Pensando o direito

Opinião Pública | 01/03/2017 | | IFE CAMPINAS

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Numa dessas tardes de pauta de audiências a pleno vapor, um dos advogados sentou-se indignado e pôs-se a refletir alto o fato, segundo ele, de que os estagiários de hoje não seriam mais propensos a pensar o Direito e, por isso, tornar-se-iam, desde cedo, refratários às disciplinas jurídicas que demandam um esforço especulativo, como a filosofia do direito.

Respondi-lhe, entre um despacho aqui e outro ali, que dava aos estagiários o benefício da dúvida: a meu ver, disse que eles não seriam hostis à filosofia do direito, mas à filosofia do direito que não entendessem e cuja utilidade não reconhecessem.

A natural afinidade entre Direito e Filosofia, concretizada na disciplina de filosofia do direito, não pode nos surpreender. Boa parte da filosofia implica numa praxis e que se converte em agir ético-histórico-social, sobretudo se se cuida de uma filosofia vista como apropriação de nosso esforço por existir e de nosso desejo de ser, sempre para o outro, por meio de obras que testemunhem esse esforço e esse desejo.

O perigo de toda filosofia, principalmente em sua dimensão prática, porque implica num saber-fazer, é o de degenerar na pura sofística interessada e, quando esse perigo ronda o mundo do direito, perturba a tarefa jurídica de assinalar e distribuir o seu de cada um e a coloca em posição de se degenerar em pura arbitrariedade política.

Quem não filosofa pela filosofia, mas se serve da filosofia como meio, é um sofista, já dizia o filósofo. Nessa fecunda relação entre Direito e Filosofia, os criticados estagiários surgem como um aliado: não lhes satisfazem mais subsumir tecnicamente os fatos do caso concreto à fria letra do direito dado e esgotado pela lei previa e definitivamente. Essa visão jurídica é um prato frio que não dá mais para requentar no microondas.

A arte desses estagiários de hoje, nossos profissionais do amanhã, deixa de ser um tecnicismo decisório e aparece como um savoir-faire de uma praxis que, ao invés de aplicar algo já realizado, supõe um constante “estar-em-obra”, uma contínua produção jurisprudente da realidade jurídica, sempre cambiante, em muitos pontos, pela historicidade imanente ao homem e, em outros, maravilhosamente perene, em razão da imutabilidade de nossa natureza.

Etimologicamente, filosofia não é consideração fria, senão amor: amor a uma sabedoria que consiste, no mundo jurídico, num pendor ao justo concreto, no seio da convivência histórico-social e por meio da busca prudencial da solução acertada.

Em outras palavras, por intermédio de uma juris-prudência, ainda mais numa fase civilizatória em que o mundo tornou-se mais juridificado do que possa parecer, a demandar uma maior atenção, por parte dos estagiários de hoje, na correta assinalação e distribuição do seu de cada um.

Dentre os vários problemas que as sociedades enfrentam, a maior parte deles prende-se com questões de justiça: direitos humanos, direitos sociais, intervenções militares da ONU, criminalidade, desobediência civil, cotas raciais, aborto, eutanásia, feminismo, direitos das minorias, proteção ao meio ambiente, educação e saúde entre outros temas candentes.

Cada um desses pontos é uma verdadeira arena de combate intelectual e prática e todos eles comportam uma boa dose de subordinação a um desejo de justiça a ser dimensionado e concretizado historicamente. Por isso, modéstia às favas, pensar o mundo é pensar o direito.

E, para pensá-lo bem, é extremamente importante o conhecimento da realidade do direito concreto, porque o direito autêntico é serviço de vida e ente histórico e social e não produto de uma abstração e de uma vontade utópica de estudiosos, ainda que sem o distanciamento crítico e especulativo destes sobre o sentido e o valor do direito vivido – tarefa que lhes compete – não possa haver justo concreto e esse, no mundo jurídico – o mundo dos estagiários –, é o “direito” que interessa.

A filosofia do direito é Filosofia e é Direito. Donde a filosofia do direito, hoje renovada e desprendida da corrupção de reduzi-la à mera lei, não se constitui numa disciplina à parte, cosmética e decorativa, mas porta uma dimensão irrecusável, constitucional e intrínseca do próprio Direito. Quando o Direito não sufoca sua dimensão especulativa, como ensina o filósofo, ao invés de construir casas de areia, proporciona, pelo menos, bons materiais para se construir uma sólida casa. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 01/03/2017, Página A-2, Opinião.