9º Seminário IFE Campinas/ACL



MEDO E ESPERANÇA

Existe a possibilidade de superar os medos que nos dominam?

Seminário, 24 de Novembro de 2018, Sábado, 14h00, na ACL

 

A era dos medos

Henrique Elfes
Filósofo, professor, formado em Letras pela PUC-PR, palestrante, ensaísta, cofundador do IFE e da revista “Dicta&Contradicta”. Trabalha como editor em São Paulo e é coordenador-geral do Instituto de Formação e Educação (IFE).

15h40 – Coffee-break

Você tem medo de ter medo?

Cecília Prada
Jornalista profissional, Prêmio ESSO de Reportagem/1980 pela “Folha de São Paulo”. Ficcionista, com 4 prêmios literários, dramaturga, crítica literária e teatral, tradutora. Ex-diplomata de carreira e membro da ACL. Dentre outros, autora de “Entre o itinerário e o desejo” (2012) e “Profissionais da solidão” (2013).


Evento:

9º Seminário IFE Campinas/ACL

Local:
Academia Campinense de Letras
Rua Marechal Deodoro, 525, Centro, Campinas/SP

ENTRADA FRANCA. Convide familiares e amigos.

INSCRIÇÕES ATRAVÉS DO LINK: https://goo.gl/forms/un5wrEgZSsCk9SoA2

Organização e parceria:
IFE Campinas e Academia Campinense de Letras

 




O “métier perdido” e a arte – por Affonso Romano de Sant’Anna


Museu do Louvre, em Paris (Le Louvre et sa Pyramide, de nuit, Free On-Line Photos (FOLP), image 2269)

 

“A pintura neste fim de século está mal. Para quem ama a pátria dos quadros não restará em breve mais que o interior dos museus, como para quem ama a natureza só restarão reservas de praças, para aí cultivar a nostalgia daquilo que não existe mais” (Jean Clair).

 

O que tem a antropologia a nos dizer sobre a crise das artes plásticas no século 20? Venho me fazendo esta pergunta, dentro do clima de celebração, em 2009, dos cem anos de Lévi-Strauss, e depois de ler e reler um texto seu, pouco divulgado: “Le métier perdu” (“O ‘métier’ perdido”). Reli este texto, há alguns anos, no volume Tout l’art contemporain est-il nul? (“Toda a arte contemporânea é nula?”). Neste livro há uma série de autores como Lévi-Strauss, Tom Wolfe, Jean Clair, Henri Meschnnic, Jean Phillippe Domecq, Marc Le Bot, Jean Baudrillard, Luc Ferry e alguns outros, pensando a arte de nosso tempo, essa que se quer “contemporânea” e “pós-moderna”.

O referido texto de Lévi-Strauss é sintomático da complexidade da questão que há cerca de cem anos enfrentamos. Não se pode dizer que este autor seja um “forasteiro” em termos de arte, como em geral retrucam os que não aceitam qualquer critica à arte oficial de nossos dias [1]. Ao contrário, Lévi-Strauss além de ser o mais notável antropólogo do século XX é um bom conhecedor de música (que aplica em suas análises antropológicas) e igualmente conhecedor de literatura e de artes em geral. É um pensador, um artista, um filósofo na pele do antropólogo que, como tal, influenciou o pensamento contemporâneo.

O texto de Lévi-Strauss, primeiramente nos incita a uma re/visão da pintura impressionista, essa arte, esses pintores que se tornaram representantes de uma revolução na pintura e que são tanto cotadíssimos pelo mercado quanto amados pelo público. Ele assinala que “a despeito das obras maravilhosas que produziu, o impressionismo conduziu a um impasse” [2] e que os epígonos não tinham a “ciência” e o talento dos impressionistas primeiros. Por isso, para ele, depois de um século “a história da pintura chegou a um paradoxo” e um “saber precioso hoje desapareceu”.

Além disto, o antropólogo nos sugere, além de uma certa cautela quanto à revolução impressionista, que é preciso pensar na questão de um métier que se foi perdendo no correr do século 20, de tal modo que, já há algum tempo, em muitas escolas de arte, a palavra “ desenho”, “gravura”, “modelo vivo”, se tornaram estranhas, malditas e sinônimo de algo retrógrado a ser definitivamente esquecido e enterrado.

É possível que alguém alegue que Lévi-Strauss não tenha podido apreender algo novo que estava surgindo e que ele tenha generalizado seu severo julgamento sobre a modernidade. Mas há no seu texto algo intrigante que está exatamente na área da antropologia, e só um antropólogo poderia entrar neste assunto mencionando “o métier perdido”.

Com efeito, há um certo consenso dentro da modernidade, um pressuposto meio axiomático de que a história seria a história de um sucessão de técnicas sempre superadas por outras técnicas. Este é o pensamento do homem comum e de alguns pensadores e artistas encharcados de modernidade e do conceito retilíneo de progresso. No entanto, dois subentendidos intrigantes e complexos estão aí e não se sustentam:

1. Primeiro evidencia-se um conceito “linear” de história, uma noção de “progresso”, que se aplica muito mais à indústria do que às artes. São muitos os autores, são incontáveis os tratados dos que já se dedicaram a diferenciar “arte” de “indústria”. Isto está tanto num filósofo como Platão quanto em Virginia Woolf. Aqui e ali explica-se, por exemplo, que o conceito de um modelo de carro novo em oposição a um carro antigo, não se aplica ao confronto entre Picasso e Rembrandt. Nas artes tais comparações são assimétricas. Por exemplo: o exército americano, com razão, porque é “moderno”, não usa no Iraque ou no Afeganistão as quadrigas de guerra dos romanos, nem lanças, espadas e escudos do exército ao tempo de Felipe II. Não obstante, nós podemos assistir a Sófocles e ler Homero, Shakespeare ou Cervantes com igual ou maior deleite e proveito que os contemporâneos deles. E podemos gostar tanto de Piero della Francesca quanto de Chagal, tanto de Bach quanto de jazz.

Portanto, os que, em termos de arte, pressupõem “superação” de estilos e formas devem ser mais cautelosos em não misturar séries diferentes do saber e da representação simbólica. A melhor arte inscreve-se além do tempo e do espaço cronológico.

2. Outro mal-entendido no bojo da questão, além da “linearidade”, é pensar a história apenas em termos de “exclusão”. Este conceito foi predominante até há algumas décadas, antes que se percebesse que os “excluídos” também têm história. Os personagens e fatos “pequenos” têm tanto interesse quanto os “grandes”. Neste sentido, uma “nova história” nos ensinou a lidar com o que tinha sido “relegado”, “oculto”, “refugado” e começou-se a perceber que a compreensão da(s) história(s) exige a “inclusão” daquilo que havia sido afastado ao se privilegiar o centramento ideológico e simbólico.

3. Por isto, há uma outra observação que pode ser desentranhada do lamento de Lévi-Strauss. E aqui eu começo a introduzir outros elementos para ampliar (por minha conta e risco) a observação feita pelo antropólogo.

Consideremos, antes de retomarmos frontalmente essa questão, a palavra “esquizofrenia” e a expressão “sabedoria perdida”. Aparentemente “esquizofrenia” e “sabedoria perdida” não têm nada a ver entre si. Mas é na junção delas, e em busca de um elo perdido entre elas, que poderemos prosseguir na análise de nossa cultura.

É enriquecedor trazer um outro antropólogo do século XX para esta discussão. Refiro-me a Gregory Bateson. A partir de alguns de seus textos poderemos corrigir, expandir e talvez entender melhor a questão do “métier perdido” e da arte de nosso tempo.

Gregory Bateson, que foi casado com Margareth Mead e com ela trabalhou entre os primitivos na Nova Guiné nos anos 30, desenvolveu um trabalho transdisciplinar que, vindo da antropologia, passou pela biologia (seu pai também era biólogo) e pela psicanálise. A partir dos anos 50 e 60, Bateson foi formulando mais claramente uma teoria correlacionando a “mente” e a “natureza”. Ele vinha também de estudos sobre cibernética, mas sua obra conflui naturalmente para uma teoria estética do conhecimento.

Não, ele não se referiu expressamente ao “métier perdido”. De novo, o risco teórico vai por minha conta, pois a formulação de Bateson talvez faça avançar o que está contido ou insinuado no pensamento de Lévi-Strauss. Ou, então, pode corrigir o que de incompleto e criticável ainda se poderia localizar no pensamento do antropólogo francês. Bateson não se refere necessariamente a Lévi-Strauss; no entanto, disserta sobre uma “sabedoria” ou “saber perdido”, algo que tem a ver com o “métier perdido” de Lévi-Strauss. Assinala, por exemplo, que ignoramos “parte da nossa mente” e, perseguindo propósitos estreitos, “perdemos a sabedoria de nos conhecermos melhor”. Isto que ocorre individual e psicologicamente, segundo ele, ocorre também socialmente, porque perdemos o saber na nossa relação com o mundo natural.

Em 1960, quando a situação climática da Terra não estava tão comprometida, quando ainda não se falava muito dos pesticidas, quando as geleiras não estavam visível e ameaçadoramente se derretendo, enfim, quando a palavra “poluição” não tinha entrado para o vocabulário comum, ele advertia que valorizando extremadamente a “consciência” e a “racionalidade” estávamos implementando a nossa própria destruição. E adiantava algo que poderia parecer utópico, mas que cinqüenta anos depois é a opção que muitos perseguem para evitar um apocalipse global: “Eu não sei qual o remédio, mas a coisa é a seguinte: a consciência pode se alargar bastante através da arte, da poesia, da música, por exemplo. E através da história natural, dos aspectos da vida que a civilização industrial deprecia e ignora” [3]. Dito isto, saindo da teoria para a vida prática, fechava sua advertência com um conselho político para o cidadão seu contemporâneo: “Nunca vote numa pessoa que não seja um poeta, um artista ou um observador de pássaros” [4]. Interessado em religar o individuo ao cosmos, à natureza e a si mesmo através de um diálogo entre a parte e o todo, Bateson nos dá um elemento a mais para trabalhar a problemática da cultura de nosso tempo quando ele, antropólogo e psicanalista, operacionaliza os termos “totalidade” e “esquizofrenia”.

Por isto, dando alguns “passos para uma ecologia da mente” ele vai dizer claramente que a sobrevivência do organismo está ligada ao ambiente e “que estamos aprendendo através de uma experiência amarga que o organismo que destrói o ambiente se destrói a si mesmo” [5].

Para entender a vitalidade da proposta de Bateson, cada vez mais adequada e urgente à nossa cultura na virada do século XX para o século XXI, façamos um movimento inverso, retrocedamos cerca de cem anos, ao que sucedeu após o impressionismo, quando os movimentos futuristas e modernistas em todo o mundo, da Rússia ao Brasil, passando por Paris e Nova York, acreditavam soberana e desdenhosamente que a história e a arte fosse uma sucessão de técnicas que se superam linear e continuamente.

É forçoso lembrar, neste ano de 2009, quando o futurismo de Marinetti completa cem anos de vida, que uma das falácias do futurismo e da modernidade foi acreditar na “máquina” como substituta do “homem”. Chegou- se até a propugnar, como Corbusier, que as casas fossem “máquinas de morar”. A produção em série de automóveis da Ford, surgida naquela época, introduziu como padrão simbólico e ideológico o que chamo de “efeito metonímico”. Ou seja, a troca da parte pelo todo e do homem pela máquina, da quantidade em vez da qualidade. E a arte que sempre foi predominantemente metafórica passou a correr o risco de ser apenas metonímica; ou seja, produto de uma linha de montagem, simples objeto sem sujeito, objeto que substitui outro objeto. Enfim, objeto sem sujeito, mesmo porque a sofisticação da modernidade levaria certo pensamento ocidental a propalar a “morte do homem”, a morte do “autor” e a morte da “história”. Coincidência reveladora é que isto surge congeminado com a vulgata que decretou a “morte da arte”. Disto tratei em O enigma vazio (Ed. Rocco, 2008) ao falar da mórbida tanatologia do século XX, que saiu dizimando pessoas e raças, mitos e conceitos e chegou enfim aos gêneros artísticos.

Mas aqui me interessa destacar outro aspecto. O “homem modernista e futurista” jubilosamente mecanizado, aspirou ser um autômato conferindo esteticidade ao complexo industrial militar. E esse “homem” era um personagem tão totalitário e machista, que decretou que a mulher, esse “outro” ameaçador para o macho futurista, se convertesse num “mesmo” metonímico ou numa máquina. Este é um dos equívocos mais retrógrados e elucidativos da modernidade. A rigor não foi ainda estudado devidamente esse item: a conversão (que o imaginário artístico dos machos fez) das mulheres em máquinas. Estaria ocorrendo apenas a atualização de um comportamento arcaico de dominação. São muitos os exemplos. E se quisermos mencionar, ainda que de passagem, uma obra emblemática, tomemos o “Grande Vidro” de Marcel Duchamp, obra “definitivamente inacabada” entre 1912 e 1922. Diga-se de passagem que o crítico inglês Robert Hughes é dos poucos que indiciam esse tema, ou seja, de como o amor à máquina foi um quesito ideológico e erótico que predominou na arte do princípio do século XX, dentro daquela ideologia guerreira que forneceu exemplares como Marinetti e outros.

