O que o dinheiro não compra?

Opinião Pública | 02/12/2015 | | IFE CAMPINAS

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Mas o mercado gosta de inovar. Para todos os sentidos, inclusive para aspectos da vida tradicionalmente regidos por outras normas. Veja-se a indústria farmacêutica. Ciosa do grau crescentemente hipocondríaco dos adultos, já que uma certa concepção de medicina tem um remédio para tudo – desde dor de cabeça, passando por dor de corno e até dor de cotovelo – promete-se alívio imediato. E, em muitos casos, tem-se a impressão de que o problema da saúde não gira em torno do câncer: parece que os machos da espécie sofrem de uma terrível epidemia de disfunção erétil…

Preocupa-me o fato de estarmos caminhando para uma sociedade em que tudo tem uma etiqueta de preço. Há muitos motivos. Cito dois: a desigualdade e a corrupção.

No primeiro caso, numa sociedade em que qualquer coisa pode ser comprada ou vendida, o custo de vida sobe e a sobrevivência fica mais difícil para aqueles que dispõem de poucos recursos. Quanto mais o dinheiro pode comprar, num perverso exercício de lógica formal, mais importante é a sua afluência e, logo, mais preciso faturá-lo.

Se a única vantagem dessa afluência fosse resumida na capacidade de comprar um iate de 115 pés, um carro esportivo italiano de 800 cavalos, uma ilha particular na Costa Verde, uma viagem à ISS ou férias anuais na Europa, a desigualdade de renda não teria muita importância, porque boa parte das pessoas consegue viver sem tudo isso.

Contudo, na medida em que o dinheiro passa a comprar cada vez mais, como influência política, plano de saúde, segurança privada, casa em condomínio, acesso a escolas de elite e à cultura erudita e intercâmbios em faculdades no Exterior, a questão da desigualdade de renda adquire uma outra dimensão preocupante.

Quando todas as coisas necessárias e úteis podem ser compradas e vendidas, ter dinheiro passa a fazer uma diferença estratosférica. E isso é mortificante para as famílias de classes baixa e média, pois a mercantilização da vida agravou a desigualdade social e, se a moeda já tinha um natural reinado no mundo econômico, ela assumiu uma aura absolutista no mundo da vida.

O segundo caso diz respeito à tendência corrosiva do mercado. Ele pode ser corrompido por meio dessa prática de se fixar um preço para as coisas necessárias e úteis da vida, já que ele não se limita distribuir bens. O mercado também promove certas atitudes em relação aos bens vendidos ou comprados: por exemplo, os produtos ecologicamente corretos.

Por isso, não acredito que o mercado seja inerte. O mercado influencia e deixa sua marca que, muitas vezes, pode ser a da corrupção: quando os valores do mercado falam mais alto, muitos princípios que a ele não se vinculam, mas que devem ser respeitados, como a probidade administrativa, são descartados.

Desigualdade e corrupção são os efeitos de uma sociedade em que tudo está à venda, do começo ao fim da vida: desde a comercialização de óvulos e de esperma de grife para reprodução assistida até a compra de apólice de seguro de uma pessoa idosa. Ou mesmo uma pacote de viagem para a morte numa clínica de eutanásia nos Alpes suíços.

Precisamos repensar as circunstâncias em que o mercado atende ao bem comum e aquelas em que ele é um estranho no ninho. Rever o valor que atribuímos aos bens sociais que prezamos. Examinar o papel e o alcance daquelas práticas sociais que merecem permanecer alheias à ação do mercado.

É um longo e delicado debate moral, mas, pelo menos, poderíamos ter mais consciência do preço que pagamos por viver numa sociedade em que tudo está à venda. Talvez, esse Natal seja uma boa ocasião de se refletir sobre isso. Antes que nossa sociedade, segundo Calvin, meu filósofo de cabeceira, “entre em liquidação”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 02/12/2015, Página A-2, Opinião.