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EM BREVE: “LITERATURA &…” [CURSO DE EXTENSÃO IFE CAMPINAS]

CURSOS IFE | 21/06/2016 | | IFE CAMPINAS

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Liteatura e - WEB - SEMI-COMPLETO - Release

Prezados(as),

Com satisfação anunciamos nosso próximo curso de extensão universitária, denominado “Literatura &”. Nesta postagem vocês encontram as informações do curso. Participe e cresça em conhecimento e cultura!

LITERATURA &…

CURSO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA – IFE CAMPINAS

AULAS, CONTEÚDO E QUALIFICAÇÃO DOS PROFS. (com calendário)

1. LITERATURA E CONHECIMENTO
06/08/2016

Prof. Dr. Rafael Ruiz

Bacharel em Direito (USP), Mestre em Direito Internacional (USP) e Doutor em História Social (USP).

O apanhador no campo de centeio, Dom Quixote e Admirável Mundo Novo. A Literatura tem sido considerada como fonte de entretenimento, de lazer e, no máximo, de cultura e de erudição, mas raramente como forma de conhecimento. A palestra procurará mostrar como é uma das fontes privilegiadas quando se trata de saber em que consiste o “ser humano”. E procurará mostrar como se chegou a essa situação e o que é que a Literatura ensina sobre o homem.

2. LITERATURA E IDEOLOGIA
10/09/2016

Profa. Dra. Chimena Gama

Doutora em Teoria Literária pela UNESP.

O engajamento obrigatório e suas marcas na literatura de vários países a partir do século XIX. As filosofias da esquerda política deixaram as mais diversas marcas nas artes sobretudo a partir do século XIX. Na literatura, a discussão em torno do engajamento e do real valor de uma obra panfletária ganhou espaço enorme já no século XX. A preocupação com a arte literária seria compatível com a propaganda? As reviravoltas em torno desse dilema e como alguns teóricos da literatura e escritores resolveram-no (ou não) é o que veremos, a partir de obras diversas acerca do tema como as de Plékhanov , Maiakóvski, os surrealistas franceses, os portugueses neorrealistas e poetas brasileiros como Carlos Drummond de Andrade.

3. LITERATURA E AMOR
24/09/2016

Prof. Ms. Eduardo Gama

Mestre em Literatura Portuguesa pela USP, Jornalista e Publicitário. Gestor do núcleo de Literatura do IFE – Campinas.

Um passeio pela Poesia ao longo dos séculos: Bernard de Ventadour, Dante, Camões, Gonçalves Dias, Vinícius de Moraes, entre outros.  O modo como manifestamos o amor não surgiu na Grécia antiga, mas sim na Idade Média, com os trovadores. Qual a concepção apresentada por eles? Como essa ideia foi transformada ao longo dos séculos? Como exprimimos o amor nos dias de hoje nas grandes obras artísticas? São essas as questões que serão abordadas nesta apresentação.

4. LITERATURA E DIREITO
22/10/2016

Prof. Ms. André Fernandes

Juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras.

Shakespeare. Medida por medida. Circulamos entre três concepções do ato de julgar: empática, rígida e prudencial. A obra de Shakespeare apresenta tais modelos contrapondo entre si de maneira brilhante, nas pessoas de Vicênio, o duque de Viena, de Ângelo, regente de Viena, na ausência do duque e de Escalo, o sábio e decano conselheiro. A peça mostra as reações dos envolvidos quando a sociedade vienense é governada por cada um desses estilos de julgar e, ao final, sugere um dos modelos como o melhor na condução dos destinos de uma cidade.

5. LITERATURA E RENASCIMENTO
04/06/2016

Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite

Graduação em Letras Românicas pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Araraquara (1966), mestrado em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela USP (1982) e doutorado em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela USP (1991). Atualmente é professora Livre Docente da UNESP.

O Renascimento foi o retorno aos cânones artísticos e temas greco-latinos, a partir do     século XIV na Itália. Um grande desejo de interioridade coloca o homem no centro dos interesses, e ele busca relacionar-se com o mundo através de novas experiências.  A busca do prazer sensorial, do espírito crítico e racionalista completa o panorama ideológico da época. As profundas mutações ideológicas que partem da Itália espalham-se pela Europa até o século XVII, e uma nova cultura irá traduzir uma visão de mundo que será conhecida por Humanismo. A Literatura apresenta grandes obras de grandes autores nesse período, os quais serão determinantes para o desenvolvimento literário dos séculos posteriores.

INFORMAÇÃO GERAL

Curso de Extensão Universitária, denominado Literatura &, composto por 5 aulas (2,5 horas cada), escalonadas em um semestre de atividades (agosto a novembro/2016), promovido pelo IFE Campinas em parceria com o Unisal.

BENEFÍCIOS
▪ Único no mercado
▪Material (pasta, crachá, folhas e caneta)
▪Entrega de uma obra de literatura consagrada
▪Salas com recursos multimídia
▪ Professores altamente qualificados
▪Conhecimento útil para a vida
▪Coffee break a cada atividade
▪Artigos do IFE no Correio Popular no mailing list dos alunos
▪ Recebimento de certificado ao final

INSCRIÇÕES
Escreva-nos um e-mail (ifecampinas@ife.org.br) solicitando o link para inscrição diretamente no site do Unisal. Por ora as inscrições no site do Unisal não estão abertas, mas escrevendo para nós você já garante sua vaga e lhe enviamos o link assim que as inscrições ficarem online no site Unisal.

INVESTIMENTO: 4 parcelas de R$168,90 para 5 aulas (R$168,90 na matrícula e mais 3 de R$168,90). Pagamento via UNISAL.