Assim foi preciso esperar muitas décadas no século passado para que se começasse a falar não mais de “homem” (incluindo passivamente as mulheres), mas a substituir “homem” por “pessoa humana”. Igualmente tivemos que “desautomatizar” o discurso e deixar de, “maquinal” e “metonimicamente”, falar do homem como se mulher fosse um apêndice.

As alterações discursivas são sintomas de processos de transformação histórica. Pois foi em torno dos anos 60 que o discurso dos “gêneros” começou a se desautomatizar, a perder sua mecânica totalitária e machista louvada “naturalmente” pelo futurismo e pelo modernismo. Mas foi também a partir dos anos 60 que se tornaram mais visíveis as reações contra o capitalismo selvagem e contra a sociedade afluente que havia colocado a quantidade e o consumo como objetivo final. Iniciou-se (e não é preciso me alongar sobre isto, pois já pertence ao acervo de nossa cultura) a redescoberta da natureza e dentro dela uma revalorização não mais escamoteada e pejorativa do “feminino”. Alguns críticos de arte, como Susan Gablick [6], estudam a emergência do aspecto “feminino” na arte pós-anos 60.

Adicionemos, porém, um outro raciocínio capaz de complementar o que estamos indiciando. A ecologia parece que tem algo a nos dizer sobre a questão da arte e do “métier perdido”. E aqui vemos ressurgir, de novo, a questão da interdisciplinaridade como enfoque indispensável ao esclarecimento do “enigma” contemporâneo. A ecologia, e não apenas a psicanálise, a sociologia, a economia, a teoria literária, tem algo a nos dizer. Já nos acostumamos a ver na imprensa movimentos para salvar, proteger certas espécies em extinção: no caso brasileiro, a tartaruga, a baleia, a ararinha azul, o mico leão dourado. Enfim, cada país começou a descobrir em seu espaço algumas espécie ameaçadas de extinção. Simples cidadãos, ONGs e políticas governamentais indicaram uma redescoberta da natureza como forma não apenas de sustentabilidade, mas como ultimato para salvar também a humanidade. Isto decorreu não apenas de um idealismo, mas impôs-se pela percepção objetiva de que a vida no planeta está organizada em forma de sistema e que a deterioração de parte do sistema afeta a todos. Daí as tentativas de acordos internacionais, a urgência de combater a extermínio da camada de ozônio, de deter o derretimento das geleiras na Groenlândia ou na Antártica.

O conceito de “alienação” que o pensamento marxista fez circular, advertia para a fratura entre o indivíduo e o mundo, ponderava que era preciso aproximar o ser humano de si mesmo para que ele não se transformasse em puro objeto entre outros objetos. É nesta acepção que as noções de esquizofrenia e de “double bind” (laço duplo/ambíguo), externadas por Bateson podem ser aplicadas num sentido histórico e social. A dualidade clássica entre “natureza” e “cultura”, da qual a antropologia se aproveitou para formular alguns modelos, deve ser operacionalizada como um ponto de partida e não como ponto de chegada. A melhor e mais produtiva análise antropológica não deve pressupor a superioridade da cultura sobre a natureza, mas um outro patamar de observação. Os dois conjuntos –
natureza e cultura – deveriam manter um diálogo de auto-regulação, não mais entendidas, colonizadoramente, como se a cultura e natureza fossem inimigas.

Esta noção colonizadora foi a que predominou no pensamento branco ocidental até que o século XX, inclusive com Lévi-Strauss, começou a ter uma nova visão dessa dualidade. Anteriormente, nossa sociedade ao escolher o modelo do “capitalismo selvagem”, ao decretar que a natureza era para ser “subjugada” e até “destruída”, criou problemas que nos levaram a patéticos impasses na passagem do século XX para o XXI. Daí muitos prognósticos científicos trazerem já para a nossa geração o apocalipse, caso persistamos serrando o próprio galho em que estamos sentados ou envenenando a própria água que tomamos e o alimento que comemos.

Procurando aproximar estética e ecologia Bateson estava combatendo a esquizofrenia de nossa cultura machista e autodestrutiva. Ele chega a falar de “epidemiologia da esquizofrenia”. Nisto aproximava-se tanto de um pensador como Aldous Huxley quanto de um poeta como Walt Withman, os quais procuravam a unidade ou a “graça”. Evidentemente esse termo “graça”, por mais que Bateson tenha tentado tirar dele toda a carga religiosa, insistindo num religare [7] não místico, mas vinculado aos “processos primários” de nossa natureza, esse termo está por demais carregado de significados religiosos [8].

Para Bateson, a arte é um modo de nos conectar com a natureza. A natureza externa e nossa natureza interna. Neste sentido, o nosso inconsciente não seria somente a sede da repressão, como viu Freud, mas algo muito mais poderoso e complexo. Em suma, Bateson, que tanto valorizava a metáfora como algo capaz de dizer mais objetivamente aquilo que a objetividade racional não conseguia, considerava que essa força natural é como a poesia, e “a poesia não é a prosa torcida. É o contrário disto: prosa é poesia que foi submetida à lógica”[9].

O que isto tem a ver com a arte de nosso tempo e com o pensamento de Lévi-Strauss?

Quando se fala de “métier perdido”, corre-se o risco de se pensar em algo morto, empalhado. Penso, ilustrativamente, no magnífico Museu de Artes e Ofícios (de Belo Horizonte), onde estão objetos, instrumentos, saberes antigos de séculos passados, que foram “arquivados” e não encontram mais uso na sociedade tecnológica de hoje. Ir a esse precioso museu é evidentemente visitar o passado, admirando-o, mas não com o desejo necessário de voltar ao século XVIII e ter a extração de dentes feita por um boticão de farmacêutico, como o era ao tempo de Tiradentes.

Pode-se pensar também, ao falar de “métier perdido”, em algo como taxidermia, coleções onde borboletas, pássaros, peixes, toda série de insetos e animais aparecem mortos, empalhados, espetados ou em repouso nos vidros com formol e álcool. Esses seres estão parados no espaço e no tempo. Vê-los, deste modo, é como achar um pedaço de cerâmica numa escavação: pura memória de ontem.

Mas é de outra coisa que se fala e outra coisa que se pode pensar quando retomamos a relação entre arte e antropologia, a partir da advertência de Lévi-Strauss. E para esclarecer ainda mais o que tenho a dizer, vou reinserir um texto do crítico Jean Clair que de algum modo ilustra essa problemática, ainda que sem resolvê-la. Dizia ele: “A pintura neste fim de século está mal. Para quem ama a pátria dos quadros não restará em breve mais que o interior dos museus, como para quem ama a natureza só restarão reservas de praças, para aí cultivar a nostalgia daquilo que não existe mais” [10].

Então nos perguntamos: será que devemos olhar as obras de “ontem” como um taxidermista desconsolado ou como uma melancólico antropólogo? Será que estamos mesmo num “museu de artes e ofícios” repassando a história à distância? Ou será que é possível uma outra visão, exatamente a partir da mudança de perspectiva que a ecologia propiciou desde os anos 60? Ora, o que os movimentos de preservação da natureza trouxeram, a grande novidade, é que não nos devíamos conformar com a idéia de ir aos museus de história natural para ver o mundo de ontem, mas transformar a natureza, ainda que tardiamente, num museu vivo, ou seja, num antimuseu, numa “negação” do museu, posto que seria a reintegração do espaço da vida na própria vida, e não mais friamente armazenada, condensada, segregada, empalhada atrás de uma vitrina.

A ecologia é um passo adiante da taxidermia. Ela é realmente “contemporânea”, pois coloca a natureza no mesmo tempo & espaço do observador.

Com efeito, duas anomalias ocorrem no espaço das artes hoje. Primeiro, alguns artistas e teóricos que se julgam pós-modernos pretendem que a história da arte seja uma repetição da taxidermia, ou seja, julgam que os museus de arte são uma espécie de “museus de história natural” onde só existem coisas mortas, paralisadas no tempo e no espaço. Ali estariam alojados espécimes que não têm mais função. Neste sentido, chegam a olhar o museu pejorativamente, como se fossem um entrave ao “progresso” da “cultura”. Esta posição ecoa uma das frases mais patéticas, infelizes e danosas de Marcel Duchamp: “É preciso acabar com a arte enquanto é tempo”.

Tal frase parece dizer: temos que acabar com os dinossauros, os elefantes, os inimigos do homem enquanto é tempo. Alguém poderia alegar que era uma boutade. Não era. E isto está demonstrado na análise que fiz de sua obra e de seus textos em “O enigma vazio”. Seria a arte, então, como quer esse pensamento duchampiano, uma inimiga do homem e da cultura? Este é o conceito implícito quando se fala de “métier perdido” em termos de arte e quando a encaramos como um ramo da taxidermia

É incontornável lembrar que os futuristas, comandados por Marinetti, propunham a queima dos museus (como outros ainda incendeiam florestas). Mas existe um paradoxo que é necessário desentranhar dentro da esquizofrenia de nossa época, pois as pessoas continuam indo aos museus para sentirem “no passado” o que não mais sentem diante das obras de seu tempo.

Alguém erroneamente poderia dizer que essas pessoas estão indo ao cemitério. (Duchamp dizia que um quadro morria depois de cinqüenta anos). Que estariam indo depositar flores nos túmulos de Da Vinci, Matisse, Van Gogh, Lucas Cranach. Seria isto verdade? Os museus são um espaço de necrofilia ou o espaço onde a cultura retoma os elos, constrói a totalidade da compreensão do fenômeno humano através do mistério da arte e de seus “processos primários”?

Mas nos museus contemporâneos ocorre algo sintomático que tem tudo a ver com a esquizofrenia entre o indivíduo e a cultura dominante. Algumas salas, por sinal as que vão da Renascença até o princípio do século XX, estão sempre cheias de visitantes, por oposição ao constrangedor vazio que existe nas salas mais “contemporâneas”. Será então que certas obras de ontem são mais contemporâneas que algumas obras de hoje?

A essa questão, viciosa e precariamente, alguns respondem dizendo que o artista vem sempre à frente do seu tempo. Este é um mito da modernidade. Mito romântico e vanguardista. Mais um mito da modernidade que tem de ser revisto por uma nova epistemologia; pois de tanto querer vir “à frente” e anunciar o “futuro”, muitos acabam não anunciando nada, afastando-se de si mesmos e da temporalidade de seu tempo.

As teorias da “evolução” e do “progresso” vindas de outros séculos dominaram subreptícia e arrogantemente o século XX. A arte não escapou dessa jubilosa ideologia que trabalha com a exclusão. Certos artistas e teóricos, exercitando uma utopia perversa, alardearam uma alucinada autonomia da arte, como se ela não tivesse nada a ver com a comunidade, com a história, com o contexto e com os indivíduos. Assim, perdeu-se até a lição daqueles artistas que, no princípio da arte moderna, foram buscar na arte primitiva e na tradição novos elementos de trabalho.

A história é um constante reprocessar de técnicas, fazeres e saberes.

Não há métier perdido. Há artistas perdidos, e pior, sem métier.

Affonso Romano de Sant’Anna é poeta, escritor e ensaísta. Autor de mais de 50 livros sendo o último Perdidos na Toscana (L&PM Editores, 2009).


[1] Em 2002 a propósito de uma série de artigos publicado em O Globo, e que depois reuni em Desconstruir Duchamp (Ed. Vieira & Lent, Rio, 2003), fui acusado de “forasteiro” pelos que não tinha argumentos para rebater minhas formulações críticas sobre a arte de nosso tempo. Na ocasião, respondi com o artigo “O forasteiro e a cidadela”, também incluído no mencionado livro.

[2] Idem, p. 73.

[3] Charlton, Noel G. Understanding Gregory Bateson (State University of New York Press, New York, 2008, p. 100).

[4] Ibidem.

[5] Bateson, Gregory. Steps to an ecology of mind (The University Chicago Press, 1972, p. 491).

[6] Ver da autora The Reenchantment of Art e Modernism, ambos da Thames and Hudson.

[7] Edgar Morin também trabalhou sobre esse tema. Ver: A religação dos saberes-desafio do século XXI (Ed. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2002).

[8] Eu preferiria usar a idéia estética e psicológica de “epifania”, de percepção, como acontece em alguns autores que já estudei (Clarice Lispector e Carlos Drummond) e que embrionariamente estava também em James Joyce.

[9] Understanding Gregory Bateson, ob. cit., p 106.

[10] Clair, Jean. Considèrations sur l’état des beaux arts (Gallimard. Paris, 1983, p 11).

***

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro/2009. Disponível no link <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/o-metier-perdido-e-a-arte/>.




