Poliamor: entre o mal e o ilegal

Opinião Pública | 22/08/2018 | | IFE CAMPINAS

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Não faz muito tempo. Na semana seguinte em que resolvi, pela via negativa, uma dúvida registrária de um casal de três pessoas (vulgo “trisal”) que pretendia atribuir eficácia a uma escritura pública de declaração da união estável em que já viviam, o advogado me interpelou: “Mas meus clientes não têm o direito de viver o afeto com o mesmo respeito assegurado aos demais casais, sem que sofram qualquer restrição em sua vontade, pelo simples fato de conviverem numa forma singular de amor?”.

Respondi que, antes de adentrar no assunto, ele entendesse melhor as noções de afeto, amor, dignidade humana e bem comum. Hoje, afeto e amor viraram sinônimos, dignidade humana serve até para justificar “direito ao aborto” e a ideia de bem comum já foi para o ralo na órbita social. E, como resultado disso, paira uma grande confusão, muitas vezes não-intencional, nos modismos em voga que, por tabela, mais cedo ou mais tarde, vão bater nas portas do direito, a fim de exigir uma tutela judicial. Em cena, o poliamor.

É uma tutela de uma realidade que demanda do direito, em termos de resposta, mais do que ele pode dar. Nosso direito não protege as uniões poligâmicas e uma escritura notarial, como aquela citada, que reconhece efeito jurídico de união estável para esse arranjo é ilegal. Pela ordem constitucional (art., 226, §3º) e civil (art.1.723), a monogamia é essencial ao reconhecimento da união estável.

O velho argumento sociologista (“Tais uniões poligâmicas já existem por aí!”) vem à tona, floreado de uma retórica hermenêutica que desconhece, como sugeri ao inconformismo do advogado, o que são o amor, o afeto, a dignidade humana e o bem comum. “Toda forma de amor”, na ótica dessa demanda temerária, desde que amparado pela “vontade de poder” dos envolvidos, deveria gozar da chancela judicial.

O pleito de reconhecimento jurídico da união poligâmica envolve muitos problemas, dos mais elementares, como a bilateralidade do direito e o bem comum, até os mais elaborados, estudados em outros ramos do saber, como a antropologia filosófica e a psicologia. Quando esses dados são escanteados, a criatividade do advogado deixa de militar em favor do brilhantismo e ruma em prol do exotismo.

O direito é uma relação que envolve um débito para com o outro: um indivíduo, um grupo ou toda a sociedade. Eis a bilateralidade já citada. Uma união monogâmica respeita essa dimensão, porque personaliza os filhos, favorece a intensidade de compromisso dos envolvidos entre si e cria sólidas condições para uma reprodução geracional.

Essa justificativa não consiste numa atenta observância de um credo religioso, mas finca suas profundas e nutridas raízes na história da humanidade e na sociologia familiar.
Quanto ao bem comum, noção tão antiga quanto a própria filosofia política, seu sentido foi substituido pelo de “interesse geral de caráter instrumental”. Em suma, a mais pura reificação do outro e a união poligâmica é o exemplo mais bem acabado disso em termos de arranjo na intimidade existencial.

Em relação à antropologia e à psicologia, a união poligâmica ignora alguns dados empíricos relevantes. No primeiro caso, num desenho conjugal com mais de duas pessoas, sempre existe a preferida para a satisfação dos desejos sexuais ou a realização de atividades em comum, como cozinhar ou viajar. Assim, todos são instrumentalizados para a saciedade do outro e o indivíduo dominante acaba por escolher um preferido entre os demais. Ao cabo, torna-se uma relação organicamente desigual.

No segundo caso, na cabeça dos indivíduos de um trisal, fica muito difícil distinguir, em seus ânimos interiores, se um modo de agir é baseado efetivamente na vontade ou fica no vai-e-vem das pulsões nascidas da libido ou do tanathos. Em outras palavras, com tanto apelo à mecânica dessas pulsões, resta saber se o indivíduo consegue compreender as motivações existenciais dessas mesmas pulsões.

A chancela judicial da união poliafetiva só presta para a normatização da iniquidade. Na realidade jurídica brasileira, não há espaço para essas uniões, ao menos enquanto o atual regime constitucional e civil permanecer em vigor, baseado na monogamia, único arranjo conjugal que respeita a antropologia, a psicologia, o direito e contribui para o verdadeiro bem comum. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/08/2018, Página A-2, Opinião.