Sempre terei Paris


Cada vez que estou em Paris, um assombro anímico toma meu ser. Uma sensação feita de nostalgia de um tempo ainda não vivido e de reminiscências ainda não sedimentadas nos porões da existência. As lembranças da primeira viagem – que fluem como uma torrente de verão tropical a tomar conta de suas antigas vielas, hoje bem reduzidas, quando ainda se chamava Lutécia, nome de batismo dado pelos romanos – sobrepõem-se aos novos olhares que a cidade-luz oferece aos seus citadinos. E, também, aos estrangeiros com um coração gaulês.

Já viajei para muitos lugares e, com exceção de Roma, essa sensação não se repete nas outras paragens. Certamente, porque nunca tenha desejado tanto Paris, uma espécie de fruto destilado das leituras juvenis de Verne e Dumas, alimentado pelas fascinantes estórias da tia Maria Helena, mãe de um verdadeiro amigo de ginásio e sempre disposta a nos fazer um delicioso cachorro quente com mostarda Dijon. E, também, pela oitiva dos causos de um primo de meu pai que, como embaixador aposentado, servira em Paris por muitos anos.

Tudo isso me motivou, aos doze anos, a escolher a diplomacia como minha profissão: achava, ingenuamente, que poderia lançar raízes ali e que só vivendo em Paris minha alma naturalmente cosmopolita alcançaria sua plenitude. Mal sabia que isso me causaria dois problemas imediatos. A centelha nativista, idealizada por um pai militar, havia se apagado pelo ardor do desejo parisiense e o orçamento doméstico precisou ser rearranjado para contemplar aulas de francês, tal era minha obstinação em deixar Pindorama.

Contudo, não contava com as artimanhas do destino que, ao me “obrigar” a fazer Direito, como condição para se ingressar no Itamarati, fez com que meu coração ficasse preso às arcadas do Largo de São Francisco. Foi estudando a magistratura francesa que me encantei com a carreira de juiz e, por viver enfornado nas bibliotecas dos departamentos de Filosofia do Direito e de Direito Internacional Público, acabei por conhecer uma caloura, que estagiava como bibliotecária, e que, anos depois, casou-se comigo. Enfim, devo ao Largo minha esposa e minha formação profissional. Não necessariamente nessa ordem…

O sonho diplomático esfacelou-se e ficará para a outra vida. Entretanto, a alma parisiense ainda resta bem viva. Com a tia Maria Helena aprendi o gosto pelos vinhos e por toda a arte que o cerca, sempre explicado pelo tio François, entre uns goles aqui e acolá. Se, com meu pai, fui educado a ler muito, com o primo dele, fui incentivado, aos poucos, a ler obras de literatura e história na língua francesa. Toda vez que leio – não para resolver problemas processuais –, faço-o acompanhado de um bom vinho e, sentado ao ar livre, espiritualmente, sinto-me num café parisiense.

Sem dúvida, olho para o lado e não vejo o Sena. Aliás, uma das coisas que primeiro me impressionou em Paris foi justamente esse “detalhe” geográfico: as proporções parisienses são fenomenais graças às dimensões humanas desse silencioso rio que corre placidamente no coração agitado da cidade. Ao contrário das superfícies imponentes do Tâmisa em Londres ou do Tibre em Roma, o Sena é bem mais estreito. Causa-me a impressão de que este dado natural impactou a paisagem urbana de alguma forma, cujas consequências mais notáveis são suas construções pequenas, equilibradas e agradáveis.

De longe, a construção que mais me atrai não é a Torre ou seus incontáveis palácios e jardins. Nem mesmo seu famoso teatro, o Arco ou suas românticas pontes. É a igreja de Notre Dame. Contemplar, por dentro e por fora, num giro panorâmico, sua arquitetura gótica cercada pela água do rio, seus vitrais, seus portais, suas arquivoltas, seus arcobotantes, sua abóbada e sua rosácea é sempre uma experiência transcendente das agruras do cotidiano rumo ao divino escondido que habita dentro de cada um de nós.

Meus sentimentos voltam-se para Paris, na iminência de visitá-la novamente. Não me recordo de nenhum poema francês para expressá-los. Pouco importa, já que a cidadela da poesia é tão cosmopolita quanto Paris. Então, vou atrás do meu português favorito: “Tenho tanto sentimento/ Que é frequente persuadir-me/ De que sou sentimental/ Mas reconheço, ao medir-me/ Que tudo isso é pensamento / Que não senti afinal”. Ao cabo, Paris só se define tautologicamente: Paris é Paris.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular de Campinas, edição 29/6/2016, Página A-2, Opinião.