Família: redução privatizante e função personalizante


 

INTRODUÇÃO

 

Torna-te o que és! Foi o que disse, certa vez, o poeta pagão Píndaro acerca do homem. Do ponto de vista lógico, a afirmação de nosso poeta seria uma contradição, porque ninguém pode vir a ser o que já é. Se já sou um ser humano, não posso vir a sê-lo. Goergen (2005:61) elucida essa aparente contradição:

“Na verdade, a percepção refinada do poeta traduz algo mais profundo, algo que ultrapassa o mero esquematismo lógico. Mesmo que sejamos seres humanos desde o nascimento, podemos admitir, sem contradição, que aos nascermos ainda não somos seres humanos em plenitude, pois, não temos uma identidade. Somos apenas seres abertos ao vir-a-ser humano. Este era o conselho do poeta: construa sua identidade, ou seja, torna-te de fato o que já és como possibilidade: ser humano. O que torna o ser humano verdadeiramente humano, ou seja, em plenitude, não é o fato de nascer filho de humanos, mas a construção de sua identidade. Por isso, faz muito sentido o “torna-te o que és” do poeta. Suas palavras escondem, ainda, um outro sentido igualmente importante: Píndaro diz “torna-te”, e não “permita que façam de você” um ser humano. Vale dizer que tornar-se um ser humano implica construir a própria identidade que é tarefa de cada um. O ser humano é artífice, escultor de si mesmo. Tal processo ocorre por conta do duplo movimento de socialização e individuação. Pela socialização o ser humano adapta-se ao meio e torna-se um ser pertencente a uma cultura. Pela individuação ele constrói a sua própria individualidade, tornando-se único, distinto de todos os demais no interior da mesma cultura”.

O fenômeno da família, no qual se insere o homem, decorre do fato de que o ser humano surge para a vida numa situação de desamparo e, por isso, está necessariamente referido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os primeiros momentos de sua existência, o que pode ser observado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento até a maturidade.

Surge assim uma relação entre uma nova vida, que ainda não tem a consciência de sua própria existência, e uma outra em andamento, representada pelos pais, cuja função é a de facilitar o advento das capacidades que resultem necessárias das circunstâncias vitais e históricas, as quais estão delimitadas por um arco de tempo que, normalmente, encerra-se no momento em que aquela nova vida alcança sua independência existencial, o que se dá ordinariamente com a conquista de uma profissão.

Mesmo assim, o processo familiar não cessa, porque o elemento de potencialidade interior no ser humano é essencialmente maior do que nos animais irracionais: nestes seres, os limites de possibilidade e de realidade alcançam rapidamente sua descoberta, causando a impressão de já estarem predispostos em sua própria natureza. No ser humano, a situação é completamente diversa.

Por isso, como resultante da importância dessa dimensão familiar, nós devemos nos debruçar sobre o estado da arte familiar nos dias atuais. Há algumas décadas, pude escutar dos lábios de João Paulo II, que havia chegado para toda civilização ocidental a “hora da família”. Mais do que assinalar as respostas que a ideia contemporânea de família propõe-nos como solução para o período de transição da modernidade para a pós-modernidade em que vivemos[1], é imprescindível demonstrar como a família pode ser uma primordial e insubstituível protagonista das mudanças radicais que nossa sociedade reclama no alvorecer do século XXI.

Ao analisarmos as relações entre a família, como ente social, e seu atual entorno histórico-existencial, esboça-se claramente sua atitude defensiva, porque a instituição familiar vem sendo submetida a um progressivo processo de deterioração de suas bases ontológicas e, ultimamente, tem sido o alvo de ataques, diretos ou indiretos, de vários campos do saber, sobretudo nos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico. A família está cercada por todos os lados. Não nos estranha, pois, essa postura defensiva.

Entretanto, agora, é a hora da família. É a vez de sair dessa postura em prol de um protagonismo amavelmente ofensivo, em virtude, justamente, dos bens e deveres em jogo para o futuro da humanidade e do bem comum, porque os verdadeiros aventureiros das trilhas de nosso confuso e belo mundo são justamente os pais de família. Charles Péguy (1958:108) escrevia, há algumas décadas, que

“os aventureiros mais desesperados não são nada em comparação com eles. Tudo no mundo moderno está organizado contra esses loucos, esses imprudentes, esses visionários ousados (…) que se atrevem, com audácia, a ter filhos. Tudo está contra essas pessoas que se arriscam a fundar uma família. A única aventura que existe é aquela protagonizada pelos pais de família. Os outros estão hermeticamente fechados em seus mundos. Aquele que é pai ou mãe de família está aberto ao mundo de seus filhos. Os outros sofrem por si mesmos. Só os pais de família sofrem pelos filhos e em cada situação por eles vivenciada. Somente os pais de família esgotam o sofrimento temporal. Aqueles que nunca tiveram um filho enfermo, não sabem o que é a enfermidade. Aqueles que nunca perderam um filho, que nunca viram seu filho falecido, não sabem o que é a dor. E tampouco sabem o que é a morte”.

Assim, as famílias devem crescer com a consciência de serem protagonistas das chamadas políticas familiares e, em razão disso, assumir a responsabilidade de transformação da sociedade, porquanto, a prevalecer a atuação defensiva, as famílias serão as primeiras vítimas justamente dos movimentos e das ideias que alimentam uma espécie de anticivilização, como já podemos observar em muitas tendências intelectuais da atualidade e em muitos fatos sociais e políticos, cujo pantagruelismo é patente.

A família constitui, ao cabo, a fonte da civilização do amor, na feliz expressão cunhada por Paulo V[2]. A família, como motor de uma verdadeira e fecunda revolução social, é a missão que nos incumbe diante das portas do terceiro milênio de nossa história. Afinal, como já lembrava João Paulo II (1982:90), “tal é a família, tal é a nação, porque tais são seus membros”, palavras que serão o eixo estruturante deste trabalho intelectual. Então, parafraseando nosso poeta pagão, se a família deve ser o centro e o coração da civilização do amor, família, torna-te o que és!

 

PRIMEIRA PARTE

A instituição familiar não é fundada numa filosofia romântica e vaga e que serve de pouco no momento em que se pretende demonstrar a ontologia de seu ser no contexto da “cultura de repúdio” (SCRUTON, 2011:XII) em que vivemos. Uma cultura que corresponde à maneira como o Ocidente tende a repudiar os seus valores estruturais: a filosofia grega, o direito romano e a tradição religiosa judaico-cristã. Essa “cultura de repúdio” não representa apenas um empobrecimento moral ou mesmo epistemológico no confronto dos homens com o mundo.

Começa por ser um empobrecimento ontológico, independentemente de crença religiosa ou até mesmo de indiferença ou ausência desta. Sem um contato vital com aquele rico e perene arcabouço da genealogia ocidental, ficamos cegos, surdos e mudos para compreender corretamente dois milênios de civilização e todo seu legado existencial. E, no que toca ao campo filosófico, nossa razão fica um tanto obscurecida na tarefa de investigação da essência das coisas e a instituição familiar não fica imune a isso.

A respeito da família, o retrospecto histórico demonstra que se dá um acordo universal do gênero humano, explicado pela própria índole da instituição familiar. Não existe instituição mais próxima da natureza que a família. Sociedade simples, lastreada de maneira muito imediata em certos instintos primordiais, a família nasce espontaneamente do mero desenvolvimento da vida humana.

O Estado também deriva de certas exigências naturais, como o fenômeno do poder. Mas o quanto ele dista, sobretudo se concebido a partir da Paz de Westfália e aprimorado à luz dos princípios do Welfare State com todos seus mecanismos e órgãos artificiais, do instinto social primário que impulsiona o homem a sair do solipsismo e unir-se com seus semelhantes!

Ao contrário, o natural impulso do instinto sexual, do amor materno e do desejo de perpetuação dos seus são elementos que fundam a família de maneira mais imediata. A autoridade dos pais, no seio familiar, resta fundamentada, sem a necessidade de complexos e intrincados princípios, no mero fato de que os filhos nascem de seus pais e não podem viver e desenvolver-se sem eles.

Tampouco pode-nos surpreender o fato de encontrarmos em todos os povos civilizados uma organização familiar sensivelmente idêntica, cuja vigência pode ser também observada em comunidades mais próximas do tribalismo. Nesse ponto, evidentemente, a família surge como problema antropológico-cultural e a etnografia ou etnologia estruturalista, cujo maior expoente foi Claude Lévi-Strauss (1909-2009), etnólogo e filósofo francês, faz algumas provocações interessantes, sempre fundadas numa realidade empírica investigada cientificamente.

Toda vez que tais provocações vêm à tona, lembro-me da provocação de Bergson (1950:109) sobre a religião, mas que pode ser perfeitamente aplicada à família: um espetáculo humilhante para a inteligência humana, tomado a partir do inúmeros absurdos, erros, violências e sacrifícios privados de qualquer sentido e que, em muitos casos, andaram de mãos juntas com o exotismo antropológico e o desrespeito à dignidade da pessoa humana.

Tais teratologias, assim entendidas sob o prisma da antropologia filosófica, impedem, em última análise e em prejuízo dos membros da entidade familiar, uma correta inserção destes no mundo humano, depois da ação personalizante da família, mais precisamente no complexo e multifacetado tecido social, historicamente condicionado e axiologicamente amalgamado. Esta inserção, como observa Arendt (2002:190), dá-se por meio da ação, fundada sempre num legado de valores familiares, e, de certa forma, é como um segundo nascimento[3]: o advento do “eu” individual junto ao “nós” social.

As cortinas desse espetáculo humilhante, ao qual se referia Bergson, abrem-se, no universo familiar, para o respeitável leitor: a poligamia e a decorrente ascendência indevida do sexo masculino nesse tipo de relação; a poliandria e o problema da paternidade; as culturas que assimilam a mulher estéril ao homem, ao mesmo tempo em que o consentem ao desposamento de outra mulher; os povos que atribuem a paternidade legal ao marido abandonado pela mulher em relação aos filhos que estar vier a dar à luz depois; as realidades culturais que legitimam socialmente as núpcias de um homem com uma mulher e, ao mesmo tempo, com a filha desta; os agrupamentos sociais que dilatam a genitorialidade social em prejuízo da genitorialidade biológica; os costumes populares que impõem o sacrifício ritual dos primogênitos e que estimulam o suicídio da viúva sobrevivente.

Depois desse rol apenas exemplificativo de realidades antropológicas, poderíamos nos perguntar se existe realmente uma ideia orgânica de família, já que não se vê qualquer unidade lógica ou funcional que possa ser extraída a partir daqueles mesmos exemplos. A etnografia ou etnologia estruturalista põe – aparentemente, como veremos mais à frente – em xeque qualquer proposta da busca de um conceito perene de família. Então, não seria melhor considerá-la como uma mera estrutura portadora de um “testemunho da sociedade” e deixar aberta a questão relativa em “haver algum sentido em se construir um conceito histórico continuativo de família”[4]?

No âmago do diálogo entre a etnografia ou etnologia estruturalista e a antropologia filosófica, algumas considerações devem ser feitas[5]. Em primeiro lugar, até o século XVIII, o problema cultural coincidia com o pedagógico. Assim, a cultura era concebida essencialmente como paideia[6], como formação da pessoa[7] e não como uma estrutura fundamental (categoria autônoma) da sociedade. Consequentemente, o problema cultural era analisado sob a perspectiva antropológica exclusivamente, sem qualquer contribuição do viés etnológico, o que veio a suceder somente a partir do século XVIII.

Graças aos trabalhos dos iluministas alemães Herder e Humboldt, a reflexão filosófica tomou consciência de que a cultura é um fenômeno que não só diz respeito ao indivíduo, mas também ao grupo social com tal, enquanto ela representa seu sistema de vida, constitui o vínculo que une os indivíduos entre si e os diferencia dos membros de outros grupamentos sociais.

A partir da segunda metade do século XX, etnólogos europeus dedicaram-se ao estudo científico de civilizações antigas e de povos primitivos e, como corolário, elaboraram teorias gerais a respeito dos fenômenos culturais ali descritos, sempre à luz dos postulados gerais de uma dada cosmovisão. Lévi-Strauss, um dos mais importantes deles, era adepto do estruturalismo que, como efeito de qualquer corrente de pensamento, implica numa determinada concepção de homem. A etnologia, então, vista sob o viés estruturalista, foi autoerigida à condição de antropologia filosófica e tomou o lugar deste ramo no saber filosófico.

O estruturalismo nasceu como efeito de um aprofundamento teórico da linguística. A linguística propõe que o importante não é tanto o conteúdo das palavras (o significado), mas o contexto das palavras, isto é, o conjunto de relações que cada palavra trava com as demais. E esse contexto não é algo que se estabelece conscientemente, de uma só vez, mas é o produto de uma atividade inconsciente da coletividade, de maneira que cada homem singular a ela se submete.

Em suma, a palavra denota uma estrutura de relações que, precisamente por ser uma estrutura básica, pode admitir diversas superestruturas. Pouca serventia tem o conteúdo se não se conhece a base estrutural que permite que este exista. Por exemplo, na linha da linguística, a palavra “família” pode comportar diversas noções de família (genealógica, etnológica, monoparental, afetiva, social, entre outras).

Essa base estrutural tem somente uma função formal, porque o método estruturalista intenta somente descrever posições. Saussure ilustrou essa função formal da estrutura com um exemplo bem claro: esse método assemelha-se a uma partida de xadrez em que uma dada posição das peças prescinde por completo dos movimentos antecedentes. Uma determinada posição das peças – considerando todas as possíveis e reais relações entre elas – pode ser entendida tanto por aquele que acaba de chegar à mesa da disputa como por aquele que esteja seguindo-a desde seu início.

O estruturalismo, dessa maneira, não se interessa pela gênese dos conceitos ou por sua história, senão pela complexa teia de relações que, num determinado momento, é possível descobrir. Por isso, a estrutura é definida justamente como uma entidade independente de qualquer conceito essencial e serve como forma para os inúmeros conteúdos que são delineados por aquela teia de relações.

