Otimistas Sem Escrúpulos

Opinião Pública | 21/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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Há algum tempo, tive a rara oportunidade de, na carreira, enfrentar uma turma bem engajada na defesa da posse de uma terra que não lhe pertencia. Foi criado até um concerto conciliatório institucional e judicializado, formado por trinta e cinco membros pertencentes dos poderes públicos das três esferas governamentais, além de advogados, defensores, promotores e representantes dos movimentos sociais.

Um verdadeiro soviete bolchevique pós-moderno, cuja palavra de ordem, a indicar bem o tom de seu propósito, era o de buscar a “justiça social” no caso concreto, nem que, para isso, a conciliação fosse consumada a foice e martelo: uma conciliação coativa ou uma “concilicoação”.

Nesse concerto “concilicoativo”, chamado de “Grupo de Apoio às Ordens de Reintegração de Posse”, constatei que, se o movimento de Maio de 68 foi um fracasso em termos políticos, sua mensagem emancipatória cravou a fundo o corpo social, porque, de lá para cá, a cultura e os valores foram alarmantemente politizados em prol de uma espécie de utopia reformista.

O problema das utopias reformistas, desde os jacobinos, é o de se pretender reconfigurar a convivência política a partir do zero, um verdadeiro mito ilustrado, sem qualquer referência a um rol de bases morais pré-políticas das instituições de uma sociedade, sem o qual uma comunidade não se funda e, pior, não se perpetua.

Para os defensores das utopias reformistas, esses bravos “otimistas sem escrúpulos”, as instituições são completamente falhas em sabedoria e justiça e essa falha não advém da natureza humana de seus membros, mas é intrínseca ao sistema de poder estabelecido. Por isso, eles se opõem a esse sistema e, como paladinos da “justiça social”, emanciparão a antiga queixa dos oprimidos por aquelas instituições.

Ao unir o clamor emancipatório aos pressupostos da dita “justiça social”, nosso jacobino contemporâneo passa a defender os interesses da humanidade, mesmo quando se inclina de forma contundente aos seus propósitos reformistas, já que esses objetivos são tão superiores aos interesses estabelecidos, a redimir toda ação feita em prol daqueles propósitos. É por isso que a violência escarlate, que costuma, na prática, seguir esses discursos róseos, torna-se justificada sem nenhum pudor, quando não é objeto de regozijo coletivo e “virtuoso”.

Nenhuma escatologia histórica liberta. Pelo contrário, costuma atrair os bons espíritos para o erro e, logo, acaba por aliená-los da realidade. O ideario do jacobino contemporâneo, ao projetar um messianismo político redentor das iniquidades sociais, a ser implementado a partir de um novo marco primordial, resulta frívolo e falacioso, porquanto reflete a realidade equivocadamente, ao ignorar os efeitos despersonalizadores que tais utopias provocam nos indivíduos, sobretudo em termos de responsabilidade moral.

Minha sensação, no seio daquele grupo formado, em boa parte, por “otimistas sem escrúpulos”, era a de que se pretendia melhorar a sorte habitacional dos invasores por intermédio de políticas públicas abstratas sem apelar à responsabilidade destes. Toda proposta conciliatória levantada, se fantasiosa, era respondida, por mim, socraticamente, com uma indagação cética. Até o momento em que, esgotadas todas as ideias quiméricas, impus um fim realista àquela pantomima imaginária: com prudência judicial, determinei a expedição do mandado de reintegração de posse, cujo efeito veio a ser sustado, por meio de um obtuso recurso, pela pena de um ministro. Otimista e sem escrúpulos.

Jacobinismos contemporâneos à parte, a grande lição desse episódio profissional foi a de que nossa tarefa consiste em lutar, no presente, por uma constituição relativamente melhor da existência comunitária e fazê-lo de maneira a preservar o bem já obtido, superando os males pendentes e resistindo à irrupção das forças destrutivas. No fundo, ser um otimista. Mas com escrúpulos. Em respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 21/09/2016, Página A-2, Opinião.