Prisão, por que não?


A propósito da última coluna (Correio, 30/03), um perplexo leitor enviou-me uma mensagem, na qual me questionava sobre os limites da presunção constitucional de inocência, a questão subjacente à sessão de hoje do STF, cujo resultado proclamará ou não o salvo-conduto no habeas corpus preventivo impetrado pelo primeiro ex-presidente que, nunca antes na história desse país, foi condenado criminalmente em duas instâncias judiciais.

O princípio da presunção de inocência, ao longo da história da civilização, sempre representou um valor caro e inalienável à liberdade do cidadão. Não se cuida de uma cláusula libertária estabelecida para um réu com nome, apelido e sobrenome, mas visa estabelecer balizas para o legítimo exercício da persecução penal estatal em favor do bem comum da sociedade.

Salvo para os bem-pensantes do abolicionismo penal, a máxima “crime e castigo” é um dado historicamente perene e reflexo de um princípio existente em todos os contextos civilizatórios e religiosos dos quais se tem notícia: fazer o bem e evitar o mal. Se o crime é um mal, porque afeta o direito da vítima, seja uma pessoa ou uma coletividade, logo, a pena é o consequente lógico e valorativo.

Evidente que podemos discutir os graus da pena segundo a gravidade da infração, desde advertência por escrito ou pagamento de multa, passando pela pena restritiva de direitos ou de liberdade até prisão perpétua ou pena de morte. Contudo, na incidência de um crime, a sociedade reclama por uma pena, adequada e matizada às circunstâncias do fato ilícito.

Então, para que a persecução penal estatal não se transforme em instrumento de arbítrio legalizado, o princípio da presunção de inocência atua como uma espécie de fino sintonizador daquela atividade persecutória. Entretanto, as implicações e efeitos desse princípio nunca foram reputadas como estritamente absolutas.

Se assim fosse, como aliás, defende um religioso garantismo penal, alçado à condição de reformador das perenes coordenadas simbólicas do direito criminal, sequer poderíamos instaurar investigações criminais, prender temporariamente, aplicar prisões preventivas ou mesmo mandar algemar.

O princípio da presunção de inocência deve, no fato concreto, ser sempre cotejado com outros valores, direitos, liberdades e garantias constitucionais estabelecidas em favor da sociedade como um todo, sob pena de se exacerbar injustamente a tutela dos indivíduos sujeitos à persecução criminal em desfavor daqueles valores, direitos, liberdades e garantias.

Aqui, nesse ponto, na realidade brasileira, existe um dado concreto que nos incomoda muito. Somos o país da impunidade e uma das causas desse fenômeno repousa no fato de que muitos ministros do STF conferem uma interpretação demasiado elástica e inconsequente ao dito princípio, a ponto de se postergar o cumprimento da pena depois de esgotados quase todos os infindáveis recursos de nosso pródigo e generoso sistema processual penal.

Numa realidade em que a criminalidade organizada estende seus tentáculos econômicos e sua astúcia racional em direção ao aparato estatal e em conluio com políticos que deveriam zelar pelo correto emprego do dinheiro tornado público a partir da coleta tributária, um ambiente de impunidade dilacerada é tudo o que não queremos.

Chega a hora de o STF reafirmar o entendimento em prol do cumprimento da prisão depois da condenação em segunda instância, como, aliás, são as posições do mesmo STF (ARE 964246) e do STJ (Súmula 267). Assim é nos EUA, na Inglaterra e em França, berços históricos das clássicas liberdades públicas, porque esses países já descobriram que a impunidade não está na dosagem da pena, mas se situa na incapacidade de executá-la.

Ao perplexo leitor lembro que um dos ministros, que foi meu professor no Largo, disse, recentemente, que a revisão daquele entendimento estaria em conformidade com o “espírito dos tempos”. Fatalmente, quando lemos seu nome em livros esquecidos, notamos que ele não nos legou uma obra que mereça dois segundos de atenção. Faz sentido: quem é escravo do tempo, morre com o tempo. Resta saber se o restante do STF seguirá o mesmo caminho de servidão. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 04/04/2018, Página A-2, Opinião.