Mas o estruturalismo vai mais além de um simples método. Como já antecipamos, implica numa determinada concepção antropológica, segundo a qual o homem, em suas manifestações individuais (trabalho) ou coletivas (família) está sempre submetido a estruturas linguísticas, biológicas, psicológicas que as superam e que se impõem sobre ele. O homem, assim, não faz a si mesmo. Ele é feito por uma consciência coletiva superior a ele, da qual ele, no máximo, é sua expressão. Por isso, Foucault chegou afirmar, coerentemente com os postulados estruturalistas, que o homem não existe, assim como fez Lacan na psicanálise e Lévi-Strauss na etnologia.

Segundo a etnografia ou etnologia estruturalista, a família, em suas diversas manifestações históricas, nada mais seria que um produto do pensamento inconsciente coletivo e jamais poderia haver um conceito natural dessa instituição, diante dos resultados das pesquisas de Lévi-Strauss, nos quais convivem a poligamia e a poliandria, entre outros, como superestruturas da estrutura familiar, tomadas sempre à vista do contexto de relações humanas desenvolvidas nas mais diferentes sociedades.

Pensamos que a família não é uma “resposta estrutural” que comporta infinitas superestruturas, moldadas no seio de relações sociais axiologicamente indiferentes. É, muito antes, uma “resposta antropológica”, porque, como ente multissingular, a família obedece à antropologia do homem, tanto que se cuida de um ente fundamental e insubstituível para qualquer sociedade de todas as eras e de todos os tempos. O próprio Lévi-Strauss (1967:134) afirma que “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”.

De fato, como seres humanos que somos, nossa própria maneira de ser nos revela, sem muita dificuldade, como diz Spaemann (1996:38), que somos “gerados e não feitos”. Isso significa que, para que comecemos a existir (desde a fecundação, segundo entendemos), precisamos ser concebidos por outros seres humanos, pois nada pode dar o que não tem e o efeito não pode ser desproporcional à sua causa.

Para que a concepção se verifique, é indispensável a complementariedade biológica, sexual e psicológica entre uma mulher e um homem e isso é apenas o começo: a tarefa não se encerra com a geração do filho, mas se requerem décadas para que esses filhos cresçam, amadureçam e se desenvolvam, fases da vida em que os pais são indispensáveis, porque cada faz um aporte existencial e espiritual, desde sua particular perspectiva e, ao mesmo tempo, de maneira conjunta e complementar. A família, assim entendida, não foi inventada, porque é uma instituição natural e isso explica seu caráter universal e perene.

Doravante, acreditamos ser essa assertiva capaz de conduzir nossa investigação ao reenvio de uma série elementar de atributos que constituem o ente familiar. Tais atributos, por consequência, devem ter os toques da universalidade e da perenidade e, em sua essência, devem ser insuscetíveis de sofrer os efeitos da usura do tempo, salvo em suas formas de concretização, evidentemente condicionadas aos matizes históricos e materiais, mas sem que haja perda de sua identidade. Em suma, continuam, ontologicamente, referindo-se ao passado, mas, formalmente, agem diversamente do passado. DONATI (2000:64-65) anota que

“a família permanece como o lugar onde continua em vigor a proibição de inversão dos papéis sexuais (masculino e feminino) e geracionais (entre os que geram e os que são gerados), inclusive a proibição de incesto, mesmo se sexos e gerações não sejam mais separados, mas fortemente interativos entre eles. A família é e tende a ser aquela específica relação social à qual sempre é mais confiada a tarefa – não transferível a outras relações sociais – de personalizar a pessoa, através de específicos processos de socialização. Estes processos são essenciais para a maturação da criança e também do adulto, se e na medida em que “formar uma família” significa orientar a comunicação à totalidade da pessoa, segundo uma norma de reciprocidade solidária total”.

Por ser uma instituição tão próxima da natureza, o respeito às exigências naturais – se não se pretende desvirtuá-la – em matéria legislativa e jurídica deve ser redobrado, porque, historicamente, sempre que uma sociedade veio a soçobrar, o processo de decadência começou justamente pela família., como em Roma e, mais recentemente, nos totalitarismos de esquerda e de direita que se prodigalizaram ao longo do século XX.

Em outras palavras, a moralidade familiar é uma moralidade natural e não religiosa. Aliás, nesse ponto, convém lembrar que a tradição judaico-cristã nada mais fez do que assumir aquela moralidade natural e atribuir-lhe uma dignidade transcendental. Não inventou qualquer noção de família, apenas captou seus matizes essenciais e os incorporou ao magistério eclesial, a fim de indicar racionalmente aquilo que reforça – do ponto de vista dos costumes e das leis – aquela moralidade natural e aquilo que a dissolve.

Leclerq (1979:15), a respeito disso, informa que

“a continuidade entre a moral familiar cristã e a moral familiar humana é tal que, os escritores dos primeiros séculos invocam a elevada moral familiar dos cristãos como argumento em favor da fé. A pureza e a união das famílias cristãs são motivos de triunfo e os opõem à desordem dos costumes pagãos. Este argumento não teria valor algum para aqueles espíritos da cultura se não houvesse concordância com seus princípios. Se os pagãos considerassem a orgia como uma virtude e a castidade como um vício, em vão tais escritores teriam invocado a pureza dos costumes cristãos: estes deveriam já ter provado, de antemão, o valor da dita pureza. Se sentiram necessidade disso, foi porque uns e outros estavam de acordo quanto aos princípios. O mundo pagão não estava tão corrompido em seu espírito quanto estava em seus costumes (…). Não há que se assombrar, por conseguinte, pelo fato de que a sociedade cristã tenha se desenvolvido lentamente por uma espécie de crescimento natural. Nos primeiros séculos, a Igreja reagiu contra os costumes e as instituições jurídicas pagãs em determinados pontos, como a indissolubilidade do matrimônio e a importância da virtude da castidade. Depois, cobrou maior relevo de outros aspectos da moral familiar, como o princípio da liberdade dos consortes em contrair um matrimônio válido e, mais tarde, o direito inalienável dos pais como educadores de seus filhos”.

No seio dessa moralidade natural, reconhecemos que o direito e o ente familiar atuam em conjunto, estabelecendo uma perspectiva ontológica dotada de uma juridicidade e de uma essencialidade bem claras e definidas.  Mas logo emerge o quadro empírico-social vigente, ainda mais para quem lida diariamente nas varas de família, capaz de oferecer ao observador algumas intuições que, no fundo, servem para sinalizar muitas ambivalências nessas transformações havidas, à luz da ontologia familiar já delineada e sem qualquer apego nostálgico pela família “de ontem”, na definição de Giddens[8].

Mas também, por outro lado, sem aceitar servil e acriticamente as ofensivas que se fazem contra a instituição familiar, as quais serão objeto de nossa investigação doravante, e que costumam ser apresentadas, com um pomposo jogo semântico, na sociologia, pela expressão “pluralidade das formas familiares” e, no Direito, pelo título de “Direito das Famílias”. Não é por acaso que o mesmo Giddens (2000:75) reduz a família, à semelhança de muitas outras instituições sociais, à uma singela “instituição-casca”, ou seja, a um ente social que (GIDDENS, 2000:75) “ainda é chamado do mesmo modo, mas que, em seu interior, já é fundamentalmente diferente”.

 

SEGUNDA PARTE

Neste século XXI, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Entretanto, nunca como hoje a qualidade das relações familiares é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras.

Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa. Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação socializante da família, tarefa na qual sempre desempenhou um papel chave e único. Quando o ente familiar fica reduzido à uma espécie de célula primária da vida individual (e não social), aquela vocação fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma interação ética com os outros.

Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta, inaudita e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas, sobretudo, dos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico, sem prejuízo de seu principal efeito colateral, o fenômeno da despersonalização dos indivíduos, o qual será abordado na terceira parte deste trabalho. Vejamos, então, brevitatis causa cada um deles.

Na ofensiva filosófica, certas correntes de pensamento, portando conteúdos novos para os conceitos de pessoa/indivíduo, igualdade/identidade, liberdade/licitude, prazer/felicidade, colocaram a família em xeque, já que tais conceitos envolvem questões fundamentais para o homem. Pensamos que qualquer sistema filosófico construído com rigor e sistematicidade deve estar aberto às questões fundamentais que se abrigam no coração dos homens.

Boa parte das filosofias contemporâneas rejeitam, aprioristicamente, os conceitos de essência e de verdade, porquanto se entende que cada o ser de cada um depende exclusivamente do contexto cultural em que a pessoa está inserida (historicismo e culturalismo, o velho e o novo nome do relativismo) ou que a verdade é relativa (modernismo) ou mesmo que ela não existe (pós-modernismo).

Se cada categoria (a família, por exemplo) resume-se à uma imposição das relações de poder em voga (estruturalismo), nada é real e tudo é como aparece ao indivíduo. Se o foro de escolha disto ou daquilo reduz-se à estrita ação da vontade ou dos afetos (subjetivismo) ou se minha “felicidade” depende somente da satisfação dos prazeres (hedonismo), não existem, por conseguinte, mais a verdade e a essência. A virtude (como a magnanimidade) e o vício (como a mediocridade) tornam-se, eticamente, categorias equivalentes (niilismo – a “transvaloração” dos valores) e, no bojo desse caleidoscópio filosófico, qualquer noção de responsabilidade moral padece de sentido (modernidade líquida).

Estas e outras perspectivas de pensamento prevalecem no pensar e no agir das pessoas e, como efeito, atingem também o âmbito da noção de família: o ataque filosófico não se impõe com a expressão “isto não pode ser considerado propriamente uma família”, mas com outra manifestação – “sua ideia de família é tradicional e, portanto, superada. É possível redefini-la a fim de estimular outros laços entre os cônjuges e entre estes e os filhos”. Nessa tarefa de rearranjo destes laços, o céu é o limite.

Na ofensiva semântica, o termo “família tradicional” é muito usado em contextos políticos nos quais se debate a aprovação de diversas formas sociais de união, particularmente a união homossexual[9]. A partir do momento em que uma certa visão deturpada de fenomenologia expulsou a ontologia do núcleo do conceito de entidade familiar, isto é, a família não seria mais do que uma forma historicamente plasmada, não demorou muito para que o termo “família” agasalhasse outras relações sociais que muito pouco ou nada lembram seu conteúdo essencial, fato confirmado cientificamente pela etnologia. E é por isso, também, que os manuais de direito sobre família recebem o título, em muitos casos, de “direito das famílias”.

Essa postura não é tão inocente quanto parece, porquanto carrega uma carga semântica diversa. Discorre-se sobre “as novas famílias”, referindo-se aos “diferentes” que, a despeito da “diferença”, lutam para alcançar não somente aquilo que se refira a eles, mas também tudo aquilo que usufruem os “normais”. A expressão em foco é usada para tratar de temas que muitos pretendem furtar de qualquer vetor ético para relegá-los ao âmbito de uma mera política pública[10].

A expressão “novas famílias” é ambivalente, pois funciona como veículo de ideias que, no fundo, contradizem aquilo que significam à primeira vista. Uma vez manipulada, circula por todos os ambientes sociais. Não é o homem inteligente que a usa como própria, mas é a linguagem, imposta pelos grupos de pressão, que fala dentro dele. Heidegger já afirmava que não é o sujeito singular a falar, mas a linguagem que fala em nós. Orwell já profetizava, no livro “1984”, que o Big Brother manipularia a linguagem para que significasse o oposto daquilo que falava. Sabemos que as palavras são sinais inventados pelo homem, enquanto animal loquente (que possui a palavra) e significante (que se expressa). A palavra é sempre relativa a um conceito e este a uma coisa. O falar vem depois do pensar e o pensamento ganha sentido na medida em que se torna expressão da realidade que lhe é anterior.

O acerto semântico ocorre na reunião dos três níveis: palavra, ideia e realidade. Naturalmente, o homem tende a fazê-lo. Mas, como somos capazes de unir os três níveis, somos capazes de apartá-los. Quando os três mundos, o linguístico, o conceitual e a realidade posta, não estão em sintonia, as coisas deixam de ser ditas pelo seu verdadeiro nome: o aborto vira interrupção uterina, a eutanásia vira morte indolor, a afetividade toma o lugar do amor no seio das relações familiares, o adultério passa a ser chamado de aventura amorosa e o homoerótico transforma-se em homoafetivo[11].

Na ofensiva legal, todos sabemos que a tarefa da lei civil é a de assegurar o bem comum das pessoas por meio do reconhecimento e da defesa de seus direitos fundamentais, da promoção da paz e da moralidade pública. O bem comum político é a medida de avaliação ética das leis civis, como já alertava Aristóteles (2005:90).

Na história, a indissolubilidade da família constituída pelo matrimônio sempre foi ameaçada por leis em maior ou menor grau. O Velho Testamento, o Código de Hamurábi, na Grécia (com exceção do período homérico), em Roma (com exclusão da Monarquia e da República. No Império, na medida em que a opulência foi dissolvendo os costumes, generalizou-se o divórcio) e os povos do Oriente permitiam o divórcio. Muito mais como uma concessão à debilidade humana do que uma teoria moral.

Frise-se que a boa parte dos povos antigos era mais ou menos polígama e, por isso, a questão do divórcio tinha uma importância muito menor do que hoje, em que a família estrutura-se monogamicamente. O divórcio era uma prática, tornando-se legal porque compunha o costume de um povo. Atualmente, a situação é diversa: na sociedade ocidental, a tese divorcista apresenta-se como efeito de uma teoria moral, o direito ao “amor livre”.

