Conversar com sujeitos embriagados pelo otimismo é sempre interessante. Eles vivem num outro mundo, composto por sistemas e ideias que são facilmente modificáveis. Tira-se uma peça daqui e a coloca ali. Se for preciso, vez ou outra, convém trocar todas as peças por outras novas, mesmo que nunca tenham sido testadas. Também vale criar novas regras de encaixe, por mais bizarras que pareçam num primeiro olhar e até peças que não sejam encaixáveis entre si.
Para eles, os problemas poíticos, econômicos e sociais são questões de ordem técnica exclusivamente: põem-se na prancheta as variáveis, inventa-se uma nova equação e se ajusta em larga escala. Pronto. Um novo arranjo é o suficiente para que todos possam caminhar rumo à felicidade e, o que é melhor ainda, todos os esforços são colocados num plano abstrato, sem qualquer necessidade de intervenção do dado individual na busca da própria excelência pessoal.
O problema dessa visão de mundo reside justamente no desconhecimento real e prático da condição humana, causado por um rebaixamento antropológico dos indivíduos: todo mundo seria igual e se comportaria da mesma maneira sob idênticas circunstâncias.
Essa petição de princípio, falsa em suas premissas, deve ser temperada por uma dose de ceticismo. Não do genuíno ceticismo grego, o que me faria duvidar, no final, daquilo que já teria escrito há pouco no começo, mas de uma atitude de questionamento para opiniões e crenças que são apresentados como fatos incontestáveis. Eis o bom cético.
Questões como as atuais e reinantes pautas de gênero, descriminalização das drogas, multiculturalismo, casamento entre pessoas do mesmo sexo, abolicionismo penal, justiceiros sociais, entre outras, caminham pelas sendas impecáveis imaginadas por aqueles mesmos otimistas.
Nessas pautas, esses otimistas buscam eliminar as velhas rotinas e mudar as coisas em proveito próprio. Estão tão propensos a consultar uma longa tradição destilada pelo tempo como um exército em debandada está propenso a defender suas posses territoriais. No fundo, esses otimistas almejam estar do lado vitorioso e com o menor esforço pessoal possível.
O bom cético não é uma vela ao vento: evita se influenciar pelas correntes, enfatiza as restrições e os limites, lembra-se da imperfeição e da fragilidade da condição humana e, em suas deliberações, os mortos e os não nascidos têm voz, porque se sente inserido numa cadeia de tradições e numa continuidade histórica, onde o devir é alimentado por uma esperança com os pés no chão.
O bom cético não idolatra os seres humanos, mas perdoa seus defeitos e luta por sua emancipação. Limita nossas ambições na esfera pública, mantém abertas as instituições, dá valor a alguns costumes imemorialmente estabelecidos e se aprimora das falhas verificadas. Não mira algum novo arranjo em que erros nunca serão cometidos, como se dá no caso das ideologias. Não quer uma para viver.
O bom cético reconhece que a sabedoria raramente está contida numa única cabeça e é mais provável que ela não esteja nos esquemas e planos cartesianos dos otimistas de plantão. Tome-se, por exemplo, a crescente tendência de transferência da culpa e do ressentimento. Como diz um amigo, “a culpa é minha e eu a coloco em quem eu quiser”. Quando o infausto atinge-me, arranjo um motivo para buscar uma coletividade ou um ente de razão que o teria provocado e sobre os quais posso lançar a pedra da culpa. A responsabilidade pelo meu erro ou meu fracasso decorre exclusivamente do acerto ou do sucesso alheio e, por isso, não preciso compreendê-lo para saber onde eu faltei.
O conhecimento de que precisamos para entender os problemas humanos não é derivado da experiência de uma única pessoa e não pode ser deduzido aprioristicamente do mundo das ideias ou de uns postulados ideológicos. As tradições sociais importantes não são apenas costumes arbitrários que devem sobreviver ou não no mundo moderno. São formas de conhecimento. Contêm resquícios de muitas tentativas e erros conforme as pessoas tentam ajustar a própria conduta à das demais.
Sugiro aos otimistas embriagados que sigam a sabedoria de Cronos: escutar os mortos e pensar naqueles que ainda não nasceram. Isso começará por relembrá-los de sua natureza transitória num mundo que não lhes pertence, exceto por empréstimo. Eliot dizia ser difícil para o homem suportar tanta realidade. Sem dúvida. Menos para os bons céticos, cujo ceticismo torna essa mesma realidade, apesar dos otimistas embriagados, menos difícil. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 25/04/2018, Página A-2, Opinião.