Progressistas: idiotas úteis?

Opinião Pública | 15/02/2017 | | IFE CAMPINAS

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Nesses últimos tempos, há muita confusão de ideias no ar. O odor é inconfundível. É como abrir um armário cheio de roupas numa casa de praia totalmente fechada, depois de um verão muito chuvoso: o mofo está ali dentro, mas não se consegue visualizá-lo de plano. Será preciso arejar a casa, separar a roupa mofada, lavá-la e secá-la bem. Do contrário, o bolorento e o não-bolorento permanecerão indistintos.

Essa confusão fica muito clara na atribuição de sentido da expressão “progressista”. Vivemos tempos progressistas: nas noções de propriedade (shared ownership), de família (patchwork family), de casamento (same-sex e opposite-sex), de amor (love-affection), de sexo (gender) e tantas outras que povoam a mídia e as redes sociais.

Nessas mudanças, há aspectos positivos, porque muitas dimensões da existência humana foram resgatas, e também negativos, pois o novo, não raro, transforma-nos em cobaias no laboratório social de experimentos ideológicos duvidosos. Em suma, ser minimamente crítico desses tempos progressistas pode fazer apontar para si a metralhadora giratória da patrulha desse admirável mundo novo.

Eis os cartuchos dessa arma: reacionário, fascista, neonazista, xenófobo, homofóbico, racista, intolerante, machista, sexista, misógino, entre outros. Se é verdade que boa parte dessa patrulha não saberia definir satisfatoriamente quaisquer um desses qualificativos, porque, como idiotas úteis, sequer conseguem distinguir uma fatia de presunto de uma bola de futebol, também é verdade que essas réplicas rotuladas e nada reflexivas são um véu diáfano que permite visualizar a realidade do projeto progressista.

O projeto progressista tout court é uma pauta política totalitária. Não compartilhar do credo progressista é motivo suficiente para um sujeito ser banido da esfera dialógica, pois seus argumentos não gozam de suficientes razões públicas. Seria tudo religioso, obscurantista, medieval, retrógrado e tradicionalista.
A trama da costura daquele véu é feita com as atraentes linhas da tolerância, do pluralismo e da diversidade, as vacas sagradas de nossos especialistas e jornalistas. São tidos por valores absolutos e não podem sofrer qualquer tipo de objeção dotada de um mínimo de racionalidade.

Ao partir da premissa de uma suposta incapacidade de adquirirmos um conhecimento certo daquilo que é bom e justo no seio social, a cartilha progressista obriga-nos a tolerar todas as opiniões a respeito ou a reconhecer como igualmente aceitáveis todas as diversas e plurais preferências a respeito dos mesmos bens.

Levado esse raciocínio até as últimas consequências, caíremos no conhecido paradoxo de Popper: sem limites, aquelas vacas sagradas desaparecem. Por falar em Popper, quando o progressismo condena todas as posições não-progressistas, eis que baseadas na capacidade humana em saber distinguir, dentre aquelas noções, o bom e o justo, sua falsidade é facilmente demonstrável.

Por detrás da rejeição apaixonada destes absolutos morais, discernimos uma interpretação particular da realidade, segundo a qual aquelas vacas sagradas mereceriam um respeito irrestrito. Mas há uma tensão entre estas e os absolutos morais do bom e do justo.

Num dado momento, é inevitável uma escolha entre o cultivo sem inibições da individualidade (causa primária daquelas vacas sagradas) e os citados absolutos. O progressismo opta pelo primeiro. Dado esse passo, as ditas vacas aparecem como um valor entre muitos outros e não como intrinsecamente superior aos seus concorrentes.

Em outras palavras, aqueles absolutos morais, nessa lógica, têm o mesmo valor que as vacas sagradas do progressismo, porque o estatuto desigual de uma escolha nesse caso só pode ser relacionado com o ato de escolha em si e não com seus respectivos objetivos. Ou seja, uma escolha progressista genuína, por mera contraposição a um absoluto moral tido como ultrapassado, nada mais é do que uma singela decisão resoluta. Só isso.

Nesses tempos progressistas, é proibido pensar diferente naquelas noções já citadas. Transformaram a saudável equidade de Rawls em igualitarismo de vitrine. Se nossa sociedade resolver abraçar essa nova deriva totalitária, confesso que, lá na frente, escusarei os idiotas úteis. Afinal, a idiotice que os caracteriza, por suposto, dá-lhes uma certa presunção relativa de ignorância acerca da manipulação utilitária da qual foram vítimas sociológicas. Com respeito à divergência, exceto daquela proveniente dos idiotas úteis, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/02/2017, Página A-2, Opinião.