É um filhote intelectual do liberalismo moral, de cunho individualista e racionalista, que vê o bem do homem exclusivamente na liberdade e na igualdade. Todos os homens têm o direito de buscar livremente sua felicidade e este direito estaria tão arraigado na natureza humana, que o homem não teria o dever de comprometer-se por toda a vida. Livres e iguais por natureza e titulares do direito à felicidade, os homens teriam o direito ao amor desenfreado, uma de suas formas essenciais, e ao direito de buscá-lo livremente, já que o amor é espontaneidade, não suporta subordinação e basta por si mesmo. Nessa linha de raciocínio, como o homem busca exclusivamente o bem pessoal, o bem comum, então, vira uma questão secundária.

Sob o influxo do materialismo, que invadiu a sociedade moderna, sobretudo após o advento do positivismo (século XIX), a teoria moral do amor livre foi repaginada e, nos ambientes do socialismo marxista, que reduz o bem do homem ao bem estar econômico e à felicidade “fisiológica”, serviu como apoio teórico para a edição de leis contrárias à instituição familiar.

A teoria em foco, tomando uma roupagem legal, conduz à anarquia sexual e à destruição da família. Se é certo que nem todos seus defensores, na prática, chegam ao extremo das implicações destes postulados, por outro lado, convém separar o acerto do erro nas hipóteses em que esta teoria aparece mesclada com outras diferentes. A família vê-se ameaçada por uma série de leis fundadas na teoria do “amor livre”: desde a limitação de nascimentos até a possibilidade de divórcio como terapêutica “preventiva” do adultério.

Na ofensiva científica, o quadro não difere muitos daqueles anteriormente tratados. Antes de mais nada, convém relembrar que a união conjugal tem uma antropologia implícita naturalmente estabelecida: diversidade sexual, complementaridade e abertura à procriação, alimentada pela natural atração entre homem e mulher e sobre a qual se articula a livre vontade de ambos, fundada pelo amor, e não pela simples afetividade, à doação e à aceitação mútua.

O amor conjugal não se limita a uma mera expressão da afetividade ou mesmo da volatilidade e do tumulto das emoções. Aliás, o amor humano pleno, em quaisquer de suas formas, não somente no amor esponsal, é oblativo, porque o amor consiste em (ARISTÓTELES, 2011:49) “querer o bem para o outro, enquanto outro”[12].

Amar é, primeiro lugar, querer, ou seja, o amor é uma dimensão que radica formal e prioritariamente na vontade e não se localiza na dimensão da afetividade (simpatias, sentimentos ou interesses). Quando se dá essa confusão, o sujeito, na prática, age como os seres inferiores (animais), porque é incapaz de saber dizer “eu quero” ou “eu não quero”. Em sua base, o amor é um ato da vontade e da inteligência, livre na causa, comprometedor nos efeitos e regido pela lógica da gratuidade.

Em segundo lugar, o amor busca o bem, mas o bem do ser amado, um bem real e objetivo: aquele que o aperfeiçoa como pessoa, tornando-o um ser humano mais completo e conduzindo-o para além do campo de seus próprios interesses e de suas apetências privadas. Em terceiro lugar, o querer do bem do outro é feito em consideração do outro enquanto outro, uma clássica reduplicação que encerra a cifra terminal do amor verdadeiro, porque a grandeza ontológica que me corresponde como pessoa exige que toda minha capacidade de agir seja vertida para os outros[13].

Logo, não nos parece possível que a estrita justaposição de dois egoísmos possa engendrar algum tipo de amor, ao menos digno de tal nome. Como o amor conjugal demanda o compromisso aberto à transmissão da vida, decorre que a sexualidade, neste âmbito, não é um singelo dado fortuito nem somente uma maneira alternativa pela qual os cônjuges podem canalizar seu apetite sexual com exclusividade.

Às vezes, o casal não pode conceber de forma natural. Nesse caso, a ciência em muito colabora para a superação deste revés, quando estabelece técnicas de reprodução que preservem a dignidade da pessoa humana. Ou, ainda, quando a ciência, de mãos dadas com a ética natural, preserva a natureza do ato conjugal. Todavia, as tecnologias reprodutivas da fecundação in vitro, da mãe de aluguel e da inseminação artificial  – casos mais ordinários – atentam diretamente contra a pessoa e à família.

Estes métodos têm, em comum, em relação à pessoa, o desrespeito à unidade do matrimônio, à dignidade da procriação da pessoa humana e à unidade parental física, psíquica e biológica. Em relação à família, tais efeitos corrompem toda a relação humana, na qual se constitui e se define a vida familiar. As crianças, podendo ser concebidas fora do corpo, do ato sexual conjugal e do amor, serão o resultado de uma mera manipulação genética que, a longo prazo, tornará a família um sistema ultrapassado de procriação.

Como apontava Lewis (2005:38), “cada novo poder científico conquistado ‘pelo’ homem é, ao mesmo tempo, um poder ‘sobre’ o homem. Cada avanço o deixa mais forte e, ao mesmo tempo, mais fraco. Em toda conquista da natureza pelo homem, há uma certa beleza trágica: o homem é o general que triunfa e, ao mesmo tempo, o escravo que segue o carro do exército vencedor”.

Na ofensiva ideológica, já tivemos a oportunidade de constatar, na primeira parte deste artigo, que a família é, por excelência, o princípio da continuidade social e da conservação das tradições humanas. Em suma, ela é o elemento de preservação da civilização, porque os valores são salvaguardados pelos antecessores e transmitidos pelos sucessores.

As ideologias tomam um aspecto da realidade, que goza de um peso específico, e lhe conferem tal envergadura como se aquele aspecto (como a economia, política e cultura) explicasse todos os princípios primeiros e as causas últimas daquela realidade examinada. Invariavelmente, falam com um sotaque estatalizante, pois acreditam que o poder estatal é a fonte de todo direito, inclusive dos direitos da família.

Por sua vez, a família é um obstáculo, já que é o locus, por excelência, da educação da prole. Por isso, quando uma ideologia alcança o poder, uma das primeiras investidas recai justamente sobre este direito, subtraindo-o do âmbito familiar e entregando-o nas mãos do Estado. As crianças e jovens passam a ser educados fora daquele contexto, à vista daquilo que a ideologia almeja como um projeto de poder. Afinal, a família pode produzir indivíduos ideologicamente “desajustados”.

Na experiência de reengenharia social mais longa e traumática do século XX, o socialismo, inspirado pelo marxismo, entendia que a família nascia com a propriedade privada capitalista, como instituição social monogâmica, reflexo, em menor escala, da luta de classes (burguesia x proletariado) e com a ascendência do homem sobre a mulher. Abolido o capitalismo, a família desapareceria, porquanto seria um mero reflexo histórico de uma época em que o interesse privado era preponderante. A família, com efeito, era considerada como uma superestrutura que se apoiava na infraestrutura dos meios de produção: no futuro, a família se reduziria apenas ao casal, unido pela satisfação erótica recíproca, numa espécie de egoísmo a dois.

O nazismo, irmão intelectual da genealogia totalitarista, também atuou de forma semelhante, embora movido por outro fim. As crianças eram afastadas de suas famílias desde cedo, alistando-se no Jungvolk (povo jovem) aos 10 anos, para serem treinadas em atividades extracurriculares de doutrinação ao nazismo. Aos 14 anos, os jovens ingressavam na Juventude Hitlerista, com sujeição a uma disciplina semi-militar e introdução à propaganda nazista. No fim do ciclo, aos 18 anos, deveriam alistar-se nas forças armadas ou nas forças de trabalho.

Em ambos os casos, a família não tinha lugar na estrutura ideológica e era desacreditada como instituição, pois não poderia constituir o terreno fértil para o crescimento do “ser coletivo”, objetivo primário de ambos totalitarismos. Negou-se à família sua tarefa intransferível de educação e de mediação social. Encurralada num sistema teórico inflexível, metamorfoseou-se a família num ente instrumental para o sucesso de uma causa ideológica. Ao cabo, a pobreza antropológica destes experimentos foi de uma evidência empírica sem precedentes, comparável apenas ao número de cadáveres que cada um deles produziu.

Não se estranha porque a sabedoria humana, a partir da qual surgiram todas as áreas do conhecimento anteriormente tratadas, desde seus primórdios, tenha dedicado várias linhas à importância social da vida familiar. Na realidade, uma fecunda sabedoria humana, a fim de se ver livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensamento de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.

Cícero (2000:54), nessa linha, por exemplo, chamava a familia de principium urbis et quasi seminarium rei publicae. O mesmo princípio está contido, em versão moderna, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.16, 3 – A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado). E outros exemplos podem ser ditos. Ao cabo, resta-nos afirmar que todos esses ataques à família, em seus mais variados campos e intensidades, demonstram que o novo, misturado de diversas formas, só serve para realçar o acerto dos contornos do velho. E da sabedoria humana que o sustenta.

 

TERCEIRA PARTE

Dentro deste ambiente intelectual desfavorável e deste caldo civilizacional confuso e caótico, a família, mesmo assim, deve reocupar o espaço que lhe é próprio por natureza. Não se trata de uma batalha das Termópilas, uma batalha de retaguarda a ser conduzida por bravos homens escudados pelas armas da nostalgia. Mas um horizonte a ser conquistado para bem da sociedade que, necessariamente, passa pelo nexo que une família e sociedade: a pessoa. A família dá consistência e alimenta a pessoa. Uma vez formada, a pessoa, por sua vez, nutre a sociedade. Por conseguinte, sem família não há pessoa e sem pessoa não há sociedade.

Embora a família seja uma instituição imprescindível para que a pessoa possa, em efeito, sê-lo, afirmando a plenitude de sua índole pessoal, a sociedade, pelo contrário, para se erigir sob uma condição humana e não como um mero agrupamento de indivíduos, deve estar composta por pessoas em sua totalidade, capazes de estabelecer entre si e nas mais variadas tramas do tecido social, relações interpessoais, regidas por amor e entrega gratuita, na efetiva busca do bem alheio.

A família, enquanto sociedade primária, constitui o paradigma do restante dos agrupamentos humanos. E, por isso, não é uma simples célula de sociedades mais amplas, porém, em razão de seu profundíssimo virtuosismo personalizante, é uma sociedade soberana. A soberania da família não se radica numa falsa e presumida autossuficiência, a ponto de assegurar sua subsistência sem o apoio dos demais grupamentos humanos, mas porque guarda uma íntima conexão com o fim último de todo ser humano, sua promoção enquanto pessoa. Em suma, a família é um modelo de sociedades e uma sociedade soberana.

João Paulo II (1980:237) afirmava explicitamente que

“o homem, acima de toda atividade intelectual ou social, por mais alta que seja, encontra seu pleno desenvolvimento, sua realização integral e sua riqueza insubstituível no seio familiar. Aqui, realmente, mais que em qualquer outro campo vital, joga-se o destino do homem. (…) O homem não tem outro caminho rumo à humanização do que por meio da família. A família deve ser colocada como o fundamento mesmo de toda a solicitude para o bem do homem e de todo esforço para que nosso mundo seja cada vez mais humano. Nada pode subtrair-se à essa solicitude: nenhuma sociedade, nenhum povo, nenhum sistema, nem o Estado, nem a Igreja e nem mesmo o indivíduo”.

O papel personalizante da família encontra seu fundamento último na natureza mais íntima e orgânica da instituição familiar, uma associação de pessoas. Contudo, essa natureza mais íntima e orgânica, ao se constituir no principal alvo do efeito colateral daquelas inúmeras ofensivas tratadas na segunda parte deste trabalho, acaba, também, por perder sua vitalidade e envereda por um processo crescente despersonalização: por um lado, a desconstrução do sujeito[14], que o priva das propriedades mais manifestas de sua condição pessoal e, por outro, a dissolução da individualidade irrepetível de cada um, em prol de uma massificação amorfa de condutas, porque apenas diversificadas em sua aparência.

Hegel, por assim dizer, desencadeou esse processo de despersonalização ao ter estabelecido, num vistoso arcabouço filosófico, que o indivíduo é um mero momento sem relevância na constituição do todo estatal. Depois dele, as filosofias materialistas simplesmente deram consequência prática à essa afirmação: o nacional socialismo alemão, o comunismo marxista, os socialismos de marca vária e o capitalismo liberal. É o eterno retorno: primeiro, questiona-se um valor; depois, alguém irá tratar dele por outros métodos.

Entretanto, hoje, a partir de um conjunto global de estruturas – economia, política, educação, trabalho, moda, entretenimento, telecomunicações, legislação – que configura o atual momento civilizacional, o fenômeno da despersonalização entrou numa dinâmica entrópica drástica, sutil e devastadora, porque tal conjunto global tende a homogeneizar e a massificar o indivíduo, reduzindo-o a um mero fragmento social ou a uma peça do sistema, nas quais a individualidade e o personalismo, ao invés de se desenvolverem, acabam por definhar até desaparecer.