LOCAL E HORÁRIO:
HORÁRIO: Manhãs de sábado. 9h00-10h30 (1ª parte); 10h30 Coffee break; 11h00-12h00 (2ª e última parte).
LOCAL: Unisal (Unidade Liceu) – Campinas/SP
R. Baronesa Geraldo de Resende, 330
CEP: 13075-270

[resenha de livro] Dominique Lapierre: “Muito além do amor” (por Pablo G. Blasco)

Literatura | 16/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Dominique Lapierre: “Muito além do amor”. Salamandra. São Paulo. 1991. 376 pgs.

muito além do amorA tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta

Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente.  Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.

Quando agora releio o livro, faço-o a grande velocidade, pois a melodia resulta-me conhecida. Uma toada que tinha ouvido, que permaneceu na memória. Lembrava, sem dúvida, da perplexidade médica diante de pacientes com o sistema imunitário destruído, algo que começa de maneira episódica e se transforma em epidemia. Lembrava também da gana investigadora de americanos e de franceses, num mano a mano; e das disputas entre Luc Montaigner e Robert Gallo, por ver quem seria o primeiro a isolar o causante da tragédia. Pesquisa, esforços, iniciativa, e risco da própria vida: alguns em busca da fama, outros de peito aberto para o bem da humanidade.

Mas não era esse o tema principal que ressoava na minha memória. Não foi isso o que mais me impactou, e sim os atores aparentemente coadjuvantes que fizeram toda a diferença neste história entranhável. O amor que está além da tragédia. Lembrava da Madre Teresa e das suas freiras. Da garota rejeitada pela própria família por ter sido atingida pela lepra o que piorava sua já diminuída condição de pária.  A filha de um coveiro do Ganges, ou melhor, de um cremador porque os cadáveres se queimam por lá;  daquela menina frágil que se transforma no ponto de apoio para gerenciar a primeira casa para cuidar de aidéticos em Nova York. O prefeito, judeu, tinha sido claro: ou enviam as freiras da Madre Teresa, ou eu não entro nessa empreitada. Lembrava também dos “casamentos espirituais”, onde se associavam os doentes crônicos incuráveis com as freiras, a quem apoiam com a seu oração e oferecendo seus sofrimentos.

O livro é uma magnífica descrição no melhor estilo jornalístico. Lapierre abre cada capitulo com uma manchete de jornal, e por isso atrai, espicaça a leitura, torna-a agradável e imparável. A ira de Deus, A metamorfose do guerrilheiro, Enigma no quarto 516, Um laboratório de amor às margens do Ganges, A última viagem do comandante da Air France, As autopsias da Bela Marta, Retrovírus num Boeing, Uma lua de mel que começa mal, Um lar para agonizantes no meio dos arranha-céus. E por aí afora. São chamados que estimulam a leitura, seguindo a regra básica do bom jornalismo: o recado tem de ser dado no primeiro parágrafo da notícia; se for no título, melhor ainda. A leitura é ágil, devoram-se os capítulos, nos deparamos com títulos sugestivos; e por trás de cada personagem, em elegante retrospectiva, a história de cada um, sua biografia O livro toca porque não é apenas uma crónica jornalística de fatos científicos, mas um mosaico de histórias de vida, contadas em estilo ameno, a modo de crônicas.

No fim, as palavras que dão título ao livro. Proferidas por um doente judeu aidético nos dias finais quando, após tentativas de suicídio, as freiras da madre Teresa o recolhem uma vez mais, sem cansar-se, com aquele sorriso permanente que parece quase um voto suplementar na ordem das irmãs da Caridade. “Todos vocês estão muito além do amor”.

Histórias de vida, heroísmo, alegria no meio da catástrofe, cuidados, carinho. Enfim, esse amor que Lapierre canta  com uma voz que, 25 anos após a publicação do livro continua sendo atual. E impactante. “O pouco que fazemos, e o muito que nos queixamos”. Uma boa frase, dessas que alguém soltou com encantadora espontaneidade na tertúlia literária, e  que sintetiza a impressão que tive quando li o livro da primeira vez. E que agora ressurgiu, com colorido novo, e apontando  outras responsabilidades. Os livros nos mudam, se refletimos, se nos deixamos cuidar por eles. Como os doentes que, revoltados, encontravam o conforto quando se perdoavam a eles mesmos e se deixavam cuidar pelas mãos amorosas das freirinhas.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/03/28/dominique-lapierre-muito-alem-do-amor/#more-2629

Dominique Lapierre: “Muito além do amor” (por Pablo González Blasco)

Literatura | 01/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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muito-além-do-amor-215x300A tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta

Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente.  Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.

Quando agora releio o livro, faço-o a grande velocidade, pois a melodia resulta-me conhecida. Uma toada que tinha ouvido, que permaneceu na memória. Lembrava, sem dúvida, da perplexidade médica diante de pacientes com o sistema imunitário destruído, algo que começa de maneira episódica e se transforma em epidemia. Lembrava também da gana investigadora de americanos e de franceses, num mano a mano; e das disputas entre Luc Montaigner e Robert Gallo, por ver quem seria o primeiro a isolar o causante da tragédia. Pesquisa, esforços, iniciativa, e risco da própria vida: alguns em busca da fama, outros de peito aberto para o bem da humanidade.

Mas não era esse o tema principal que ressoava na minha memória. Não foi isso o que mais me impactou, e sim os atores aparentemente coadjuvantes que fizeram toda a diferença neste história entranhável. O amor que está além da tragédia. Lembrava da Madre Teresa e das suas freiras. Da garota rejeitada pela própria família por ter sido atingida pela lepra o que piorava sua já diminuída condição de pária.  A filha de um coveiro do Ganges, ou melhor, de um cremador porque os cadáveres se queimam por lá;  daquela menina frágil que se transforma no ponto de apoio para gerenciar a primeira casa para cuidar de aidéticos em Nova York. O prefeito, judeu, tinha sido claro: ou enviam as freiras da Madre Teresa, ou eu não entro nessa empreitada. Lembrava também dos “casamentos espirituais”, onde se associavam os doentes crônicos incuráveis com as freiras, a quem apoiam com a seu oração e oferecendo seus sofrimentos.

O livro é uma magnífica descrição no melhor estilo jornalístico. Lapierre abre cada capitulo com uma manchete de jornal, e por isso atrai, espicaça a leitura, torna-a agradável e imparável. A ira de Deus, A metamorfose do guerrilheiro, Enigma no quarto 516, Um laboratório de amor às margens do Ganges, A última viagem do comandante da Air France, As autopsias da Bela Marta, Retrovírus num Boeing, Uma lua de mel que começa mal, Um lar para agonizantes no meio dos arranha-céus. E por aí afora. São chamados que estimulam a leitura, seguindo a regra básica do bom jornalismo: o recado tem de ser dado no primeiro parágrafo da notícia; se for no título, melhor ainda. A leitura é ágil, devoram-se os capítulos, nos deparamos com títulos sugestivos; e por trás de cada personagem, em elegante retrospectiva, a história de cada um, sua biografia O livro toca porque não é apenas uma crónica jornalística de fatos científicos, mas um mosaico de histórias de vida, contadas em estilo ameno, a modo de crônicas.

No fim, as palavras que dão título ao livro. Proferidas por um doente judeu aidético nos dias finais quando, após tentativas de suicídio, as freiras da madre Teresa o recolhem uma vez mais, sem cansar-se, com aquele sorriso permanente que parece quase um voto suplementar na ordem das irmãs da Caridade. “Todos vocês estão muito além do amor”.

Histórias de vida, heroísmo, alegria no meio da catástrofe, cuidados, carinho. Enfim, esse amor que Lapierre canta  com uma voz que, 25 anos após a publicação do livro continua sendo atual. E impactante. “O pouco que fazemos, e o muito que nos queixamos”. Uma boa frase, dessas que alguém soltou com encantadora espontaneidade na tertúlia literária, e  que sintetiza a impressão que tive quando li o livro da primeira vez. E que agora ressurgiu, com colorido novo, e apontando  outras responsabilidades. Os livros nos mudam, se refletimos, se nos deixamos cuidar por eles. Como os doentes que, revoltados, encontravam o conforto quando se perdoavam a eles mesmos e se deixavam cuidar pelas mãos amorosas das freirinhas.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente no site de Pablo González Blasco, em 28/03/2016, link: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/03/28/dominique-lapierre-muito-alem-do-amor/#more-2629. Acesso em 01/04/2016.

Amores descartáveis

Opinião Pública | 02/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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O problema comum vivido por elas era bem evidente: a definição de um novo tipo de relacionamento amoroso para este século, baseado numa só espécie de compromisso, o compromisso consigo mesmo. Isso é notável nos processos de separação e divórcio. Não falo de adultério ou violência doméstica. Num dado dia, o sujeito simplesmente acorda, ensaia um discurso exculpatório, olha para o outro e diz que acabou. E por quê?

Porque, nessa colcha de retalhos dos relacionamentos amorosos atuais, qualquer vínculo soa como insuficiente. O outro – minha vizinha, o amigo dela ou minha assistente – sempre pode ser mais interessante, bonito, inteligente, perspicaz, romântico, carinhoso, sincero e tantos quantos outros adjetivos que nos pareçam mais atraentes nas pessoas.

O sujeito passa a sempre buscar uma vida fantástica nas gôndolas sociais. O próximo relacionamento pode estar à sua espera na próxima festa, naquele jantar entre amigos ou no singelo deslizar de dedo de um aplicativo de rede social. De devaneio em devaneio, a cada relacionamento fugaz, nosso Lorde Byron pós-moderno, no fundo, revela o mesmo propósito e a mesma confusão: encarar o outro como uma forma de preencher o vazio existencial.

Num desses processos de família, um jovem sujeito havia investido muito dinheiro num negócio conjugal, um sonho de vida a dois. Mal dormia, teve depressão, foi contemplado com um monte de reclamações trabalhistas, passava boa parte do tempo em conversas com a clientela, o contador, o despachante aduaneiro e, também, o advogado: não é tipo de cotidiano que eu desejaria para mim. Mas se submetia a tudo isso em prol de um projeto existencial.

Até que se encantou perdidamente pela secretária e resolveu ouvir o eco do Lorde Byron que habita em cada um de nós. Ou seja, investiu todas suas energias no relacionamento com a empresa e não deixou nada para a sócia no empreendimento, sua companheira de apenas dois anos. Disse-me, na audiência, que precisava de outras emoções e, por isso, a pessoa que se sentava na frente dele não servia mais para isso. Imediatamente, veio o filme à cabeça: dali a uns anos, seria a vez da secretária.

A capacidade de se relacionar encontra sua plena expressão num amor donativo: é o amor que sabe dizer “eu sou seu”. É a reviravolta total do eu, que se faz dom ao outro, porque já sabe viver em função do outro. Cria uma relação madura, serena e forte que sabe trabalhar a si mesmo para integrar-se plenamente ao outro. Assim, pode-se fundar um vínculo estável e duradouro, na medida em que cada um se empenhe por construí-lo generosamente na própria vida.

Pessoas não são objetos. O amor não existe para satisfazer nossos devaneios byronianos. Um amor, edificado diariamente, existe para lembrar que alguém é mais importante do que nós e que, se a lâmpada de casa queimou, é preciso trocar a lâmpada e não a casa.

Curiosamente, e nos últimos anos, só houve uma série televisiva com coragem para enfrentar essa verdade. Chamava-se “The Mind of the Married Man”. Durou uma temporada, já que a atenção das massas preferia as “Spice Girls” nova-iorquinas do “Sex and the City”. Sinal dos tempos: tempos de amores descartáveis. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 2/3/2016, Página A-2, Opinião.

 

José Ortega y Gasset e a encruzilhada da clareza (por Martim Vasques da Cunha)

Filosofia | 25/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ilustração de Paulo von Poser para a edição impressa.

Sentía los quatro vientos,
en la encrucijada
de su pensamiento.

Antonio Machado, Proverbios y cantares,
LXIII, dedicado a Ortega

Todo grande pensador corre o risco de ser incompreendido – especialmente entre os seus admiradores. É normal na história da filosofia: afinal, um pensamento que abrange num só olhar todo o arco das ambigüidades da vida tem de provocar certo grau de incompreensão, o que só vem a confirmar sua grandeza. Contudo, há limites até para a incapacidade de entender; e, entre eles, a regra elementar – mas pouco observada até por alguns dos estudiosos mais sérios – de que, antes de se poder alimentar a pretensão de ter compreendido corretamente qualquer pensamento, é preciso devassar de ponta a ponta a alma de quem o formulou.

Ora, o problema dessa compreensão parcial diz respeito de uma maneira especial a José Ortega y Gasset (1883-1955). São justamente os seus admiradores quem pretende reduzir sua espantosa obra filosófica a uma ciência política divulgada em periódicos. Assim, é normal vermos como resumem, com ar gaiato, cinqüenta anos de esforço por entender a realidade do mundo e do seu país – a Espanha da primeira metade do século XX, uma nação profundamente violentada pelas ideologias – em um corpo de artigos reunidos na Rebelião das massas (1930).

O próprio Ortega ajudou a criar essa confusão ao afirmar que, desde criança, quando via o pai trabalhando em seu jornal El Imparcial, sempre experimentava o ímpeto do jornalista que quer ir ao fundo do real para descobrir novos matizes, novas luzes, novas possibilidades de entender o que se passa no mundo. Mas não devemos esquecer que também criticava o empenho de muitos jornalistas em pertencer a uma pretensa “elite espiritual”, quando não passam de mergulhadores que mal arranham a superfície do real, apesar da sua vontade de flutuar sem amarras. A verdadeira profundidade, dizia ele, cabe apenas ao filósofo.

Portanto, se o jornalista Ortega sentia o ímpeto de descobrir o real, era a dama Filosofia quem lhe permitia ir às raízes das coisas – e não lhe permitia esquecer a distância que há entre a vontade e a sua realização. Sobretudo, não lhe permitia esquecer que o abismo que existe entre a primeira e a segunda é o começo de qualquer tragédia; e a sombra da tragédia acompanhou-o ao longo de toda a sua vida e obra e, em especial, depois da morte.

Em 2005, Mario Vargas Llosa, que chegou a escrever livros notáveis como Conversa na catedral e A cidade e os cachorros, realizou uma Conferência Nexus em Amsterdam sobre os cinqüenta anos da morte de Ortega, motivado pela boa intenção de recuperar o pensador do “limbo da história das idéias” (de fato, com exceção de alguns eventos sem grande divulgação na mídia, ninguém havia lembrado mais amplamente o cinqüentenário). Chamava-se nada mais nada menos que “O resgate liberal de Ortega y Gasset”; infelizmente, o raciocínio do autor – como o de qualquer pessoa imbuída de uma ideologia (não esqueçamos que Mario, depois de um longo namoro com o socialismo latino-americano, é hoje um liberal inveterado) – é de uma estreiteza assustadora. Pois Vargas Llosa faz justamente o que um admirador de Ortega não deveria fazer: cita uma ou duas obras do filósofo e argumenta as suas idéias em um estilo belo mas vago, sob a impressão de estar traçando um panorama sintético do seu pensamento, quando na realidade mal chega a apresentar uma minúscula fração do seu trabalho. Por fim, voilá, aplica-lhe um chavão, classifica-o como um “livre-pensador” ou, pior ainda, um “filósofo laico”.

O problema é que Ortega nunca foi uma coisa ou a outra. Vargas Llosa tenta a todo custo encaixá-lo na ideologia liberal, esquecendo-se de que uma filosofia autêntica não se esgota em um sistema estreito. E isso se aplica especialmente à obra orteguiana, pois o filósofo espanhol foi contra qualquer petrificação do real, qualquer submissão a uma idéia que pudesse justificar atitudes políticas e, especialmente, atitudes políticas criminosas. Esta era, aliás, a base de sua “ciência política”, explicitada em dois livros exemplares: o já citado Rebelião, um clássico na análise da psicologia das multidões que viria a ser superado apenas por Masse und Macht (“Massa e poder”), de Elias Canetti, e o pequeno mas perspicaz España invertebrada (1921), cujo título já insinua todo um estado de coisas.

É um “estado de coisas” bastante tenebroso: Ortega enxerga na sociedade do seu tempo o domínio do “homem-massa”, que deixou perder-se a sua individualidade e, com ela, tudo o que o tornava autêntico; em conseqüência, rebaixou o seu nível de consciência, a sua forma de ver o mundo e de transmiti-lo por meio da cultura, a qual por sua vez se degradava e perdia a transcendência. Essas características só podiam desembocar em um resultado – guerras sobre guerras.

Em España invertebrada, Ortega adianta-se quinze anos à Guerra Civil Espanhola de 1936, o evento que antes de tudo “assassinou a verdade”, nas palavras do historiador Anthony Beevor; e vinte e quatro anos à Segunda Guerra Mundial, dominada pelo “homem-massa” nazista e socialista. E se o seu diagnóstico estava correto, como os fatos mostraram, não tinha deixado de prescrever também uma profilaxia, habitualmente esquecida por admiradores indiscretos como Vargas Llosa e, em conseqüência, pouco divulgada. Vamos examiná-la mais adiante, e sobretudo perguntar-nos se continua a ter validade para os nossos dias.

Seja como for, começamos já a perceber que o clichê do “filósofo laico” apenas parece oferecer um resumo fácil para uma obra que perturbou tantos dos seus contemporâneos pela sua determinação em pôr os problemas como problemas, sem oferecer soluções precipitadas para eles. Para Ortega, essas soluções só podiam vir de encarar os problemas com clareza, de caçar sua essência, de persegui-los como o toureiro persegue seu touro.

A obra de José Ortega y Gasset não se resume à sua “ciência política”, como pensou Vargas Llosa. É verdade que o pensador também foi um político ativo nas decisões de seu país – chegou a ser deputado, em 1931, pela Agrupacíon al Servicio de la República, um episódio da sua vida a que sempre se referiria com melancolia… -, mas acima de tudo há nele um profundo respeito perante a realidade. Aqui parece levantar-se uma divergência: pois se o político é um homem de ação, alguém que ousa modificar o mundo, o filósofo tem de ir ao fundo das coisas para, a partir dali, recuperar o sentido verdadeiro dessa realidade modificada pela ação dos contemporâneos. Como sair desse impasse, como conciliar ação política com contemplação filosófica?

Tratava-se de um falso impasse, pois para Ortega nada impediria o filósofo de ser também um homem de ação; a questão estaria em evitar qualquer espécie de pose, de veleidade intelectualista, de beataría de cultura, segundo sua formidável expressão. A ação do filósofo teria de ser mais demorada do que a do político por um motivo muito simples: o primeiro age para desvelar a verdade, a alethéia que a realidade insiste em esconder nas suas profundezas, enquanto o segundo provoca uma conseqüência imediata na physis, na própria natureza das coisas. O segundo pressuporia o primeiro.

Diante disso, Ortega impôs-se uma tarefa que ele próprio chamava de “luciferina” (no sentido original de “portadora de luz”): a de levar a luz para o que estava coberto pelas trevas; e reconhecia nela a tragédia de sua vocação, remetendo ao famoso adágio de seu querido Goethe: a cortesia do filósofo é a clareza. Uma clareza de que a sua Espanha, por sinal, necessitava desesperadamente.

Quando Ortega y Gasset surgiu no meio intelectual espanhol de começos do século XX, seus contemporâneos ainda estavam sob o impacto da Geração de 98, representada por gente do calibre de Antonio Machado, Miguel de Unamuno e Pio Baroja. Ortega nunca fez parte dessa geração, mas sempre frisou a influência dela em sua obra – em especial a de Unamuno, que lhe deu intuições importantes sobre “a vida como um naufrágio constante”, intensificando aliás o seu “sentimento trágico” da existência. Mas uma fissura separava os antigos mestres do jovem filósofo: a Geração de 98 queria apossar-se da Espanha, ao passo que Ortega queria compreendê-la com todas as suas forças intelectuais. E para compreender esse “mistério da iniqüidade espanhola”, era importantíssimo entender também a Europa.

Difícil empreitada! A publicação do seu primeiro livro, Meditaciones del Quijote, em 1914, quando tinha apenas 31 anos (“a idade em que um homem começa a atuar no mundo”, segundo o autor), marca o início de um diagnóstico e de uma profilaxia duras e afiadas, que não hesitam em mostrar a ferida. A partir da figura de Dom Quixote, a criação de Cervantes que revela o impulso espanhol pelo “idealismo da clareza”, o nosso pensador tenta apresentar uma filosofia do amor que frutifique naquele “território de infiéis” (“in partibus infidelium”) em que se havia convertido a Espanha.

O tema do eros filosófico e a referência religiosa não são aleatórios: Ortega já se vê como o representante de uma cruzada intramundana que tentará seduzir o leitor pela amizade, pela forma carinhosa de voltar aos princípios da filosofia como algo útil e concreto para a vida. Em contrapartida, a queda dos seus conterrâneos pela abstração, a insistência deles na beataría de cultura, a sua transformação em “homens-massa”, a perda que sofreram do sentido do amor – tudo isso, para ele, resulta no assassinato espiritual de seu país. Explica-o em um trecho antológico das Meditaciones:

 “Suspeito eu que, mercê de causas não conhecidas, a morada íntima dos espanhóis foi tomada há tempos pelo ódio, que ali permanece entrincheirado a mover guerra ao mundo. Ora bem: o ódio é um afeto que conduz à aniquilação dos valores. Quando odiamos alguma coisa, erguemos entre a nossa intimidade e esse objeto uma impiedosa cortina de aço que impede a fusão, mesmo transitória, da coisa com nosso espírito. Só existe para nós aquele ponto em que nosso ódio se fixa; tudo o mais, ou nos é desconhecido, ou o vamos esquecendo, tornando-o estranho a nós mesmos. A cada instante o objeto faz-se menos, consome-se, perde valor. Assim o Universo se transformou, para o espanhol, numa coisa rígida, seca, sórdida e deserta. E nossas almas atravessam a vida com trejeitos amargos, suspicazes e fugitivas como pobres cães famintos. Entre as páginas que simbolizam toda uma era espanhola deverão sempre incluir-se aquelas tremendas em que Matéo Alemán esboça a alegoria do Descontentamento”.

Ortega citava Matéo, mas poderia igualmente bem ter citado Antonio Machado, talvez um dos poucos espanhóis que enfrentou com coragem o “idealismo da clareza”, e que escrevia estes versos proféticos no poema “Por las tierras de la España”:

Pequeño, ágil, sufrido, los ojos de hombre

[astuto,

hundidos, recelosos, movibles; y trazadas

cual arco de ballesta, en el semblante enjuto

de pómulos salientes, las cejas muy pobladas.

Abunda el hombre malo del campo y de la

[aldea,

capaz de insanos vicios y crímenes bestiales,

que bajo el pardo sayo esconde un alma fea,

esclava de los siete pecados capitales.

Los ojos siempre turbios de envidia o de

[tristeza,

guarda su presa y llora la que el vecino alcanza;

ni para su infortunio ni goza su riqueza;

le hieren y acongojan fortuna y malandanza.

El numen de estos campos es sanguinario y

[fiero:

al declinar la tarde, sobre el remoto alcor,

veréis agigantarse la forma de un arquero,

la forma de un inmenso centauro flechador.

Veréis llanuras bélicas y páramos de asceta

¿no fue por estos campos el bíblico jardín?:

son tierras para el águila, un trozo de planeta

por donde cruza errante la sombra de Caín.

O que o poeta e o filósofo descobrem na Espanha é o retorno de um problema que já havia sido descrito por Platão em sua República: a de que as mazelas de um país sempre começam com as mazelas da alma individual. Neste caso, uma “sombra de Caim” que impede qualquer exercício unificador, seja da razão seja do espírito; e sua conseqüência direta: a institucionalização da estupidez, camuflada pelo gosto beletrista do hombre satisfecho, que mata o risco da vida e não percebe, de forma deliberada, que a sua existência não passa de um naufrágio. E nessa mesma medida prepara-se, de forma involuntária, para o fratricídio.

É aqui que Ortega esboça sua profilaxia – na qual se aprofundaria por cinqüenta e um anos de intensa atividade filosófica. A raiz da cura está na procura pela conexão, pela unidade que somente o eros philosophicus pode iniciar:

 “O amor […] nos une às coisas, ainda que de modo passageiro. Pergunte-se o leitor que novo caráter sobrevém a uma coisa quando sobre ela se derrama a qualidade de ‘amada’. Que sentimos quando amamos a mulher, quando amamos a ciência, quando amamos a pátria? Antes de qualquer outra coisa, encontraremos isto: o que chamamos ‘amar’ apresenta-se diante de nós como algo imprescindível. O amado torna-se imediatamente em algo que nos parece imprescindível. Imprescindível! Quer dizer que não podemos viver sem ele, que não podemos admitir uma vida na qual nós existíssemos e o amado não, que o consideramos parte de nós mesmos.

“Por conseguinte, há no amor uma ampliação da individualidade que absorve as outras coisas no seu íntimo, que as funde conosco. Tal liame e compenetração nos levam a internar-nos profundamente nas propriedades do amado. Vemo-lo inteiro, e ele se nos revela em todo o seu valor. E então percebemos que o amado é, por sua vez, parte de outra coisa, que dela necessita e a ela está ligado. Imprescindível ao amado, essa coisa também se faz imprescindível para nós. Deste modo o amor vai ligando coisa a coisa e tudo conosco, em firme estrutura essencial. O amor é um divino arquiteto que baixou ao mundo ‘a fim de que tudo no universo viva em conexão’.

“A inconexão é o aniquilamento. O ódio fabrica inconexão, isola e desliga, atomiza o orbe e pulveriza a individualidade.

“Nós, espanhóis, oferecemos à vida um coração blindado pelo rancor, e as coisas, ao ricochetear nele, são repelidas cruelmente. Existe ao nosso redor, há séculos, um incessante e progressivo derribamento dos valores”.

Ortega dedicar-se-á, em conseqüência, à tentativa de gerar o impulso do amor no coração dos espanhóis, especialmente na geração mais jovem. É um trabalho que lembra muito a missão de Sócrates – portanto, o motor fundamental de qualquer ação filosófica. Mas quais serão os passos seguintes? Ou, melhor: como transmitir esse impulso, há muito tempo perdido, sem esquecer que a vida continua e na verdade está em constante risco de extinguir-se?

Poderíamos dizer que a palavra-chave para compreender essa atitude seria circunstância. Contudo, se seguirmos por esta trilha, seremos obrigados a citar a famosa frase pela qual Ortega é sempre lembrado – e geralmente mal-lembrado e, portanto, mal-compreendido. Mas não é nossa intenção, nem ir por esse caminho, nem muito menos relembrar a frase tão batida. A circunstância é um termo central para entender o propósito orteguiano, mas não é o único, como ocorre com qualquer pensamento que não se deixa petrificar.

Para irmos além, talvez possamos lembrar uma exclamação sua – na verdade, um quase-imperativo que se parece muito com uma ordem militar – que é um aviso de profunda raiz moral: “Alerta!” Em um livro da maturidade chamado La caza y los toros, Ortega parte de um simples fato social do passado – o hábito da caçada como jogo que revela a capacidade humana de controlar ou dominar a natureza violenta – para levantar vôos vertiginosos, e afirmar que a própria existência humana é uma contínua caçada em que devemos estar constantemente alertas, em atenção imediata, para caçarmos a essência das coisas reais e não nos deixarmos capturar por ilusões do passado, nem muito menos do futuro – para nos atermos ao que ocorre no presente.

Eis aí o nó da circunstância para o filósofo espanhol: o seu país esqueceu-se da situação concreta, e é dever da Filosofia lembrar-lhe que não existe futuro, nem muito menos passado, se ninguém se preocupar com o que acontece agora. Não é, em hipótese nenhuma, o elogio de um carpe diem pasteurizado, mas o retorno a uma virtude que a modernidade deixou de lado e que a Espanha abandonaria na Guerra Civil de 1936 – a prudência.

Nesse sentido, quando Julián Marías, talvez o maior sucessor de Ortega, afirma que os escritos de seu mestre são, antes de tudo, escritos circunstanciais, escritos que precisam de uma determinada situação para articular uma filosofia sempre prestes a se desintegrar, temos de notar que a preocupação com a circunstância é um dos imperativos da prudência. Na verdade, é o imperativo: sem a noção real das coisas que o rodeiam, o homem jamais poderá agir com moderação, com a solércia necessária, amarrando em sua consciência tanto os princípios morais que o guiam como a superação dos obstáculos encontrados em sua trajetória.

Talvez seja aqui que se encontram tanto a grandeza como a limitação de Ortega. Sua grandeza está, sem dúvida, em fazer uma filosofia no “calor da hora”, fundamentada nos problemas de uma vida concreta, sem abstrações ou conceitos desnecessários, percebendo-a como um drama que nos atinge a todos (ele a chamaria depois de razão histórica). Entretanto, sua maior limitação está em que Ortega não expõe o organismo completo de sua filosofia em nenhum escrito; só a conhecemos através de fragmentos, artigos, palestras, livros póstumos ou incompletos – mas nunca em um tratado sistemático, certinho, sem nenhuma lacuna de raciocínio.

Evidentemente, não se trata de um problema insuperável; caso não estejamos lembrados, o mesmo acontece com Kierkegaard e tantos outros grandes pensadores. Então, por que isso dificultaria o nosso entendimento de Ortega? A resposta é simples: porque perdemos uma das coisas que o espanhol sempre nos recordava – perdemos a capacidade de viver a vida como uma viagem atribulada em que somente nos podemos fiar da incerteza do concreto. Sem este norte – ou, melhor, sem a aceitação desta ausência de um norte intramundano – jamais poderemos compreender Ortega (ou qualquer filósofo que valha a pena). Com ele, a verdade é que seremos capazes de entender em qualquer dos seus fragmentos, não a filosofia orteguiana em uma forma sistemática, mas o núcleo do seu pensamento.

Para sermos justos, ele nos deixou algo semelhante a um tratado orgânico, porém inacabado – La ideia de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva, publicado postumamente em 1957. É um dos livros mais vertiginosos já escritos, concebido enquanto Ortega era obrigado a viver num auto-exílio, seja na própria Espanha seja em Portugal, vendo o seu mundo ruir e aceitando a impotência de seu trabalho com uma dignidade quase estóica. Foi também nesse auto-exílio que aprofundou as raízes do problema já vislumbrado em 1914: Onde teve início esse ódio que aniquila não só o pensamento, mas também a alma européia? Como se deu essa aniquilação? Quem foram seus autores?

É deste período a publicação das suas obras mais importantes: En torno a Galileo, Una interpretación de la Historia Universal, La caza y los toros, El hombre y la gente. Nelas, Ortega não deixa espaço para nenhum pensamento simplificador, nenhuma ideologia que ofereça explicações simples e abrangentes para o mundo; pelo contrário, fiel ao seu modo de ser, aprofunda-se nos problemas, ataca-os sem misericórdia e tenta encontrar-lhes alguma saída. Infelizmente, sua tentativa não foi de grande utilidade – pelo menos a curto ou médio prazo. A Espanha era uma nação em que as ideologias políticas tinham substituído os hormônios.

Ao mesmo tempo, Ortega sofria fisicamente com o ostracismo e com as doenças que o acometeram nesses dez últimos anos de vida. Para os comunistas, era um problema porque nunca se opôs explicitamente a Franco – até se afirma que, em cartas pessoais, aceitava o caudillo como um “mal menor”. E, vejam só, para os nacionalistas sempre foi um simpatizante dos anarquistas e dos liberais de esquerda, uma verdadeira ameaça que temiam de tal forma que, nas vésperas da sua morte, lançou-se a seguinte ordem para a imprensa espanhola, redigida pelo Ministro da Informação de Franco, Arías Salgado: “Com a possível contingência do falecimento de don José Ortega y Gasset, esse diário dará a notícia com um título máximo de duas colunas e a inclusão, se quiser, de um único artigo encomiástico, sem se esquecer dos seus erros políticos e religiosos e, em qualquer caso, eliminará sempre a denominação de mestre“.

Assim, a morte de Ortega, em 1955, passou praticamente em silêncio – mas a lista
dos discípulos comprova que um mestre o é, não por ordens estatais, mas sim pelo valor e continuidade de seu trabalho. É só observar os nomes que continuaram seu legado: Julián Marías, José Ferrater Mora, Manuel García Morente, José Gaos, Xavier Zubiri e tantos outros. Além disso, não se pode negar que ninguém no século XX se esforçou tanto quanto Ortega para difundir entre as pessoas um vínculo de amizade com a Filosofia, não através de termos ou conceitos que facilitassem a nossa compreensão das coisas, mas apenas graças ao seu estilo límpido, aguçado, veloz, capaz de reviravoltas que somente o pensamento sadio pode dar quando vê que o problema está ali, pronto para ser agarrado e transformado em uma questão que nos ajudará a encarar o drama de nossas vidas – um estilo que hoje é reconhecido como simplesmente a maior prosa espanhola já escrita desde Cervantes.

Contudo, “sentir os quatro ventos do mundo em seu pensamento”, como observa Antonio Machado na epígrafe deste texto, não permitiu a Ortega escapar de sua encruzilhada. É ela que talvez nos possibilite uma compreensão melhor do que acontecia em sua alma e, mais, um correto entendimento dos problemas que atingiram a sua Espanha e que nos atingem atualmente a nós. E é algo que não se pode observar no seu pensamento, mas em uma breve e singela ação.

A encruzilhada de Ortega y Gasset é, na realidade, muito simples: trata-se do problema de Deus. Apesar da amplidão temática de sua filosofia – tem-se a impressão de que falou de quase tudo, das artes à sociologia, sem desprezar os relatos de viagem -, há nela pouco espaço para o questionamento a respeito da abertura da alma à transcendência do real. Não há dúvida de que existe em sua obra uma compreensão sadia do ensimismamiento, da solidão radical em que o homem se recolhe em seu íntimo mais profundo – onde pode, se o quiser, encontrar a Deus. Ortega afirma que essa atitude é o início de toda verdadeira ação que atinge o mundo, da ação que procura respeitar a realidade pelo que é e não pelo que gostaríamos que fosse.

Mas será isso suficiente? Na filosofia orteguiana, a preocupação com o que seria ou poderia ser Deus parece antes uma presença reconhecida muito a contragosto, algo indesejado mas necessário para preencher determinado espaço. Qual seria o seu problema com Deus? Uma simples questão de anticlericalismo liberal clássico, como relatam diversos depoimentos, segundo os quais Ortega era dado a esbravejar contra a Igreja Católica na época da ditadura de Franco? Talvez uma tentativa patética de afirmar a sua independência e autonomia? Ou uma maneira de ressaltar que era um “realista espiritual”, alguém que não negava a existência do divino no mundo, mas também sabia que a falta de prudência em identificá-lo podia chegar às raias da loucura (como efetivamente aconteceu com a Espanha depois da Guerra Civil)?

O fato é que, se lermos com atenção suas páginas, encontraremos belíssimas meditações a respeito de experiências fundamentais para quem quer que se preocupe com o assunto “Deus”. Que dizer, por exemplo, da arguta análise da crise cristã renascentista que traça em En torno a Galileo? Ou da afeição com que descreve os êxtases de Santa Teresa de Ávila como maneira fundamental de conhecer o mundo em seus Estudios sobre el amor? Não se percebem ali as habituais notas anticlericais, nem muito menos uma pessoa fechada às intervenções da transcendência, e sim um pensador que sabe muito bem que seu país caiu em desgraça justamente por não ter compreendido melhor a importância desses fatos e experiências. Mas por que não foi além? Por que insistiu na ausência?

Talvez porque tenha cabido a Ortega y Gasset, na sua encruzilhada particular, o papel de revelar com a clareza do gênio a encruzilhada em que se encontrava o século XX. No âmbito do intramundano, a luz não existe sem treva. Os ideólogos tentaram criar uma luz racional que excluísse a treva, mas só conseguiram aprofundá-la, quando o primeiro passo é aceitá-la como parte da limitação do ser. No entanto, só se consegue perceber isso quando se ultrapassa o estágio em que Deus é reduzido a um problema ou conceito a ser discutido, e se consegue atingir um relacionamento pessoal que nenhuma filosofia, nenhum país, nenhuma razão histórica é capaz de dar. Muitos homens permanecem paralisados nessa encruzilhada situada apenas no seu pensamento, repleto de teias e tramas que dão a impressão de serem paradoxos jamais resolvidos e até insolúveis; no entanto, tudo o que se requer é uma simples e pequena ação.

Ortega observou demais o mundo e esqueceu-se do que movia o mundo. Mas, mesmo em seus últimos momentos de vida, foi de uma coerência exemplar com os seus princípios: agarrou o seu problema e perseguiu-o até o fim. Segundo sua esposa, Rosa Spottorno, em depoimento aos filhos, o filósofo espanhol teria agarrado e beijado um crucifixo oferecido por um padre que ninguém sabe como chegou ao seu leito de moribundo. A família prefere acreditar que o pai não estava lúcido nesse instante. Quem sabe? Em uma vida que se dedicou tanto a propagar o amor numa terra dominada pela sombra de Caim, não é de duvidar que a loucura final tenha sido o gesto de uma sabedoria conquistada a muito custo.

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista e doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, com a tese “Violência e Epifania: a liberdade interior na filosofia política de John Milton”. É também mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e foi um dos criadores e editores da revista cultural “Dicta&Contradicta”, do Instituto de Formação e Educação (IFE). Atualmente colabora com o “Jornal Rascunho”, de Curitiba, e é autor dos livros “Crise e Utopia: O dilema de Thomas More” (Vide Editorial, 2012) e “A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira” (Editora Record, no prelo). [informações a partir de seu CV Lattes]

Ensaio publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição 1, Junho/2008. Ilustração de Paulo von Poser para este artigo na edição impressa da revista.