[RESENHA] Theodore Dalrymple: “Nossa Cultura ou o que restou dela” (por Pablo González Blasco)

Filosofia | 04/07/2016 | | IFE CAMPINAS

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Theodore Dalrymple: “Nossa Cultura ou o que restou dela”. E Realizações. São Paulo. 2015. 400 pgs.

Nossa cultura, ou o que restou delaO autor que está por trás do pseudónimo é Anthony Daniels, psiquiatra e escritor inglês, com experiência profissional em quatro continentes, incluídos trabalhos em prisões e hospitais de bairros pobres. A presente obra reúne uma coletânea de 26 ensaios, resultado das reflexões que o seu trabalho profissional lhe proporcionou ao longo do tempo. Uma atividade que o colocou junto a pessoas que são, nas suas próprias palavras, “cobaias da engenharia social parida no conforto das universidades pela elite politicamente correta e progressista”. Basta essa introdução para adivinhar o tom crítico que o escritor inglês emprega nos seus escritos.

O desenrolar dessa introdução não se faz esperar: surge nas primeiras páginas. “A fragilidade da civilização foi uma das grandes lições do século XX. Era de se esperar dos intelectuais – de quem imaginamos que pensassem mais longe e com maior profundidade-  que identificassem as fronteiras que separam a civilização da barbárie. Ledo engano. Alguns intelectuais abraçam o barbarismo, enquanto outros permanecem indiferentes, ignorando-o. (…) A civilização precisa de conservação tanto quanto de mudança. Nenhum ser humano é suficientemente brilhante a ponto de sozinho poder compreender tudo, e concluir que a sabedoria acumulada ao longo dos séculos nada tem de útil. (…). Os intelectuais têm que perceber que a civilização é algo que vale a pena ser defendido, e que um posicionamento hostil diante da tradição não representa o alfa e o ômega da sabedoria e da virtude. Temos mais a perder do que pensam”.

Os intelectuais politicamente corretos são alvo direto e constante das críticas de Daniels. “O intelectual se eleva acima do cidadão comum, que ainda se agarra quixotescamente aos padrões, preconceitos e tabus. Diferentemente dos outros, ele não é mais um prisioneiro de seu passado e de sua herança cultural; e prova a medida da liberdade de seu espírito em função da amoralidade de suas concepções”.

E as coisas se tornam ainda piores quando esses elementos pensantes simulam advogar em causa alheia.  São aqueles que “dão uma de pobre”, e o resultado seria cómico se não fosse trágico, pois ao invés de solidariedade com os necessitados, praticam uma paródia perversa deles. Neste ponto comenta os paradoxos da filosofia de Virginia Woolf que tanto se assemelham aos nossos intelectuais de esquerda de hoje, proveniente de altas camadas da sociedade, que defendem uma revolução na qual nunca se incluem. Criticam tudo sem construir nada. “VW ambiciona os dois lados, a aristocracia à qual pertence, e os excluídos. E quando se lhe oferece a inclusão, diz que não vale a pena. É uma versão sem graça de Groucho Marx, que não queria ser membro de nenhum clube que o aceitasse. Aquilo que é piada para Groucho Marx é alta filosofia política para Virginia Woolf”.

Os temas que aborda são variados, e o espectro reflexivo que o livro oferece é amplo. Mas um denominador comum é, sem dúvida, a crítica contumaz, não à miséria e às baixezas humanas, mas sim aos que podendo impedir tudo isto permanecem na inatividade, ou mesmo, justificam sua passividade com filigranas intelectuais que a ninguém convence.  Sublinha a conhecida afirmação de Edmund Burke:  “Homens de mente intemperada não podem ser livres. Para que o mal triunfe basta que os bons nada façam. Hoje em dia, a maior parte dos bons faz exatamente isso. Ao se temer mais a alcunha de intolerante do que a de perverso temos o cenário perfeito para que a malignidade esteja livre para prosperar”. E alerta contra o falso liberalismo que comprovamos diariamente: “O real propósito daqueles que defendem a denominada diversidade cultural é a imposição da uniformidade ideológica. A intransigência é a grande defesa contra a dúvida, impossibilitando a convivência, em termos de genuína igualdade, com outros que não compartilham da mesma crença”.

