Pensar o Direito (Parte VI de VI): “Justiça, Filosofia e Virtude”

Direito | 06/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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VI – JUSTIÇA, FILOSOFIA E VIRTUDE

Tive a oportunidade de julgar meu primeiro processo denso, em provas e argumentações, sobre dano moral decorrente de alienação parental. A alienação parental consiste, segundo o texto legal, “na interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.

No caso concreto, o pai tinha abandonado afetivamente o filho durante toda a infância e adolescência e, em razão disso, o filho teria sido moralmente afetado pela longa ausência paterna, o que justificaria uma indenização pelos danos daí decorrentes. Prefiro não comentar sobre a possibilidade da falta de afeto ser quantificada em dinheiro, mesmo com o intuito de se realizar uma compensação pela dor sofrida.

Mas sobre ética da virtude, porque, na sentença, além dos argumentos legais, tive que buscar argumentos filosóficos e morais para criar uma ideia de pai virtuoso e, depois disso, cotejá-la com a conduta do pai faltoso no caso concreto. Teria sido muito mais difícil, se não fosse por uma obra chamada “Justiça – o que é fazer a coisa certa”, de Michael Sandel, professor da Universidade de Harvard.

Na instituição de ensino superior ao qual estou vinculado, o Instituto Internacional de Ciências Sociais, pertenço a um grupo de professores que desenvolve uma atividade chamada “Escola do Pensamento”, uma espécie de núcleo docente sobre filosofia do direito. No começo do ano, esta instigante obra foi objeto de estudo em conjunto.

Admito que, há anos, não lia algo excelente sobre a noção de justiça, apresentada de forma erudita e acessível. O autor expõe com rara desenvoltura as qualidades e os defeitos de vários sistemas éticos e de teorias da justiça, por meio da metodologia do estudo de caso, com acentuado destaque para o utilitarismo de Bentham, para a moral categórica de Kant e para a equidade de Rawls.

Segundo o autor, estas três abordagens da justiça falham por tentarem submeter a justiça a uma camisa de força da pura neutralidade, sem que possa emitir juízos morais, já que uma abordagem transforma a justiça e os direitos a uma questão de cálculo e não de princípio, a outra supera esse problema, mas peca pela maximização da liberdade das pessoas e a última submete a justiça à noção de consenso hipotético.

Para o autor, a justiça é invariavelmente crítica, porque é inseparável de concepções divergentes de mundo e de vida. Mas a justiça não é apenas a forma correta de distribuir as coisas. Diz respeito também à forma certa de avaliar as coisas que, segundo o autor, importa em voltar na história uns 2.500 anos e resgatar a noção aristotélica de ética da virtude, a ética que envolve o cultivo social de hábitos bons e preocupados com o bem comum e que julga as coisas segundo seus fins naturais.

Por exemplo, na questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o autor conclui que “não podemos nos basear nas ideias da não discriminação e da liberdade de escolha. Para decidir quem pode qualificar-se para o casamento, devemos raciocinar no sentido do propósito do casamento e das virtudes que ele honra. E isso nos conduz ao contestado terreno moral, no qual não podemos permanecer neutros em relação às concepções divergentes da vida boa” (p.321).

É impossível renunciar aos nossos juízos de valor, quando eles estão aí, diariamente, nas entrelinhas de nossas interações sociais. E também na sentença que mencionei acima: fundamentar um abandono afetivo, de uma relação de pai e filho, na letra fria da lei, num mero conjunto de direitos e obrigações normativamente estabelecidos, alheio à relação ética naturalmente exigível segundo os fins dessa mesma ligação, equivaleria a permanecer neutro ante a vitalidade desse vínculo.

O filósofo não faz a barba e a barba não o filósofo, já dizia um amigo de faculdade. O direito não é a lei e a lei não é direito. A justiça é o fim do direito. O leitor, então, perguntaria como fazer prevalecer a ética da virtude nos dias de hoje.

Recordo-me das palavras de Mika: “Lá de onde eu venho nós sempre fazemos uma reverência quando alguém faz uma pergunta fascinante. E quanto mais profunda for a pergunta, mais profundamente a gente se inclina. (…) Quando você se inclina, você dá a passagem e a gente nunca deve dar passagem para uma resposta (…), porque a resposta é sempre um trecho do caminho que está atrás de você. Só uma pergunta pode apontar o caminho para a frente (in Ei! Tem alguém aí?; Jostein Gaarder; Companhia das Letrinhas; pp.27-28)”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Outros artigos da série:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Parte III: “A crise do Direito” – para ler clique AQUI

Parte IV: “Resgaste da essência do Direito” – para ler clique AQUI

Parte V:””Direito e Filosofia: Cara e Coroa” – para ler clique AQUI