Vejamos na educação superior das humanidades. Hoje, ao término desse processo educativo, estamos interagindo com um sujeito mais pleno e virtuoso, cônscio de seus direitos e deveres, de seu lugar no mundo, de seu papel entre seus iguais na sociedade, capaz de conferir sentido e alcance à sua existência? Ou topamos de frente com um “técnico” em humanidades, cujo auge de sua potencialidade criativa, na órbita profissional, está em fazer com que o sistema “funcione”, ou seja, em suma, esse “técnico”, no fundo, não passa de um “funcionário”[15]?

Ou, ainda, estamos estritamente preocupados na formação de um faber ou de um laborans sem alma ou peso específico e quase sem humanidade? Estamos, no fundo, buscando, ainda que sem clara consciência, um indivíduo que não seja nada mais além de uma peça que se encaixe com o menor grau de fricção possível no interior de um sistema laboral e econômico, a fim de assegurar ao conjunto o máximo de bem estar social, lema que foi adotado, por nossas sociedades, como um fim em si mesmo? Será que o mundo do trabalho não acaba por consolidar definitivamente o fenômeno da despersonalização[16] conduzido pela educação durante anos?

Na economia, o quadro não difere muito. Nesse campo, o grande ausente é a pessoa. Se os valores pessoais tivessem algum peso no sistema produtivo, tudo desembocaria na produção de bens que consistissem num efetivo incremento na categoria pessoal de seus destinatários. Bem ao contrário disso, em boa medida, o fundamento da economia contemporânea está na constante criação de necessidades supérfluas, quase sempre materiais, convertendo os indivíduos em meros consumidores, ao ponto de serem consumidos pelo próprio consumismo[17].

Uma economia movida pelo consumo exacerbado e enredado em si mesmo subordina seus atores, sejam fornecedores, produtores ou consumidores, ao império do dinheiro, de sorte que uns e outros terminam por restarem despojados de suas dimensões mais altas. Novamente, a pessoa fica preterida a um plano secundário, submetendo-a uma inquietante dimensão infra-humana.

No entretenimento, o desenho fático acompanha o quadro geral de despersonalização. O cinema, a música, a arte raramente induzem à formação de nossas prerrogativas singulares e, na prática, transformam-nos em fragmentos de massas amorfas, satisfeitas com um leque monocórdico de diversões que, no mais, servem apenas para nos fazer esquecer, por uns instantes, da alienação vital que nos cerca, porque a qualidade de tais distrações não tem nada ou muito pouco de cultural: esquecidas as dimensões da bondade, da verdade e da beleza, o entretenimento alimenta tão somente a afetividade e a emoção dos espectadores, já desprovidos de altura, peso e relevo, ou seja, apenas os aspectos periféricos de indivíduos carentes de profundidade espiritual e existencial[18].

Na política, o surto despersonalizante não difere das dimensões anteriormente analisadas: em regra, as agremiações políticas não defendem um ideario coeso e comprometedor, levado a cabo com paixão e temperado pelo debate intelectual pautado pelo respeito, liberdade e responsabilidade. Pelo contrário, enveredam por longos projetos de poder que só conseguem ser sustentados à base de muita demagogia e fisiologismo político, relegando o cidadão à condição de mero votante e, ao negar o atendimento de suas necessidades básicas, cria-se um ambiente social despersonalizante, cujo efeito mais perverso é a ascensão do arbítrio em prejuízo do bem comum.

Dizia Chesterton (2013:46) que “se queremos preservar a família, devemos revolucionar a nação”. Dessa forma, diante desse diagnóstico existencial contemporâneo – formado pelos ataques diretos à família e seu efeito colateral despersonalizante –, a chave dessa revolução transita necessariamente por aquilo que somente a família é capacitada para fazer crescer e amadurecer: a pessoa. Sobre a pessoa e seus valores deve girar o eixo do movimento revolucionário cujo ponto de chegada será a civilização do amor, conforme afirmamos na primeira parte deste trabalho.

Essa tarefa radicalmente repersonalizante começa por cada um de nós. Assim como um diamante é polido somente pela ação de outro diamante, a formação de uma pessoa – que se dá pela educação – somente pode ser realizada desde outra pessoa e pondo-se em jogo os atributos mais tipicamente pessoais: comprometendo-se a própria vida para solicitar dos demais aquilo que existe também de mais estritamente pessoal, a saber, sua inteligência e, sobretudo, sua vontade, na qual tem assento sua capacidade de amar, de querer e de construir o bem dos outros, Em suma, não há resposta técnica ou de cartilha para isso,

Nem pode haver, porque a tecnicidade reinante surgiu da mesma raiz despersonalizante da qual nasceu a modernidade: do afã de poder, de domínio, do intento de constituirmos, sem reservas, em donos e senhores absolutos da natureza e do universo (Descartes), para alcançar assim, por meio desse império hegemônico e desenfreado, nossa felicidade. Isso não só não aconteceu como o homem, como é reconhecido universalmente, desapareceu como efeito necessário do sufocamento provocado pela prepotência do instrumental técnico-científico criado por ele mesmo. Triste realidade histórica: crescemos ao longo de séculos e, depois, desaparecemos.

Essa subordinação mortificante já possuía em seu cerne o motor que converteria a realidade em matéria de manipulação transformadora, capaz de proporcionar aos mais fortes as vantagens, os benefícios e o bem estar, tudo isso alçado à condição de objetivos supremos de toda uma cultura. Para elevarmos seriamente a categoria humana resulta imprescindível resgatar suas dimensões estritamente pessoais. Melendo (2008:91-92) arremata que

“a regra de ouro, capaz de inspirar o labor restaurativo da sociedade em que a família está chamada a vir a ser, poderia ser assim enunciada: quanto mais profundamente incidir uma ação sobre os atributos pessoais mais íntimos do destinatário, tanto maior será sua capacidade de melhorar profunda e duradouramente essa pessoa, precisamente enquanto pessoa. Pelo contrário, na medida em que essa intervenção apelar para as dimensões mais superficiais e epidérmicas do ser humano, menor a possibilidade de se influir positivamente sobre ela”.

Quanto mais periférico e despersonalizante seja o influxo, maior será o poder de incitar os indivíduos à comodidade, à vida frívola e pouco substancial até se chegar ao gregarismo dissipador das teias sociais. E resulta mais difícil, por outro lado, a movê-los em direção ao bem e à uma atuação estrita e responsavelmente pessoal. Transformar a educação, o trabalho, a economia, o entretenimento e a política supõe vencer o coeficiente despersonalizante que cada uma delas carrega consigo, trabalhando a partir dessas dimensões e apesar delas, mas com um suplemento de humanidade, sem ceder jamais à tentação de acudir aos recursos e técnicas despersonalizantes que tais dimensões reclamam.

Por consequência, a partir do combate ao efeito colateral dos ataques ao ente familiar, paulatinamente, aquelas ofensivas diretas irão cessando, porque também serão esclarecidas e humanizadas mediante a insubstituível ação da relação pessoa-pessoa. E essa relação é particularmente feita na família e desde a família, a fim de se poder constituir a civilização do amor.

 

Considerações finais

Notamos que a família está enredada num ambiente social que pouco colabora para o desenvolvimento de suas potencialidades e virtuosidades, sobretudo no que atine à função personalizante do indivíduo, tarefa que sempre lhe foi incumbida ao longo da história, porque se trata do único ente social capaz de fazer frente a esse difícil desafio. Ao mesmo tempo, afirmamos a necessidade da família ser novamente alçada ao posto de custodes do humanum.

O quadro atual do contexto familiar, representado pelo confuso rearranjo dos papéis familiares, pelo aumento indiscriminado do número de mulheres no mercado de trabalho e das estatísticas de divórcio, pela diminuição dos matrimônios e pelo incremento das uniões estáveis e dos adultos solteiros, pelo decréscimo do nível de convívio familiar,  pela exacerbação da violência juvenil, pela inversão da pirâmide etária, pelo inverno demográfico em muitos países, pela reivindicação do direito de constituição de uma família pelos pares homossexuais e pela disseminação da violência familiar, oferecem ao estudioso um fértil campo de intuições, a fim de se poder chegar a uma série de deduções que permitam separar as causas dos efeitos da desagregação da noção ontológica do ente familiar e, ao mesmo tempo, realçar as contribuições que a família histórica dá para a ontologia familiar.

Sob outro ângulo, surgem, no horizonte do conhecimento, uma série de propostas carentes de um adequado fundamento antropológico e ético que, no limite, irão apenas aprofundar ainda mais aquele vazio ontológico, ainda mais se chanceladas pela normatividade do Direito. Em suma, são mais do mesmo, radicalizando a crescente abolição do humanum, ou seja, da tarefa personalizante do ente familiar. Um horizonte civilizacional pouco propício à conclusões e estimativas encorajadoras.

Em contrapartida, procuramos, numa sólida base antropológica e ética, sugerir uma forma de reencontro do caminho perdido: o resgate da ideia de família como uma comunidade de pessoas, fundada e vivificada pelo amor. Nosso contorno existencial e histórico reduziu a vitalidade do ente familiar à secura da despersonalização antropológica e, agora, redescobre a dimensão ontológica em busca da natural juridicidade constitutiva da família, em prol do bem comum, porquanto favorece a função personalizante e o telos social do ente familiar.

 

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[1] Entendemos que, hoje, dentre os principais campos do saber, a pós-modernidade já completou seu processo de influxo e transformação epistemológica (que ainda toma corpo no campo do Direito de Família) apenas nas artes, a julgar pela irracionalidade e pela completa falta de senso ontológico e estético (quando não atingem a dimensão de verdadeiras pornopopéias) das principais manifestações artísticas expostas nos mais renomados museus do mundo inteiro. Nesse ponto, recordo-me de Vargas Llosa (2013:75-76) ao dizer que “no que me diz respeito, percebi que algo estava podre no mundo da arte há exatamente 37 anos, em Paris, quando um bom amigo, escultor cubano, cansado das negativas das galerias em expor as esplêndidas madeiras que eu o via trabalhar de sol a sol em sua mansarda, decidiu que o caminho mais seguro para o sucesso em matéria de arte era chamar a atenção. E, dito e feito, produziu umas “esculturas” que consistiam em pedaços de carne podre, fechados em caixas de vidro, com moscas vivas esvoaçando ao redor. Uns alto-falantes asseguravam que o zumbido das moscas ressoasse por todo o local como uma ameaça aterrorizante. Triunfou, de fato, pois até um figurão da Rádio e Televisão Francesa, Jean-Marie Drot, o convidou para seu programa. A mais inesperada e truculenta consequência da evolução da arte moderna e da miríade de experimentos que a alimentam é que já não existe critério objetivo algum que permita qualificar ou desqualificar uma obra de arte, nem situá-la dentro de uma hierarquia, possibilidade esta que se foi eclipsando a partir da revolução cubista e desapareceu totalmente com a não figuração. Na atualidade tudo pode ser arte e nada é arte, segundo o soberano capricho dos espectadores, que, em razão do naufrágio de todos os padrões estéticos, foram elevados ao nível de árbitros e juízes que outrora só alguns críticos possuíam. O único critério mais ou menos generalizado para as obras de arte na atualidade não tem nada de artístico; é o critério imposto por um mercado controlado e manipulado por máfias de galeristas e marchands que de maneira alguma revela gostos e sensibilidades estéticas, mas apenas operações publicitárias, de relações públicas e em muitos casos simples assaltos. Há mais ou menos um mês visitei pela quarta vez na vida (mas essa terá sido a última) a Bienal de Veneza. Fiquei lá algumas horas, acredito, e ao sair concluí que não teria aberto as portas de minha casa a nenhum daqueles quadros, esculturas e objetos que havia visto nos cerca de vinte pavilhões que percorrera. O espetáculo era tão enfadonho, farsesco e desolador quanto a exposição da Royal Academy, mas multiplicado por cem e com dezenas de países representados na patética farsada, onde, a pretexto de modernidade, experimentalismo e busca de ‘novos meios de expressão’, na verdade se documentava a terrível orfandade de ideias, cultura artística, habilidade artesanal, autenticidade e integridade que caracteriza boa parte das artes plásticas em nossos dias”.

[2] João Paulo II (1994:17) afirma “que a família está na base daquela que Paulo VI designou como «civilização do amor», expressão que entrou depois no ensinamento da Igreja e se tornou já familiar. A expressão está ligada com a tradição da «igreja doméstica» do cristianismo nos seus primórdios, mas possui uma precisa referência também à época contemporânea. Etimologicamente o termo «civilização» deriva da palavra latina civis (cidadão), sublinhando a dimensão política da existência de cada indivíduo. Todavia o sentido mais profundo do termo «civilização» não é tanto político como sobretudo «humanístico». A civilização pertence à história do homem, porque corresponde ao plasmar de suas exigências espirituais e morais. Precisamente do cumprimento desta tarefa provém a civilização, que, em última análise, não é senão a humanização do mundo”.

[3] “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, apreendemos os valores familiares e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa”.

[4] A autoria da pergunta é de Niklas Luhmann (1989:234), para quem, por detrás dos subsistemas sociais não existe uma estrutura ontológica (natural ou metafísica) a impulsionar seus movimentos, mas cada função ou subsistema (ciência, religião, política, economia, família, moral e direito) é um esquema de sentido que permite independência à sua verificação analítica, na exata proporção em que cada arranjo de sentido é fundante de um conjunto de conceitos operativos aptos a proporcionar uma série de resultados buscados socialmente e, assim, minimizar a complexidade inerente à troca comunicativa entre os subsistemas. Em outras palavras, Luhmann busca justificar a tremenda e crescente especialização dos subsistemas a partir da modernidade, os quais passam a atuar e a se desdobrar em seus modos de atuação, a ponto de se constituírem em realidades paralelas e fechadas umas às outras, com códigos e linguagem próprios. A interação entre tais subsistemas seria possível apenas pelo intermédio de mecanismos de “generalização congruente” (por exemplo, as leis ou a opinião pública), os quais possibilitariam a transmissão da complexidade de cada subsistema de forma mais reduzida.

