Originalidade desnecessária

Opinião Pública | 12/09/2018 | | IFE CAMPINAS

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Nossa liberdade constitucional de expressão tem limites? Sim. São os limites da lei e da jurisprudência dos tribunais, gostemos ou não, mesmo que, venhamos e convenhamos, existam condenações nitidamente questionáveis. Independentemente disso, o importante é que os mecanismos habituais do Estado de Direito funcionem.

O ofensor, que tem a liberdade de se expressar e de escolher um patrocínio legal; o ofendido, que tem a liberdade para mover a ação, e o juiz ou tribunal, que têm a liberdade de convicção motivada para julgar assim ou assado.

Lamento dizer que não inventaram nada melhor que isso. Todas as outras alternativas gozam de uma séria anomalia genética: invertem uma série de regras e princípios consolidados há séculos em favor justamente da liberdade de expressão.

Órgão censor, comitê de crítica, departamento de imprensa e propaganda, notificação judicial, seja o nome que for, no fundo, está a se tutelar a censura em nome de uns valores da cabeça de um juiz, de um partido de plantão e mesmo de uma ideologia ou religião. No passado, nada disso deu certo.

Recentemente, a Alemanha resolveu seguir por esse caminho pantanoso. Pretende-se, por via legal, a imposição de multa administrativa, em valor crescente, às redes sociais que veicularem os crimes de notícia falsa ou de incitamento ao ódio que não forem deletadas no prazo assinalado pelo “censor” administrativo. Uma originalidade desnecessária.

Fico a imaginar um exército de funcionários contratados, reunido numa sala padrão “telemarketing”, a vigiar e censurar mais de dois bilhões de mensagens diárias que passeiam pela rede mundial de computadores. Deve ser inútil, caro e paranoico. O problema não está em louvar a estupidez disso tudo.

Mas tão somente o fato de que, nessa linha de raciocínio, a definição dos crimes deixa a esfera judicial e migra para a esfera das redes sociais. Em outras palavras, é o Zuckerberg, e não mais um magistrado, que dirá se uma conduta virtual é tipicamente penal ou não.

É perfeitamente razoável imputar criminalmente uma mensagem que incite o assassinato de minorias ou de opositores políticos ou que calunie, gratuitamente, qualquer pessoa. Contudo, onde fica o lugar da sátira, sempre tomada a partir de preconceitos sociais ou de fatos do imaginário popular?

Onde fica o lugar de uma crítica política ou econômica mais dura e seca, que tangencie um excesso retórico, e esteja repleta de verbalismos, de qualificativos pouco elogiosos e ironias sarcásticas? Onde fica o lugar de uma posição que seja contrária, com fundamentos ponderáveis, ao aborto, ao casamento homoerótico, ao estatuto do desarmamento, à poliafetividade, à manipulação genética e ao multiverso familiar? Onde fica o lugar para dizer que existe um time de futebol sempre aliviado pelo apito amigo? Vira tudo fake news?

São hesitações que jamais deveriam ser respondidas pelos funcionários do Zuckerberg e, muito menos, pelas massas ensandecidas que são dadas a apagar ou a denunciar tudo aquilo de que discordam ou, ainda, por burocratas públicos que tenham decorado a cartilha das “verdades oficiais” do governo a que pertencem. Em nome da “tolerância”, por óbvio.

Nessa linha, a mera discordância, exemplificada nas perguntas anteriores, seria um discurso de ódio e a exclusão da mensagem indesejada, da rede social, seria uma forma bem escamoteada de censura. Por isso, seja em crimes manifestos ou em zonas cinzentas, em que a liberdade de expressão e seu abuso ou desvio flertam entre si, é perante os juízes e os tribunais que tais excessos devem ser conhecidos e, eventualmente, punidos.

Resulta um tanto triste que a opinião pública e a universidade não estejam lá muito dispostos a defender a liberdade de expressão, quando seu desenho sai do quadrado dos padrões politicamente corretos. Até já inventaram curiosas expressões para não machucar as suscetibilidades infantis de muitos adultos, que se sentem “incomodados” diante daquelas hesitações: safe space ou trigger warning.

Seria ridículo se não fosse trágico. Outro dia, um desses ressentidos pediu que retirasse uma imagem, composta por minha face e o título de um artigo, de minha linha do tempo na rede social. Sugeri que fosse procurar um psicólogo e deixei um recado bem orwelliano, segundo o qual, “se a liberdade significa algo, significa também o direito a dizer aos demais, de forma racional e ponderada, aquilo que eles não querem ouvir”.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 12/09/2018, Página A-2, Opinião.