O problema do mal e os seus responsáveis ocupam grande parte dos ensaios, em variações sobre o mesmo tema. “Os homes cometem o mal dentro de um escopo disponível. Não se trata de demônios ou gênios malignos, mas daqueles que fazem o que podem para conseguir o que querem.  Quando as barreiras que seguram o mal são derrubadas, o mal floresce; e nunca mais acreditarei na bondade fundamental do homem, ou que o mal é um estado excepcional ou estranho à natureza humana”. Daí nasce o que denomina a frivolidade do mal, que naturalmente evoca a banalidade do mal da que falava Hannah Arendt, mas que vai além. “A capacidade do homem para a desumanidade transcende condição social, classe ou educação. O passado de alguém não se confunde com o seu destino e é de interesse próprio fingir o contrário. Cabe à responsabilidade e liberdade de cada um.  A elevação do prazer efémero que se sobrepõe à miséria de longo prazo, que se desencadeia sobre terceiros em relação aos quais se tem obrigações. Basta um exemplo: a mãe que põe para fora sua própria filha porque o seu atual namorado (da mãe, entenda-se) não a quer em casa! ”

Faz uma crítica feroz à sociedade inglesa, que “ troca profundidade por superficialidade, pensando que levam vantagem nessa negociação. São como aqueles que pensam que o tratamento adequado para a constipação intestinal seja a promoção da diarreia (…) A espiral decadente da cultura, a perda do refinamento, o dignificar certos comportamentos por meio de representações artísticas que acabam promovendo-os, tudo isso não é trabalho de um momento. Roma não foi destruída em um dia (…) A transgressão carrega um bem por si, independentemente do que está sendo transgredido. Basta com quebrar um tabu e tornar-se herói imediatamente, desconsiderando-se o conteúdo do tabu. Hoje em dia para mostrar-se como homem de gosto artístico, é preciso se abster de quaisquer padrões e acolher todas as violações, o que, como disse Ortega y Gasset, caracteriza o vestíbulo do barbarismo”.

Recomenda a leitura de Shakespeare, que “dá respostas muito mais sutis do que qualquer ideólogo ou teórico abstrato, pois é um realista sem o cinismo, um idealista sem a utopia. E mostra claramente que a linha divisória entre o bem e o mal não passa pelos Estados, tampouco entre as classes, menos ainda entre os partidos políticos; mas percorrer todos e cada um dos corações humanos (…) A prevenção ao mal sempre requererá muito mais do que arranjos sociais: exigirá o autocontrole pessoal e uma limitação consciente dos desejos. Devemos reconhecer as limitações que a natureza nos impõe e nunca desistir do esforço por controlar os próprios impulsos”. Assim como sugere outros autores que ajudam a pensar: “Ler Stefan Zweig é reaprender tudo aquilo que, por meio da estupidez e do mal, fomos perdendo de forma progressiva, ao longo do século XX (…) Lembremos a afirmação de Orwell: a linguagem politizada é elaborada para que mentiras soem como verdades, e para dar solidez ao vento. ”

Propõe coragem moral para ir ao núcleo dos problemas da sociedade e não uma cosmética de formas, uma maquiagem do que é politicamente correto, e nos exime de qualquer responsabilidade.  “A fim de compensar a sua atual falta de compasso moral, surgem espasmos de bondade autoproclamada que passam a funcionar como substituto da vida moral. E adverte, com Jung, que o sentimentalismo é uma superestrutura para encobrir a brutalidade”.

Impõe-se, por tanto, aprender a contemplar o mundo, os exemplos bons e os ruins. E refletir para tirar consequências. “Quando leio algo sobre o Khmer Vermelho, ou sobre o genocídio em Ruanda, reflito longamente sobre minha vida, meditando um pouco sobre a insignificância dos meus esforços, o egoísmo de minhas preocupações e a estreiteza de minhas afeções (…) Ou aquela pianista tocando Mozart na National Gallery enquanto as bombas da Lutwaffe caiam sobre Londres, ou os quatro homens cultos que, esperando a Gestapo para serem presos (o que acabou não acontecendo) passaram a noite tocando um quarteto de Beethoven”.

Quando lia estas linhas lembrei daquela cena do filme Titanic, com os músicos tocando enquanto outros se desesperam para conseguir um lugar no bote salva-vidas. ‘Foi um prazer tocar com você esta noite’, diz um deles. O prazer de saber pensar, refletir, e atuar de acordo, destacando-se da fauna humana, do rebanho inconsciente. Um prazer que é também um dever, uma missão que nos cabe como homens. Para cumpri-la, a leitura pausada deste livro -em cómodas prestações, um ensaio por dia- é uma ótima ajuda.

González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/06/27/theodore-dalrymple-nossa-cultura-ou-o-que-restou-dela/#more-2659