compositor Joseph Haydn.

Requiem – KV 626

Ave Verum corpus – KV 618

Concerto para piano e orquestra, KV 595 – especialmente o segundo movimento, um dos mais belos da história da música.

 

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário e Gestor do Núcleo de Literatura do IFE Campinas.

Apresentação Núcleo de Artes

Sem Categoria | 21/12/2014 | |

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Vivemos numa “cultura de repúdio”, segundo Roger Scruton, e isso dá bem o tom da forma como o Ocidente, cada vez mais e preocupantemente, esforça-se por repudiar seus valores estruturais, a começar pelos judaico-cristãos. Esse repúdio, ao fim, redundará num empobrecimento moral ou epistemológico, mas, antes, passará pelo empobrecimento estético, independentemente de qualquer influxo religioso.

Sem um contato vital e profundo com a tradição e os textos sacros, ficaremos cegos, surdos e mudos para uma boa compreensão de dois milênios de arte e de civilização. Como já acontece com a arte contemporânea. Simbolicamente, nesse campo, o ponto da virada, rumo a essa cultura de repúdio, foi o pinico de Marcel Duchamp: a arte desceu do nível do teto da Capela Sistina ou dos ciprestes do Van Gogh, passou pelo dito pinico e foi parar no esgoto da frivolidade e da bizarrice do cotidiano. A imaginação humana realmente não tem mais limites estéticos e qualquer coisa vira um ato de expressão artística.

A tal “loucura da arte” (Henry James) pode ser resumida no clichê expressão/repressão, o qual domina grande parte das discussões analfabetas do nosso tempo. Como somos “herdeiros de uma sensibilidade romântica superada”, acredita-se, hoje, que a arte deve ser “autêntica” e que a “autenticidade” consiste em abrir as portas da alma (na prática, são dos porões), sair por aí oferecendo nossos “sentimentos” e “emoções” numa bandeja de prata e, por via dessa “catarse”, libertarmo-nos de nossas neuroses mais profundas.

Isso está mais para terapia do que arte. Aliás, boa parte da arte moderna não passa de uma pornopopéia de pinturas, esculturas e obras que refletem e concretizam uma espécie de “sessão artística de psicanálise”. Eliot já disse que a arte não é uma questão de expressão ou repressão, mas de disciplina e sublimação: a destruição da arte e a pouca relevância que ela tem dado na retratação da beleza é um claro sintoma de um problema que supera o estético e que envolve uma crise de existência humana. É nessa resposta que o IFE CAMPINAS pretende trilhar propostas de soluções no campo estético contemporâneo.

Arte e imaginação

Opinião Pública | 28/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Para alguns pode soar estranho um seminário cultural dedicado ao tema da imaginação. É comum associarmos a imaginação ao universo infantil, com seus super-heróis e personagens da Disney. Mas foi esta a proposta do Instituto de Formação e Educação – IFE e da Academia Campinense de Letras, no encontro ocorrido no último dia 08 de novembro, na sede desta última. Com o tema “Por que a imaginação importa?”, durante mais de três horas os presentes puderam refletir sobre o importante papel da imaginação na formação humana e os impactos do seu esquecimento na cultura atual.

Segundo Aristóteles, a imaginação é a mediadora fundamental entre o pensamento e a realidade. Só podemos pensar as coisas existentes por meio de imagens. Nossos sentidos (visão, audição, tato, olfato etc.), que em conjunto formam a percepção, captam fragmentos da realidade formando imagens, que, por sua vez, compõe o que chamamos de memória. A memória é, assim, o registro da imaginação. Por isso, o que não está na nossa imaginação (e na nossa memória), não existe para nós, pois é ela que nos revela as possibilidades do real.

Nossa imaginação é alimentada o tempo todo, mesmo que não estejamos conscientes disso. Tudo aquilo que vemos, ouvimos, tocamos, enfim, tudo o que experimentamos direta ou indiretamente do mundo, de alguma maneira fica registrado em nossa memória e passa a compor o nosso mundo interior. E é a partir destas imagens que concebemos a realidade e com ela nos relacionamos, formando aquele conjunto de idéias, valores e símbolos que orientam as nossas ações. Por isso, a importância de cultivar a imaginação, escolhendo, na medida do possível, a que vamos nos expor, para bem formar a nossa memória e, por fim, a nossa própria personalidade.

Infelizmente, a cultura tecnológica e materialista em que vivemos relega à imaginação um papel irrelevante. Com uma visão estritamente científica, restringe a percepção da realidade aos seus aspectos quantitativos, ao que se pode medir por critérios racionais-empíricos.  Tudo o que está além do âmbito restrito da ciência é considerado irreal e irracional. Em consequência, a imaginação perde o seu lugar como um elemento essencial da cognição e da ação humana na realidade, passando a ser considerada apenas uma fuga do real, uma mera diversão, um entretenimento.

Por sua vez, este abandono da dimensão imaginativa faz com que fiquemos “esmagados pela literalidade das coisas”, para usar uma expressão citada pelo professor Roberto Mallet.  A realidade se apresenta somente pelo que nos atinge de forma literal e imediata, fazendo crer que tudo o que extrapola esta literalidade é irreal, é fuga, é delírio. Assim, quem quer, por exemplo, saber o que é uma flor deve consultar um livro de botânica e se dar por satisfeito. Os poetas podem dizer coisas lindas sobre as flores, mas poemas são tidos apenas como exercícios lingüísticos, meras metáforas, que nada dizem sobre a essência de uma flor.

Há, por assim dizer, uma percepção desencantada do mundo, pois a ciência, embora nos permita descobrir aspectos importantes da realidade, não nos permite perceber justamente o que lhe é essencial. O resultado deste desencantamento é a perda do sentido da própria realidade, pois o que dá sentido às coisas é o que transcende o seu aspecto meramente material e técnico. O que dá sentido a uma flor, para ficarmos no mesmo exemplo, não é a descrição do seu funcionamento, muito menos a sua utilidade. O que lhe dá sentido é o mistério do seu ser flor, algo que jamais pode ser captado pelo método científico, mas que é tão real quanto o que a ciência pode explicar.

Cultivar a imaginação, portanto, ao contrário do que pode parecer, é ampliar nossa percepção para ir ao encontro da realidade mesma, um encontro que é também um encantamento. Este é um dos principais papéis das artes, conduzir-nos de volta à realidade das coisas, livres da intenção cotidiana de transformá-las ou utilizá-las para qualquer fim, mas tão-somente convidando-nos a contemplá-las em seu mistério. De fato, nem tudo o que hoje se denomina “arte” se presta a este papel. Mas poderíamos dizer que a verdadeira arte só é arte na medida em que nos leva, pela imaginação, a este maravilhamento do mundo, libertando nossa percepção da sua literalidade, para nos revelar seu verdadeiro sentido.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular de 28 de novembro de 2014, na página A-2 – Opinião.