[5] D’Agostino (2003:97-98) conclui que “se o dever da etnografia da família está em catalogar, de um modo cientificamente correto, a epifania cultural do fenômeno familiar; o dever, por sua vez, da filosofia da família está em refletir o princípio familiar naquilo que ele resta de irredutível em toda a epifania familiar, a ponto de assinalar para todas as culturas um caminho, não de um conservadorismo obtuso, mas de um contínuo e sempre novo esforço de atualização histórica”.

[6] Desde Roma (CAMBI, 1999:108-109), a pedagogia também muda completamente: heleniza-se, racionaliza-se, libertando-se do vínculo com o ‘costume’ romano arcaico e republicano, para aproximar-se cada vez mais dos grandes modelos da pedagogia helenística. Em particular, também em Roma penetra a grande categoria-princípio da pedagogia grega, aquela noção e ideal de paideia, de formação humana pela cultura, que produz uma expansão e uma sofisticação, bem como uma universalização das características próprias do homem. A paideia de Isócrates (…) vem radicar-se também na cultura pedagógica romana, sobretudo por obra do grande mediador entre estas duas civilizações – a grega e a romana – que foi Cícero. A ele, de fato, devemos a versão latina da noção de paideia na de humanitas, que sublinha ulteriormente sua universalidade e seu caráter retórico-literário, permanecendo durante séculos no centro da reflexão educativa e da organização escolar do Ocidente.

[7]Paideia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estudado. (…) Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação (JAEGER, 2003: introdução)”.

[8] A expressão é de autoria do renomado sociólogo inglês Anthony Giddens, pai da teoria da estruturação e figura de proa da chamada “terceira via” e do novo trabalhismo inglês. Para Giddens (2000:71-75), a família de ontem ou a família tradicional é aquele tipo familiar que se desenvolveu num arco de tempo que se inicia na Idade Média e termina nos anos 50 da última centúria. Suas características principais são: a) unidade econômica, ou seja, as pessoas se uniam por motivos econômicos e não pelos laços amorosos; b) local da assimetria existencial entre o homem e a mulher, onde a mulher era considerada uma longa manus do marido ou uma propriedade do pai; c) os filhos não eram considerados em si mesmos, mas somente como mão-de-obra ou colaboradores em prol do empenho econômico comum familiar; d) a sexualidade tinha sempre um fim reprodutivo. De fato, o sociólogo britânico aponta, com rigor, muitas realidades históricas vivas e presentes ao longo do arco temporal por ele traçado. Apenas criticamos aqui a pretensão de se confundir a substância de um ente – a família – com suas concretizações históricas, sempre sujeitas à imperfectibilidade de nossa natureza. Se a família corresponder, indistintamente, às formas historicamente assumidas, então, a realidade histórica fica autoerigida ao status daquilo que corresponder ao ser da família. Em outras palavras, Giddens usa uma visão deturpada de fenomenologia contra a ontologia, a fim de reforçar a própria convicção com a simples constatação de que (GIDDENS, 2000:75) “desde então – dos anos cinquenta – a família mudou”.

 

 

[9] A respeito das relações entre linguagem, comunicação e poder, escrevi (FERNANDES, 2012:2): “Durante a história da filosofia, sua reflexão pode ser dividida em três partes bem distintas, segundo as partes da relação do conhecimento: na Idade Antiga e Média, os filósofos debruçaram-se sobre o objeto. Na Idade Moderna, o sujeito racionalizou tanto, a ponto de a razão restar curvada sobre si mesma, a ponto de não poder mais olhar para o horizonte da verdade. Atualmente, o foco da filosofia está no vínculo que une sujeito ao objeto: a linguagem. Existem dois modos de obrigar as pessoas a atuar numa situação. O primeiro é o uso da força, sempre inútil, porque não atua sobre uma vontade livre e dá margem ao arbítrio. O segundo, mais eficaz, é a propaganda sistemática que faz da manipulação verbal seu principal instrumento, desvirtuando o reto uso da linguagem. Goebbels foi um exímio mestre nesta arte. Seria capaz de fazer o povo alemão acreditar até nas valquírias, mas não teve tempo suficiente para tanto, porque o regime de mil anos sequer chegou aos treze. A propaganda sistemática procura inculcar novas convicções em suas vítimas. No momento em que estas novas atitudes são assimiladas, as pessoas julgam ter chegado a elas por meio da própria vontade de aceitar essa nova forma de agir, fazendo-a sua. Toda manipulação social começa com a manipulação da linguagem. Seu propósito é o de manobrar cuidadosamente a opinião pública para produzir determinadas mudanças no comportamento. (…) A manipulação verbal mina na raiz a dignidade humana, já que os indivíduos da sociedade vítima não são mais tratados como seres humanos, mas como objetos a serem manobrados, dominados e, depois, controlados. (…) Em “Alice no país das maravilhas”, a manipulação da linguagem é bem retratada pelo autor da obra: ‘Quando uso uma palavra’, diz Humpty, ‘ela significa exatamente aquilo que escolho que ela signifique’. ‘A questão é’, diz Alice, ‘que se podem inventar palavras para significar assim tantas coisas diferentes’. ‘A questão é’, diz Humpty, ‘qual se quer impor’”.

[10] A título de exemplo, disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/pt/obras-conversando-sobre-o-direito-das-familias.cont.

 

[11] A respeito das relações entre cultura moderna e linguagem, escrevi (2012:2): “(…) Também é preocupante o deslocamento da centralidade do matrimônio e da família para figuras assemelhadas e pouco condizentes com uma realidade antropológica objetiva, no âmbito da estrutura legal destas relações. A linguagem clássica e perene do matrimônio deu lugar a uma linguagem substitutiva: “cônjuge” virou “companheiro”, que sempre foi sinônimo de colega, ou “parceiro”, termo tomado de empréstimo junto à tradição contratual do direito romano-germânico. Em ambos os casos, as expressões estão bem longe de expressar um amor de aliança, fiel e exclusivo. O termo “família” já vem sendo usado como termo genérico para descrever uma vasta gama de relações. Atualmente, refere-se a vinte e uma diferentes definições de relacionamentos, dos quais o matrimônio é somente mais um. Nesse ritmo, daqui a alguns anos, provavelmente, o verbete terá um dicionário exclusivo. Toda história do homem está impregnada de reflexão sobre a linguagem e suas formas de manipulação. Platão já se desentedia com os sofistas, pois eles deturpavam o uso da linguagem. Górgias, famoso sofista e exímio orador, até virou nome de um dos diálogos platônicos, no qual foi tematizado o valor e a função da linguagem, como instrumento de poder ou como instrumento de verdade. Como Platão, hoje, compete a cada um de nós descobrir o charlatanismo linguístico que ocupa boa parte dos discursos sociais e, à semelhança do mestre grego, submetê-lo ao diálogo.

[12] Retórica, 2, 4, 80b.

[13] A respeito da ontologia do amor, escrevi (FERNANDES, 2013:2): “Recentemente, conversava com uns amigos sobre os tempos de faculdade. Cada um indicou seu maior legado. Para uns, foi a formação acadêmica; para alguns, foram as amizades; para outros, foram as festas e os jogos universitários. Para mim, foram tempos inesquecíveis em muitos sentidos, mas o maior legado do Largo de São Francisco foi o amor. E, por isso, sempre que vou ao centro de São Paulo, passo por lá, sento-me entre aquelas arcadas históricas e simplesmente me desligo por alguns instantes do mundo em volta. A qual amor me refiro? O amor ao direito, à minha profissão, aos estudos, aos meus amigos, aos injustiçados e à minha segunda namorada, que se casou comigo depois. Mas não necessariamente nessa ordem, porque corro o sério risco de ter problemas lá em casa. (…) Assim, deixemos as causas de lado e concentremo-nos na pessoa amada. Quando amamos uma pessoa, parece que nossa vontade é catapultada a uma capacidade de criar sem fim. Talvez isso decorra do fato de que uma pessoa é sempre uma fonte de novidades. Criar é fazer que existam coisas novas. O mais criador que existe é o amor: “todo amor é criador e não se cria mais que por amor”, já disse o poeta. (…) Recordo-me de uma bela afirmação de Agostinho: “meu peso é meu amor, por ele sou levado onde quer que eu vá”. É o peso da vida humana, o amor, que nos carrega de uma parte a outra. Hoje, tenho a impressão de que vivemos numa crise de amor. O amor, essa constante disposição da vontade humana, deu lugar para os afetos, sempre instáveis, em todos os relacionamentos. E, num ambiente de pluriafetividade, não há espaço para um desejo de imortalidade. É o aniquilamento do amor. Tudo passa a ser fugaz e superficial. “Tu que eu amo, não morrerás”, feliz fórmula de outro poeta. Isto significa a impossibilidade de se pensar no fim da pessoa amada. Necessita-se dessa pessoa para que a vida tenha sentido. Se o homem estivesse destinado a perecer, não seria tudo um enorme engano, uma espécie de brincadeira de mau gosto? A vida teria um sentido? Mas o que impulsiona essa maneira de ver as coisas é precisamente o amor. Se não se ama, tudo isso cai na própria base e já não importa nada (…).

[14] Acreditamos ser necessário que a cultura ocidental recobre, no âmbito intelectual, o uso de suas faculdades espirituais superiores, mais precisamente seu poder de contemplação, as quais restaram atrofiadas por séculos de negligência existencial, pois a inteligência e a vontade do homem ocidental, desde a Idade Moderna, concentraram-se na conquista dos poderes político, econômico e tecnológico. No âmbito social, parece-nos ser imprescindível o resgate das dimensões do amor e da amizade como principais forças configuradoras da teia de relações sociais.

[15] Esse problema é muito sensível no universo do ensino jurídico, no qual os índices de reprovação nos exames de advocacia e de ingresso nas carreiras jurídicas crescem vertiginosamente, em razão de problemas metodológicos e epistemológicos que permeiam a imensa maioria das instituições de ensino superior. Ollero Tassara (1982:268-269) diagnostica bem esse fato ao afirmar que “a forja do futuro profissional do direito passa por sua consciente identificação com o texto legal. Para isso há de se esforçar em plasmá-lo em sua memória com tal intensidade que não reste em sua mente resquício algum livre do domínio da vontade do legislador. Não faz sentido fazer do profissional do direito um erudito, capaz de compreender conhecimentos de interesse meramente teórico; nem mesmo um juiz apto a criticar ou discernir, porque o legislador já se encarregou a contento dessa tarefa. O importante é formar um técnico capaz de manter em funcionamento a máquina legislativa e de fazê-la socialmente eficaz. Sua missão, como a de qualquer outro técnico, consistirá em conhecer os detalhes da máquina para fazê-la render ao máximo (…). E não se deve olvidar que, se cada técnico empenha-se em inventar uma nova máquina, sua tarefa acaba sendo inútil. O profissional do direito há de se empenhar por conseguir, fundamentalmente, que a máquina funcione: será, por excelência, um funcionário”.

[16] Em nosso trabalho de mestrado (FERNANDES, 2014:78-84), afirmamos que “em terceiro lugar, no seio da relação educacional, ao lado da evolução e da inserção, radica o encontro, o momento em que o educando relaciona-se com outros semelhantes, coisas e fenômenos. Esses dados da realidade não se entrelaçam com ele a partir de uma ordem pré-determinada e absolutamente incondicionada, como o liame religioso que havia entre os gregos e seus deuses, mas se põem à sua frente, em virtude da recíproca abertura desses dados para ele. Como consequência, o educando passa a conhecer profundamente uma área do saber, um conceito até então pouco esclarecido ou uma nova forma de abordagem intelectual de um assunto complexo. No encontro, está subjacente uma atitude aberta ao mundo e à imprevisibilidade. Compreender o novo, enfrentar aquilo que surge e aprender a dar forma ao dado não planejado. É aqui onde jaz a mais acabada expressão da amplitude de movimento dos impulsos naturais do educando e, por ser cada um uma individualidade irrepetível, essa capacidade de encontro não se dá do mesmo modo e na mesma intensidade. Se, na inserção, o educando é um “ser-aí”, no encontro, ele é um “vir-a-ser-aí”. (…) O encontro representa aprendizado constante, abertura ao imprevisto, espírito livre de investigação, perspectiva para distinguir o comum do peculiar, capacidade de reflexão e de autocrítica, convicção para bem decidir e, por trás disso, uma sensibilidade para o sentido e o alcance do próprio acontecimento decorrente do encontro. Tanto para ordená-lo no seio do já conhecido como também para tomar uma posição diante do novo enquanto tal. (…) A tarefa educativa, assim entendida, orienta o educando para uma postura em que se dá concomitante valor para os fatores do risco e da experiência, sendo que a modulação de um e de outro será estabelecida pela realidade pedagógica concretamente considerada. Essa atitude dispõe o educando para a originalidade do acontecimento, para a liberdade vital e para a amplitude da existência, lapidando a mais relevante dimensão humana: a dimensão espiritual, onde reside o motor que leva todo homem a naturalmente desejar o conhecimento (ARISTÓTELES, 2006:43)”.

[17] O consumismo sempre teve seus filhotes práticos, como a prodigalidade, o endividamento compulsivo e, atualmente, o brand bullying.

[18] A respeito das relações entre educação e entretenimento, escrevi (FERNANDES, 2011:2): “(…) Precisamos de uma educação emancipatória, entendida como a possibilidade de resistência às formas de dominação vigente pela via do exercício crítico e reflexivo da razão e que milite contra o pensamento determinista derivado da mitologia, os excessos do discurso unificador medieval, o cientificismo totalizante da modernidade, além do irracionalismo e do ceticismo das tipologias pós-modernas de desrazão, sem falar das inúmeras e atuais insinuações ideológicas presentes nos discursos sociais. Mas sem se desligar de um rol mínimos de valores, sob pena de desenraizamento e desorientação.  (…) Nesse assunto, basta lembrar que uma sociedade incapaz de educar seus filhos nos valores é uma sociedade incapaz de respeitar a si própria”.




René Girard, vida e luz


Seu pensamento tem uma natureza dramática, não porque seus enredos sejam restritos a melodramas clichês. Pelo contrário, ele continuamente submete suas novas descobertas à uma tensão contínua e arriscada de cotejo com as anteriores, buscando encadeá-las harmonicamente. Quanto mais se aprofunda na leitura de suas obras, mais se percebe que ele nos conduz ao âmago de muitos de nossos problemas atuais – como a violência que estampa nossas tragédias sociais e as recorrentes atrocidades dos jihadistas pelo mundo – ao lançar luzes que resgatam o conhecimento clássico.

Sua grande contribuição, sem dúvida, foi a da “triangularidade do desejo”: a descoberta de que o ser humano aprende a desejar por imitação dos desejos do próximo. A geometria do desejo é triangular, porque o ser humano não se relaciona diretamente com o que quer intimamente, mas sempre e somente por meio de um modelo desejante. Daí brotam as relações de admiração, rivalidade e ódio recorrentes em toda história da literatura que, no fundo, são uma imagem especular da beleza e da miséria da humanidade.

Girard diagnostica isso a partir de uma crítica analítica das grandes obras da literatura mundial e expõe seu achado arqueológico em sua surpreendente obra inaugural – Mentira Romântica e Verdade Romanesca –, na qual ele tem as primeiras intuições sobre a dita triangularidade, localizadas, por ele, nas obras de Cervantes, Stendhal, Flaubert, Proust, Dostoiévski e Shakespeare que, conscientes disso, refletiram essa geometria triangular do desejo em seus escritos.

Esse desejo mimético, ao recair sobre qualquer objeto, mas sempre intermediado pelo outro, desata um inevitável conflito, suscetível de expandir-se dentro dessa geometria, por sua própria natureza triangular e, como efeito, produz uma espiral de inveja e violência devastadoras, se não encontram, instintiva ou casualmente, um bode expiatório para sublimar a conta – de um modo secretamente arbitrário – das culpas de todos os envolvidos.

Consumado o sacrifício, a paz renasce, ainda que seja momentânea. Quando o conflito é retomado, trata-se de repetir aquilo que o aplacou. Ou seja, mais violência e sangue. O bode expiatório originário converte-se em mito fundante e a vítima é divinizada. Esse mecanismo não só é constatado em muitíssimos costumes primitivos, mas também nos clássicos, apto a explicar as grandes obras literárias, em especial, as do teatro clássico grego e as tragédias de Shakespeare.

Não demorou muito para, empurrado por suas descobertas, dar uma passo a mais e adentrar na teologia. Deixando a salvo o núcleo misterioso da fé e a partir do estudo dos livros de Jó, dos Salmos e dos escritos dos antigos padres, o Girard agnóstico que havia sido encerrou-se quando viu ser a paixão de Cristo a denúncia perfeita e acabada desse mecanismo vitimário. A única vítima absolutamente inocente, Jesus de Nazaré, entrega-se, como cordeiro ao matadouro, para quitar os pecados de toda a humanidade. Rompe a espiral de violência, assumindo-a desde dentro e redimindo-a.

Hoje, assistimos às tragédias que produzem vítimas e mais vítimas, muitas delas sacrificadas inocentemente nos altares do terrorismo e do hedonismo contemporâneos, por meio de mecanismos de violência real ou simbólica. Não basta reproduzi-los ou imitá-los para exorcizá-los. Conseguiremos poucos resultados. É preciso desconstruir a violência a partir de dentro e para isso, “é preciso passar pela conversão e ser revestido pela graça de uma novidade fundamental”, como dizia Girard. Que ele descanse em paz, mas não suas ideias. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/12/2015, Página A-2, Opinião.




Direito e Amor


Curioso notar que o direito dispõe sobre muitas normas em diversas dimensões da vida humana, mas nada trata sobre o amor humano. Alguém poderia arguir que o amor é uma realidade própria da psicologia e não do direito, porque, afinal, o amor não goza de uma juridicidade natural e, assim, não tem condições de lhe ser atribuído um status de bem jurídico. Enfim, direito e amor seriam como água e azeite.

O revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão “amor” foi empregada pelo legislador: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”.

O ordenamento civil em vigor não manteve a palavra. Inclusive, consegue a rara façanha de tratar dos deveres do casamento, sem mencionar expressamente a expressão “amor”. Nesse ponto, será que existe uma relação entre o direito e o amor? E, caso positivo, no âmbito da relação conjugal, qual regra deveria iluminar as relações entre os casados: uma normatividade perene ou a simples espontaneidade do amor?

É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como “exigências do amor” e o que é tido como disposição estável para uma fecunda conjugalidade, ou seja, uma certa lei natural. É uma tendência que defende a autenticidade como um dos pilares da atuação da mulher e do homem no seio de uma relação conjugal.

A dita autenticidade estaria justamente na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada por aquela lei normativa natural, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante. Bauman, nesta virada de século, sintetizou tudo isso com a expressão “amor líquido”.

Esta autenticidade parte do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência.

A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente.

Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade que nos cerca: o homem é naturalmente capaz de agir mal. E sem necessidade de sociedade, de qualquer estrutura ou mesmo instituição, as quais fazem apenas potencializar o mal praticado individualmente.

Sem qualquer possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge, assim, como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver qualquer tipo de desordem.

Mas aí reside o engano antropológico. Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem. Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar daquela lei natural, goza também de uma inclinação para o mal, a chamada concupiscência. Uma vez domado por seus efeitos, o amor fica cego. E se o amor é cego, nunca acerta o alvo, como já dizia Shakespeare.

Os efeitos desta ética da autenticidade, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós (afinal, toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao nosso ser), acabam por produzir uma relação dialética entre as demandas do amor conjugal e sua lei natural, positivada nos deveres legais do matrimônio (artigos 1.565 a 1.568 do Código Civil), como se os imperativos do amor fossem dificilmente compatíveis com sua lei natural.

A interrogação é inevitável: pode haver tal contraposição entre o amor conjugal e a lei natural (positivada ou não) que origina o matrimônio e regula a vida conjugal? Dentro do âmbito mais amplo das relações entre o amor e a lei, se o amor é a fonte criadora de toda decisão acerca de uma ação humana, não seria o mesmo amor, proclamado em prosa e verso pela literatura de todos os tempos e de todas as épocas, a mais elevada norma do viver do homem, o princípio supremo de ordenação social, ao invés da lei?

Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os intelectuais eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. O “ama e faze o que quiseres” não equivaleria a um desprendimento de toda lei imposta, de toda condicionante normativa derivada do exterior do indivíduo e, muitas vezes, posta pelo direito?

Se mesmo qualquer matrimônio religioso deposita no amor humano sua lei fundamental de valor moral, não seria o amor fonte originária de ordem? Por outro ângulo, existiriam razões que permitem afirmar que tal contraposição seria aparente e que o amor, por ser a regra mais elevada da ação humana, poderia ser exercido dentro das balizas daquela lei natural?

Certa vez, li uma afirmação do filósofo alemão Josef Pieper, em sua obra Amor, que dá bem o tom da natureza do amor que aqui se propõe: “O amor e somente o amor é o que tem de estar em ordem para que todo o homem o esteja e seja bom”. Assim, segundo o amor esteja ou não ordenado, a vida de um homem será reta ou desordenada.

A ordem aqui mencionada não decorre de uma fonte normativa exterior, como as convenções sociais ou os costumes de um povo, mas daquela ordem intrínseca do amor que lhe é inerente. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser: uma roda é tanto mais uma roda, quanto mais perfeito é o círculo que a forma.

Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo.

Quando um músculo, ao invés de se mover segundo sua lei biológica, move-se desordenadamente, dá causa a um estiramento, ou seja, a uma alteração naquilo que lhe é normal, segundo sua ordem em sentido filosófico, a mesma ordem a que está sujeito o amor.

No âmbito desta ordem, o amor aperfeiçoa-se e cresce quanto mais o ser desenvolve-se normalmente e, ao contrário, o amor diminui sua intensidade na medida em que se atrofia a capacidade de ser. Basta comparar o amor de uma mãe pelo filho com o amor de um avaro pelo dinheiro: as diferenças são tão gritantes que é melhor não comparar…

Neste sentido, o amor é tanto mais amor quanto mais ordenado for e, por consequência, o amor desordenado é a imperfeição ou degradação do mesmo amor. Uma caricatura do amor. Desta sorte, compreende-se a outra famosa máxima de Agostinho: “Todos vivem de seu amor, faça-se o bem ou faça-se o mal”.

O amor nasce ordenado ou desordenado, respectivamente, conforme uma ordem ou uma desordem fundamental da pessoa. E é inevitável que assim seja, porque o amor é um ato que depende, por ser ato, da potência, sempre canalizada pela vontade. A ordem fundamental da vontade irá definir a ordem do amor que daí surge.

Não é porque existe amor que uma dada conduta será necessariamente reta. Excluída a ideia de ordem, o amor deteriora-se e, por conseguinte, a conduta humana daí derivada. A espontaneidade do amor, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós, não é fonte primária da ordem, já que o amor é uma realidade medida por critério distinto. Só quando o amor é ordenado, então é a norma regente do agir humano e o “ama e faze o que quiseres” de Agostinho ganha sentido, alcance e resume os preceitos daquela ordem natural.

E qual é a ordem do amor? Mais uma vez, recorremos a uma clássica citação de Agostinho: virtus ordo est amoris (a virtude é a ordem do amor). Invertendo a ordem da frase sem alterar seu sentido, desponta a resposta – a ordem do amor é a virtude. E quais virtudes? As virtudes morais, que representam fundamentalmente a justaposição da vontade aos ditames da reta razão. Por consequência, a ordem do amor é a lei natural. E os preceitos da lei natural representam as concreções da reta dinâmica desse mesmo amor.

Resta delimitar a ordem do amor conjugal. Evidente que esta ordem é representada pelas mesmas virtudes relativas ao amor propriamente dito, entretanto, impulsionado também por uma virtude específica que ordena o amor matrimonial, em virtude de suas peculiaridades: a virtude da castidade, aquele autodomínio que torna a pessoa capaz de se dar ao outro.

Esta virtude ilumina o amor conjugal, objetivamente, por intermédio dos três bens do matrimônio natural, a saber, a abertura à procriação, a fidelidade e a permanência. Tais bens não se reduzem a uma mera limitação ou repressão ao amor humano, como defendem algumas escolas antropológicas. Muito pelo contrário, são efeitos concretos deste amor e, na medida em que são vividos ordenadamente, superam e excedem em muito o mero exercício estóico de todas as prescrições legais sobre o assunto, mormente no que toca aos deveres.

As relações entre os homens, inclusive as de natureza conjugal, estão assentadas numa série de relações ontológicas objetivas, que portam uma ordem que lhes é inerente. Por exemplo, a relação entre pais e filhos tem nítida coloração ontológica, derivada da procriação, cuja ordem natural obriga os genitores ao dever de criação e educação da prole e esta, por sua vez, ao dever de respeito e obediência aos pais.

É o fato da procriação que dá causa a um rol de direitos e deveres recíprocos e não o amor humano. Este dado empírico não rompe com tais exigências ou as modifica substancialmente, mas, sem que estas se alterem, o amor humano ordenado entende que estes imperativos derivam da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as assume e aperfeiçoa.

Esta ordem objetiva funda-se no direito natural, porquanto se revela em deveres de justiça, cuja normatividade é veiculada pela lei natural, prisma ético que definirá se o amor é ordenado ou desordenado, inclusive aquele decorrente do matrimônio, lastreado no interior de uma relação natural e que responde a um anseio da pessoa humana.

Este anseio é guiado em função de umas necessidades e finalidades da espécie, motivo pelo qual entre o homem e a mulher exista uma mútua atração natural, que poderá crescer e ganhar uma nova dimensão: a do amor conjugal que, se for ordenado, conduz o matrimônio à plenitude e, se for desordenado, impede que esta perfeição seja alcançada. Com efeito, a lei natural é a ordem do amor conjugal e, assim, direito e amor, amor e direito, uma vez entrelaçados, demonstram a fecundidade e a transcendência da resultante daí decorrente.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras