O ofício do juiz: o justo concreto

Direito | 13/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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SupremoTribunalFederal

É sobretudo com fundamento na justiça que os homens são considerados bons[1].

(CÍCERO)

     A justiça ocupa, na vida prática, o papel que, no campo teórico, desempenha a verdade, pois a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é nos sistemas de pensamento.

(JOHN RAWLS, 1971:13)

O ideal para os quadros do pensamento jurídico é que eles quase se confundam com a realidade jurídica. Porque o Direito está nas coisas.

(FERREIRA DA CUNHA, 2001:121)

 

 RESUMO

Somos herdeiros da filosofia grega e sua capacidade de inquietação acerca de uma aceitação acrítica da vida, no afã de buscar as respostas para uma vida racionalmente significativa, plena de sentido e em harmonia com o mundo, alcançou o problema do justo.  De lá para cá, ao longo da história, sempre buscamos compreender e criticar o modus vivendi de cada época e a ideia de justiça nele havida: todos os ramos do saber, como a literatura, a política e a filosofia, de certa forma, conspiram para a busca de respostas, que estejam para além do senso comum, para aqueles temas e, nesse sentido, fornecem muitas bases para a constituição de uma episteme da justiça em cada período histórico. No seio desse debate sobre a justiça, refletem-se as divisões essenciais do espirito humano: aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do papel social e refutação deste. Temos uma certa intuição de que a justiça deve corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social, porque já percebemos, desde a polis grega, que um justo natural parece anteceder um justo legal, servindo-lhe de limite ético. Nesse contexto, resta saber quais os reflexos do debate acerca do justo e da relação entre o justo natural e o justo legal no ofício do magistrado em sua tarefa de assinalação e de distribuição do direito no caso concreto, entendido como a virtude da vontade do juiz e como objeto da justiça, cuja consequência imediata importa numa certa recusa da visão moderna de justiça, que a vislumbra como uma forma a priori do Direito.

Palavras-Chave: Direito, Justiça, Ofício do Juiz, Justo Concreto.

 

INTRODUÇÃO

Dentre os vários problemas que as sociedades enfrentam, boa parte deles prende-se com a questão da justiça: direitos humanos, direitos sociais, intervenções militares da ONU, criminalidade, desobediência civil, cotas raciais, aborto, eutanásia, feminismo, direitos das minorias, proteção ao meio ambiente, educação e saúde entre outros temas candentes. Cada um desses pontos é uma verdadeira arena de combate intelectual e prática e todos eles comportam uma boa dose de subordinação a um desejo de justiça. Kant (1945:245) já dizia que “a maior e mais frequente miséria dos homens procede mais da injustiça entre os homens do que da má fortuna”.

Fernández aponta que

 

se o fundamento da ética social é a dignidade da pessoa da qual derivam os direitos fundamentais do homem, o centro é a justiça, pois a justiça é a virtude que protege a dignidade do homem e a que regula os direitos e deveres dos cidadãos. Por isso, a proteção da dignidade da pessoa e a defesa dos direitos humanos demandam uma normativa justa que as defenda. Por isso, como ensina João Paulo II, “o amor pelo homem se concretiza na promoção da justiça (Centesimus annus, 58). (...) Por sua parte, Platão relaciona a justiça à saúde e a injustiça à enfermidade: “A justiça e a injustiça são exatamente parecidas às coisas sãs e malsãs, o que aquelas são no corpo, são-no elas para a alma (República, IV, 18, 444c)”. Por consequência, uma sociedade sã é aquela regida pela justiça, ao passo que a sociedade injusta seria uma sociedade enferma. A justiça é, pois, uma noção fundamental da existência do homem. Constitui, ao lado da verdade e do bem, a trilogia dos grandes conceitos humanos. Pelo contrário, a injustiça guarda relação com a mentira e o mal. Por conseguinte, a otimização do homem está na direção da verdade, do bem e da justiça, assim como sua existência perde sentido se toma o rumo do erro, do mal e da injustiça.

 

O ofício do profissional do direito, mas, principalmente, o do juiz, tem uma íntima ligação com a justiça. Está relacionado a um saber ser justo, pois, muito embora não deva realizar sozinho a obra da justiça, deve, para ser fiel a seu ofício, ser pessoalmente justo, no sentido de amante da justiça. Do contrário, dará ouvido à injustiça e terá se corrompido. Tomás de Aquino (1976:74) dizia que “a corrupção da justiça tem duas causas: a falsa prudência do sábio e a violência do poderoso[2].

A missão do magistrado está em discernir e assinalar o seu de cada um para que seja dado a seu titular. Considerar essa peculiar e típica relação do magistrado com a justiça é importante para perceber que a virtude específica de seu ofício não é a justiça, mas, antes, a prudência[3], porque sua missão está em discernir e assinalar, atitudes próprias da órbita prudencial, para depois dar ao seu titular. Assim, por excelência, o magistrado não é o justo, mas o jurisprudente.

É próprio do profissional do direito uma arte ou ciência prática. Todo o sistema filosófico do direito deve ser visto da perspectiva do juiz, porém nunca é demais insistir nisso ao entrar na análise da justiça, porque, atualmente, é muito comum transpor para a filosofia jurídica a ideia de justiça que a filosofia social e a retórica política costumam utilizar.

É uma ideia que tem sua importância no campo próprio, mas, na órbita jurídica, acaba por provocar uma noção de justiça magnificada, sendo, por isso, necessário um certo trabalho de desmistificação. Os fins de um ideal de justiça podem orientar, como princípio interpretativo, alguns aspectos da função do profissional do direito, mas não condicionar a justiça desse profissional, pois sua função é mais modesta, muito mais prática e tangível: a justiça do caso concreto.

O ofício do magistrado atende a uma necessidade social bem específica, qual seja, a de criação de uma ordem justa: uma ordem em que cada homem e cada instituição tenha o seu, aquilo que lhe pertence e cabe. Dado que a vida social é dinâmica e o seu de cada um pode estar em situação de interferência por uma ação ou omissão alheia, gera-se um dinamismo orientado para estabelecer ou restabelecer a situação devida, que podemos descrever com uma fórmula de comprovada expressividade descrita no Digesto: suum cuique tribuere[4], dar a cada um o seu.

Se se classifica de necessidade social o estabelecimento da situação devida – cada um ter o seu – é porque essa situação constitui uma ordem, uma harmonia, uma proporção social em que cada coisa está na correta relação com seu titular: uma ordem social justa. Qualquer ruptura ou alteração dessa correta relação produz uma anomalia ou uma desordem social: uma ordem social injusta.

Essa harmonia é uma exigência da pessoa humana, por sua qualidade de ser que tem coisas verdadeiramente suas, e, ao mesmo tempo, da sociedade, pois, uma vez preservada aquela harmonia, conserva-se o grupamento social; corrompida, provoca sua destruição. A ordem justa não é um simples fato. Pertence à categoria do dever-ser: deve ser dado a cada um o seu.

 

DESENVOLVIMENTO

 

O Digesto expressa “o dar a cada um o seu” sob a fórmula de praeceptum iuris ou norma primordial do direito, verdadeira Grundnorm ou norma fundamental da ordem jurídica, primeiro princípio da razão prática[5] no que atine a esta ordem. E é um praeceptum iuris (não praeceptum iustitiae), porque, de fato, o imperativo do dever é a expressão da obrigatoriedade do direito, de modo que essa harmonia é um dever-ser em razão do debitum inerente ao direito.

Assim, (ARISTÓTELES, 2005:5) a justiça é a ordem da comunidade política[6]. Uma harmonia dos homens que se relacionam de um modo tal que alcançam sua própria perfeição possível e, como resultado, a perfeição possível do conjunto da cidade. Se não há justiça, as relações interpessoais desaparecem e passa a prevalecer o arbítrio do mais forte ou do mais poderoso. Se há justiça e o direito baseia-se no discernimento do justo, supera-se a barbárie. A primeira forma de cultura de uma comunidade é o direito.

Esse lugar de relevo atribuído à justiça no seio social também é conferido ao homem individualmente considerado, no âmbito da ordenação de si próprio: a justiça, além de bonum alteris (o bem do outro), reclama o indivíduo em seu centro anímico, isto é, a preponderância de sua dimensão espiritual, que desencadeia e dinamiza o ato de justiça, fundado num dever-ser que, por sua vez, sempre implica um fato correspondente, o cumprimento desse dever-ser. Para isso se orienta a própria ideia de dever: o que se deve, faz-se.

E, por isso, Pieper (1960:98-99) conclui que “já que o espírito, na sua energia expansiva, é o detentor direto da força que vai dinamizar o ato de justiça; já que a justiça – diz São Tomás[7] – habita no compartimento mais nobre da alma, e o mandamento de ser justo, dado ao homem, atende ao mais íntimo de seu querer espiritual, compreende-se que a justiça ocupe o primeiro lugar entre as outras excelências humanas”.

Naquele universo interior de ordenação de si próprio, orbitam as virtudes, como a da justiça, que não estão no nível do dever-ser, mas no de seu cumprimento. O homem não é virtuoso porque tem deveres e sim porque os cumpre, proporcionando-lhe o bem (bonum hominis). As virtudes são hábitos das potências humanas que propendem para o cumprimento do dever. Elas próprias não são juízos deontológicos – juízos de dever –, mas disposições do indivíduo para agir de acordo com os juízos deontológicos.

Por conseguinte, as virtudes não pertencem ao dever-ser (sollen), mas ao ser (sein), embora relacionadas a um dever-ser. Assim, visto que deve ser dado a cada um o seu e que isso constitui um bem social (bonum alteris) e um bem individual (bonum hominis), a correta disposição do homem para cumprir com o dever-ser jurídico é uma virtude: a virtude da justiça. É a virtude cujo ato – a ação justa – consiste em dar a cada um o seu. Em outras palavras, como virtude, isto é, como hábito operativo, a justiça pertence ao mundo do ser; contudo, relaciona-se com um dever-ser bem específico, o de dar a cada um o seu, a partir do qual uma comunidade é capaz de construir uma ordem social justa.

Hervada (2008:65-66) aponta, por outro lado, que

 

entretanto, três coisas são opostas à verdadeira concepção da justiça. Por um lado, entender a justiça como dever; a justiça, como virtude que é, pertence ao sein, pois é uma disposição entitativa da vontade. É virtude por relação com um sollen ou dever-ser, a norma primordial do direito; porém ela mesma não é esse dever-ser, não é um juízo deontológico. Por outro lado, não se pode confundir a justiça com uma dimensão da realidade, com uma ordem ou harmonia. Essa terminologia, que possui antigos precedentes e se baseia em um uso frequente, tem o inconveniente de introduzir grandes confusões em matéria de justiça e de direito. A justiça não é a ordem justa, mas virtude de tender estabelecer a ordem justa. Por último e em terceiro lugar, a justiça não pertence ao intelecto: não é um juízo ou uma ideia. A justiça pertence à vontade e está relacionada ao querer. Não podem, então, ser consideradas adequadas as concepções que dão à justiça um estatuto intelectual, em vez de um estatuto volitivo (grifos nossos).

 Analisada a justiça como virtude em termos gerais, passamos à sua definição. Embora tenham sido dadas várias definições da justiça, há uma comum e praticamente universal. É a mais simples, a mais antiga e a mais divulgada: a justiça consiste em dar a cada um o seu. A compreensão da norma fundamental da ordem jurídica e a correspondente compreensão de que a disposição para dar a cada um o seu constitui um aspecto da ordem básica da pessoa humana em relação ao outro são tão antigas quanto a própria humanidade. De fato, o praeceptum iuris de referência é uma aplicação imediata dos primeiros princípios da razão prática, de conhecimento universal e, logo, igualmente universal é o conhecimento dos efeitos éticos da correspondente disposição para cumprir aquela norma fundamental.

Com o antecedente de themis[8], a palavra grega que primeiro designou a justiça foi dike, que inicialmente significou tanto a ação judicial ou o processo como a sentença do juiz, para, depois, passar a denominar o direito e a justiça[9]. Enquanto o direito e a justiça constituíam a medula da ordem social, dike foi usada pelos primeiros filósofos gregos – transpondo para o mundo em geral as categorias sociais – para designar a ordem cósmica (Heráclito e Anaximandro), a ordem dos seres (Parmênides), a ordem social da polis (Aristóteles) e mesmo a ordem pessoal (a bondade moral).

Com isso, dike ou justiça adquiriu um sentido objetivo, a ordem ou a harmonia. A virtude da justiça foi denominada a partir de um derivado de dikaios – justo – a saber, a expressão dikaiosyne (a virtude do justo), no sentido da vontade particular – o juiz que profere a sentença conforme o direito, o comerciante que cobra o preço justo e assim por diante – e no sentido geral e onicompreensivo, que, comum a outras línguas, não perdeu até hoje: a justiça como a soma das virtudes do homem, de modo que o homem justo equivale ao homem pleno de virtudes.

Compreende-se como foi possível realizar a passagem do homem justo – no sentido particular de dar a cada um o seu – ao homem virtuoso, porque ser justo sempre equivaleu a cumprir as leis e a virtude é o cumprimento das leis morais. Basta atentar para o fato de que, na tradição israelita, era reputado como justo o homem que cumpria a aliança com Deus traduzida no conjunto de preceitos morais da Lei de Moisés. O evangelista Lucas[10] dá conta de que “nos tempos de Herodes, rei da Judéia, houve um sacerdote por nome Zacarias, da classe de Abias; sua mulher, descendente de Aarão, chamava-se Isabel. Ambos eram justos diante de Deus e observavam irrepreensivelmente todos os mandamentos e preceitos do Senhor”.

Logo, a dikaiosyne adquiriu um duplo sentido na linguagem: a justiça como virtude particular – o governante justo, o comerciante justo e o juiz justo – e a justiça como virtude total. Antes de Aristóteles, essa duplicidade não causou uma dupla noção de justiça, mas as duas entremeavam-se. O testemunho mais antigo do conceito de justiça é o do poeta Simônides (556 a.C. – 468 a.C.), conforme registra Platão (2008:10). O justo, segundo o poeta grego, consiste em “dar a cada um o que lhe é devido[11]”. É um relato mais exato que o de outros filósofos, como, por exemplo, o de Sócrates, tal como nos transmitiu Xenofonte (2007:121).

Para Sócrates, no diálogo com o sofista Hípias[12], o justo é o legal, o respeito e a obediência às leis, tanto as escritas como as não-escritas, isto é, tanto as leis humanas quanto às divinas. O equívoco socrático está em limitar excessivamente o justo a um tipo, o justo legal. Uma descrição singular da justiça, embora seja uma variação dentro da tradicional, é a proposta por Platão (2008:186) em A República. Ele reconhece a justiça como a virtude de dar a cada um o seu, pois a menciona expressamente[13], embora não fixe sua atenção nela.

Sua ideia de justiça (PLATÃO, 2008:187-188) é fundada na harmonia da polis, a ordem entre as partes ou classes de cidadãos – magistrados, guerreiros e artesãos – que se alcança somente quando cada um dos membros da polis se dedica a sua própria função[14]. Por sua vez (PLATÃO, 2008:200-203), a virtude pessoal – à semelhança do que ocorre na polis – é a harmonia do homem, quando cada uma das partes de sua alma – o irascível, o concupiscível e o racional – faz sua parte: o racional governa o irascível e ambos submetem o concupiscível[15]. Logo, a justiça não se refere à ação exterior do homem (PLATÃO, 2008:204-205), mas à ação interior sobre si mesmo e às coisas que há nele[16]. Sua fórmula (PLATÃO, 2008:185) é esta: “fazer a cada um o seu[17]”.

A fórmula platônica não teve seguidores. Nem poderia, porque a justiça, em sentido próprio, refere-se à ação exterior do homem – algo que lhe é próprio – e não à ação interior, que corresponde à uma certa ordem moral interior do homem, pautada no equilíbrio virtuoso das potências e apetites. A justiça, em sentido próprio, também não consiste no equilíbrio da ordem social, pois a justiça não se refere às estruturas justas ou às condutas justas dos cidadãos. Um juiz não é justo, só porque exerce sua jurisdição ao invés de legislar, tarefa do parlamentar, mas porque suas sentenças estão de acordo com o direito. Platão parece não ter captado bem as nuances do mundo do direito e, ademais, seu conceito de justiça padece de uma certa confusão entre justiça e prudência.

Quando Aristóteles entra em cena, provoca um giro copernicano acerca do ponto aqui tratado. Ele analisa as concepções anteriores e o legado de seus antecessores e culmina com uma linha de investigação teórica excepcional, a ponto de sua especulação sobre o conceito do justo vir a estabelecer as bases para toda a filosofia do direito, definindo, de modo perene, a nosso ver, as noções de justiça e de direito, em virtude de uma série de aspectos, nuances e distinções nas quais essas noções foram fundamentadas. A especulação aristotélica que interessa ao conceito de justiça (HERVADA, 2008:71-73) pode ser dividida em cinco partes.

Em primeiro lugar, para o filósofo, a justiça é uma virtude e, como tal, trata-se de uma disposição ou hábito de praticar o justo. Em segundo lugar, para o filósofo, existem duas classes de justiça: a justiça total e a justiça parcial. A justiça total é a virtude de cumprir as leis, chamada séculos mais tarde de justiça legal. Dado que as leis comandam todas as virtudes (mais ou menos perfeitamente, conforme as leis sejam boas ou ruins), a justiça total equivaleria à soma das virtudes, enquanto se refere ao outro, isto é, não ao bem próprio, mas ao bem alheio, de sorte que, analisada absolutamente, é virtude e, vista sob o ângulo do outro, é justiça. No seio da justiça total, emerge, pois, um atributo caro à noção de justiça: a alteridade, intersubjetividade ou bilateralidade.

Em terceiro lugar, está a justiça parcial (ou justiça particular), que não corresponde à virtude total, mas à uma parcela desta. Consiste na justa distribuição dos bens e no correto regulamento dos tipos contratuais (como os contratos do direito privado e os acordos entre os particulares) e dos delitos (tipos penais). Essa justiça é justiça em sentido próprio e estrito, a justiça dos juízes e corresponde uma das quatro virtudes cardeais.

Em quarto lugar, o filósofo distingue com clareza a justiça (dikaiosyne) de o justo (tò dikaion), sem confundi-los. Nesse sentido, a justiça (dikaiosyne) é a virtude ou o hábito, enquanto o justo (tò dikaion) é aquilo que se realiza ou pratica pelo homem em função da virtude, ou seja, o objeto da justiça ou o justo concreto. O justo (tò dikaion) é o que os jurisconsultos romanos chamarão mais tarde de ius – o direito – ao descrever a justiça. O justo não tem, então, um sentido vago ou lacônico, intercambiável com a justiça, mas um sentido preciso: o próprio de cada um, ou seja, o seu. É aquela coisa que a justiça dá ou atribui a um sujeito (ou a um conjunto de sujeitos), aquilo que lhe deve ser proporcionado.

Em quinto lugar, o filósofo, na obra Retórica, define a justiça, em sentido estrito, como sendo (ARISTÓTELES, 2011:81) “a virtude pela qual todos possuem o que lhes pertence de acordo com a lei; seu oposto é a injustiça, por meio da qual as pessoas possuem o que pertence a outros, contrariamente à lei[18]”. Essa definição, embora imperfeita (porque a conceitua pelo seu efeito e não pelo seu ato), é extremamente expressiva. O “que lhes pertence” é o equivalente a “o seu” – o de si mesmo – por isso, o efeito da justiça é entendido como ter cada um o seu.

Ao relacionar essa definição com as primeiras linhas[19] do livro V de Ética a Nicômaco, nas quais ele denomina de justiça a realização do justo – tò dikaion – que é o direito, a definição aristotélica vem a ser um cristalino precedente da definição romana[20]: ter cada um seu direito, pois o próprio conforme à lei é o justo e o justo é o direito de cada um.

Para Aristóteles, o justo particular (a justiça em sentido estrito) pode ser distributivo ou corretivo, conforme se refira às distribuições ou às formas de acordo respectivamente. No que toca ao primeiro, descreve-o como proporcional ou igual ao mérito – axia[21]–entendido como o título que se exige em justiça, um direito a algo, o qual é devido à pessoa segundo sua relação com o regime da polis, ou seja, sua condição de cidadão. Alguns séculos depois, com Cícero, aparece a expressão “dar a cada um o seu”, a qual se incorporou definitivamente à noção comum da justiça.

A melhor definição de justiça – porque dotada de simplicidade e de precisão – é a do jurisconsulto Ulpiano, registrada no Digesto[22]: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. A justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o seu direito. Com Ulpiano, além da fórmula da justiça ganhar maior acuidade conceitual, ela adquire uma perfeita dimensão jurídica, pois ressalta que o seu de cada um é o seu direito. Isso estava contido em “o próprio” e “o justo” de Aristóteles, bem como na “axia”, que é algo devido em justiça, mas, com Ulpiano, torna-se explícito.

A formula ulpiana manifesta, sem precedentes, um ponto essencial da teoria da justiça: a primazia do direito sobre a justiça ou, em outras palavras, que a justiça está em função do direito e não o contrário. A justiça pressupõe o direito. Se a justiça consiste em dar a cada um o seu direito, para que ocorra a ação justa, é preciso que exista esse direito, em relação ao qual se é justo. Por isso, alguns séculos depois, Isidoro de Sevilha (2009:61) escreverá que “declara-se justo, porque respeita os direitos e vive de acordo com a lei[23]”.

A ideia de que a justa ação está em dar a cada um o seu foi absorvida e prestigiada pela literatura teológica posterior, com se pode depreender na Patrística, com Agostinho[24](2011:308), Ambrósio[25](2002:36) e Isidoro de Sevilha[26](2009:120). Contudo, ocorreu um fenômeno que chegou até Tomás de Aquino.  Embora tais padres da Igreja falem de justiça particular, definida no contexto das virtudes cardeais, neles se enfraquece a nota de juridicidade – relações entre os homens – para se reforçar as relações de amor com Deus e inclusive consigo mesmo[27].

A justiça, na ótica patrística e na Alta Idade Média, adquire um sentido lato que lembra a justiça geral, retirando sua nota juridicizante e provocando sua moralização. Em suma, deixa de ser a justiça suposta para o mundo do direito. A volta à justiça do magistrado é obra de Tomás de Aquino e representa um retorno aos jurisconsultos romanos, cuja definição abre seu tratado da justiça, e a Aristóteles, o qual segue fielmente ao longo do citado tratado. Esta volta, segundo pensamos, possibilita a construção de uma noção de justiça de índole perpétua.

Para Tomás de Aquino, a justiça é uma virtude essencialmente ad alterum, isto é, refere-se sempre ao outro, visto que a justiça encerra igualdade e nada é igual a si mesmo, mas a outro. Portanto, a ordem interior do homem – a justiça segundo Platão – só pode ser chamada justiça por metáfora[28]. Tomás de Aquino distingue entre justiça geral e justiça particular: a primeira orienta-se para o bem comum e, como orientação ao bem comum, naturalmente pertence à lei, denominada de justiça legal. Essa justiça, que conduz ao bem comum os atos das demais virtudes, é conforme sua essência, uma virtude especial e apenas por sua virtualidade pode ser chamada de justiça geral[29]. Não se identifica, então, em essência, com toda virtude da justiça.

Além da justiça geral, existe a justiça particular, a qual orienta o homem sobre as coisas que se referem à outra pessoa singular e cuja matéria são as ações e coisas exteriores, enquanto por elas um homem se coordena com outro[30]. Se a justiça geral mede as relações da pessoa com a comunidade (por isso, orienta para o sentido de bem comum), a justiça particular regula as relações com a pessoa singular, quer se trate de relações entre a comunidade e o indivíduo (justiça distributiva), quer se trate de relações entre pessoas singulares (justiça comutativa)[31].

Tomás de Aquino endossa a definição do jurisconsulto Ulpiano, com uma ressalva, embora a definição romana seja a mais conhecida e generalizada. A fórmula romana define a justiça por seu ato, porque a vontade constante e perpétua quer dizer o ato de vontade[32]. Para Tomás de Aquino, melhor seria conceituá-la por meio do hábito que funda a virtude, pois proporcionaria firmeza ao ato e é mais consentâneo com a definição de uma virtude.

Assim, ele substitui o ato pelo hábito e reformula a definição, a qual resta assim caracterizada: “A justiça é o hábito segundo o qual alguém, com constante e perpétua vontade, dá a cada qual seu direito[33]”. Nesse ponto, (HERVADA, 2008:77) remata que

na Suma, Tomás de Aquino acrescenta que essa definição é quase igual à que se deduz das palavras de Aristóteles na Ethica Nicomachea, V, 5, 1134a: a justiça é o hábito ou virtude pelo qual se declara do justo que pratica deliberadamente o justo. O mais significativo dessas palavras do Aquinate é, no que aqui interessa, que o ius ou o direito vem a ser o mesmo que o tò dikaion ou o justo.

 

Com efeito, a justiça, na definição tomista, é considerada em função do direito. É a virtude de cumprir e realizar o direito, o qual se torna o objeto da justiça, como aquilo para cuja satisfação se orienta a ação justa. E, além disso, é uma definição jurídica, própria do mundo do direito. Com Tomás de Aquino, encerra-se o ciclo evolutivo da definição de justiça, de sorte que, até o final do século XVIII, não há outras definições relevantes de justiça. A Escola Espanhola do Direito Natural (Vitória, Soto, Molina e Báñez) e os neoescolásticos modernos oferecem ricas discussões detalhadas sobre o conceito ulpiano de justiça, mas não inovam substancialmente.

Assim, a definição ulpiana de justiça não procede de nenhuma teorização desta ou daquela corrente filosófica – ela pôde ser observada em Aristóteles, nos estóicos e nos escolásticos – nem é o que poderia se chamar de uma noção erudita ou sofisticada: é uma definição empírica, bem ao gosto da civilização romana, com o mínimo de palavras possível, tomadas a partir de um dado concreto, a saber, o de que as coisas estão distribuídas e é preciso dar a cada um o seu. Cumprir esse dever é uma virtude, a virtude de dar a cada um o seu.

A definição ulpiana de justiça é a descrição de um fato, isto é, a existência de um hábito do homem – disposição constante e firme – relacionado a um dever ou preceito – dar a cada um o seu – que concerne a um fato social: a repartição de bens e encargos. Ademais, o fato de cada um ter o seu constitui um bem, uma parte da ordem social e, por isso, esse hábito é bom. Nada mais distante do que uma teoria a descrição ulpiana de justiça.

Se a justiça se reduzisse ao igualitarismo, de modo que se reputasse como injustiça qualquer diferença havida no seio social, a repartição ainda continuaria existindo e com ela a necessidade de dar a cada um o seu, pois a repartição igualitária levaria cada qual a ter alguns bens de igual valor. A justiça de dar a cada um o seu é uma realidade, que não desapareceria nem mesmo numa sociedade totalmente coletivizada – tudo de todos e nada de ninguém – na qual, por não haver repartição de coisas, nem sequer de funções, não existiria o seu de cada um, até o momento da repartição da alimentação, da vestimenta e do trabalho: nesses casos, existiria necessariamente alguma repartição, mesmo em sociedades coletivizadas, porque a repartição, por menor que seja a dimensão das coisas de uma sociedade, é algo conatural ao homem.

A definição ulpiana não restou infensa ao pensamento filosófico. A crítica mais difundida é a de seu pretenso caráter formal. Dizer “o seu” é uma expressão formalista, pois não indica qualquer conteúdo e, além disso, não oferece padrões para a determinação do seu de cada um. Assim, a noção não passaria de uma fórmula vazia. A crítica origina-se de uma má compreensão: as noções abstratas – entre elas os universais – são confundidas, muitas vezes, com os conceitos formais no melhor estilo kantiano. Ademais, esquece-se de que, na fórmula, “o seu” é sinônimo de “seu direito”.

Pode-se afirmar que, em determinado sentido, um conceito formal, como forma a priori não procedente da dimensão empírica, padece de conteúdo[34]. Seria um puro ente de razão, incapaz de expressar propriamente qualquer ente existente. Porém uma noção abstrata – e, mais concretamente, um universal – não é uma forma a priori. Pelo contrário, para elaborá-la a mente age a posteriori, partindo da experiência. Por isso, uma noção abstrata contém o real, que é a base do conceito buscado. E um universal contém toda a realidade captada pela razão a partir das experiências particulares. Por exemplo, quando se afirma que o homem é um animal racional, homem é um conceito abstrato, mas contém todos e cada um dos homens reais existentes.

Assim, na fórmula ulpiana, “o seu” é um conceito abstrato universal, que expressa toda coisa que pertence a alguém como sua. Não é uma noção formal, mas abstrata e a posteriori, por isso, tem um conteúdo universal: tudo aquilo que se declara realmente como “o seu” de um sujeito, como, por exemplo, sua vida, sua honra, seu cargo, seu carro ou seu salário. “O seu” não é uma formalidade, mas uma expressão abstrata tomada a partir da observação da essência que se esconde por detrás da aparência de uma realidade. São todas as coisas que, na realidade, são “suas” de um sujeito.

A fórmula ulpiana não indica como determinar em cada caso concreto quais coisas pertencem a cada homem. E isso tem uma certa lógica, pois essa determinação não pertence à justiça, a qual se orienta para a satisfação do direito, mas sim a um momento precedente: a constituição do direito, ou seja, a constituição de uma coisa como sua. E não é questão de vontade – à qual a justiça é inerente – mas de razão; não é coisa que pertença à justiça e sim à prudência do direito (jurisprudência) ou à prudência legislativa.

Por outro ângulo, “o seu” da fórmula ulpiana é sinônimo de “seu direito” e os direitos de cada um não são formalidades, mas coisas reais existentes. O seu é tão preciso e concreto como o direito de cada um. Como se sabe que algo é de um sujeito? Pelo título de aquisição ou posse do direito, como, por exemplo, uma escritura de compra e venda ou uma certidão de nascimento. Em suma, a definição comum da justiça não é uma noção formal a priori e sim uma noção abstrata a posteriori, além de portadora de um conteúdo universal.

Entretanto, houve quem divergisse disso. Kant e Schopenhauer classificaram de absurda a fórmula clássica da justiça. Para Kant (2008:96), “se não podes evitar o anterior, entra com outros em uma sociedade na qual possa ser garantido a cada um o seu. Se a fórmula fosse traduzida por dá a cada um o seu, o resultado seria um tanto absurdo, porque não se pode dar a ninguém o que já tem”.

Schopenhauer (2010:150), por sua vez, assevera que “outra prova do caráter negativo que, apesar da aparência, tem a justiça, é a definição trivial ‘dar a cada um o que cabe a ele’. Se isso é seu, não há necessidade de ser dado a ele. O sentido é, então, ‘não tomar de ninguém o seu’”.

Ambos, a nosso ver, confundem o ato de justiça com o ato de constituição do direito. Não se trata de fazer que uma coisa passe ao domínio de um sujeito para que seja sua, mas de que, dado que essa coisa já é sua (por força de uma norma jurídica anterior), o sujeito não sofra interferência em seu pacífico uso e gozo. Não se cuida, então, de dar uma coisa a um sujeito para que se transforme em sua – não se trata de constituir o direito – mas de devolver a ele essa coisa, porque teve seu exercício turbado de alguma forma. Esse segundo sentido (devolver ou fazer respeitar) é o que tem o verbo dar na fórmula ulpiana. Trata-se de dar “o seu” a quem de fato não o tem ou pode não tê-lo, embora o possua por direito.

Kelsen (1966:43), mais tarde, também criticou a mesma fórmula, ao tê-la reduzido a uma mera e pura tautologia. Ele afirmou que

 

a fórmula da justiça mais comumente empregada é a célebre do suum cuique, norma que estabelece dar a cada um o que cabe a ele, ou seja, o que é devido a ele, aquilo que pode pretender, aquilo a que tem direito. É fácil descobrir qual é a questão decisiva para a aplicação dessa norma: o que for o seu, o que lhe é devido, esse direito, é algo que não está resolvido por essa norma. Visto que o devido a cada um é precisamente o que deve ser dado a ele, a fórmula do suum cuique vem a ser apenas uma inútil tautologia: deve-se dar a cada um o que lhe deve ser dado.

 

A interpretação incorreta da fórmula comum é resultado, em parte, de sua consideração como formal a priori, de acordo com a mentalidade neokantiana de Kelsen, conforme já discorremos anteriormente, e como se pode ver pelo raciocínio “o que lhe é devido, esse direito, é algo que não está resolvido por essa norma”. Essa formulação é falsa, pois a fórmula geral contém e se refere a todos os direitos concretos existentes. Mas o erro kelseniano consiste em dar uma nova definição tautológica à definição clássica, porque a altera essencialmente. A tautologia fica composta mudando o verbo “dar” – tribuere – por ”deve-se dar”, modificando-a substancialmente.

A fórmula originária expressa uma ação (relacionado ao ser, sein) e Kelsen a transforma em um juízo deontológico (sollen), alterando sua natureza.  Para Kelsen (1966:29)[35], a justiça é um valor que se expressa numa norma, a norma de justiça. Porém essa redefinição não corresponde à concepção clássica do suum cuique tribuere, já que a justiça é uma virtude que se relaciona com um dever – o praeceptum iuris do Digesto – mas que não é ela própria uma norma ou dever, mas um hábito da vontade.

Dever e justiça são coisas heterogêneas: a justiça se refere ao comportamento, não é uma norma, mas uma virtude que se manifesta em atos concretos, razão pela qual a fórmula da justiça não é “deve-se dar”, mas “dar”. Logo, dentro da lógica kelseniana, “deve-se dar o que se deve dar” é tautológico e “dar o que se deve dar” não corresponde, como não é “pagar uma dívida” ou “cumprir um dever contratual”, ao significado da fórmula ulpiana. Kelsen é quem cria a tautologia, transformando a justiça em norma a partir de uma interpretação distorcida da fórmula clássica.

Kelsen também criticou essa concepção por compreender que ela justifica qualquer ordem jurídica positiva e, logo, não serve para definir a justiça como um valor absoluto ou referencial. Para ele, a noção comum pressupõe a validade de uma ordem normativa (que, em seu pensamento, só pode ser positiva, já que, para ele, o direito resume-se ao direito posto) que estabeleça o seu de cada um. Por ser a ordem jurídica positiva que define os direitos e os deveres de cada um, essa ordem poderia ser justificada, quaisquer que fossem aqueles direitos e deveres, de sorte que a fórmula teria, por isso, uma função conservadora, da qual emergiria seu significado histórico.

Além de incorrer num erro histórico, a crítica parte de uma inadequada compreensão dela. Seu equívoco histórico é evidente, porque é falso que a concepção clássica tenha o significado histórico atribuído a ela por Kelsen. Não há dados históricos que assegurem a afirmação. Para que assim fosse, teria sido preciso que a fórmula clássica tivesse nascido e se desenvolvido num contexto positivista. No entanto, ela não só surgiu, historicamente, num plano jusnaturalista, como, nesse mesmo plano, teve seu maior desenvolvimento, porque o justo natural funcionou como critério ético qualificador do direito positivo e, por meio dele, julgou-se a justiça ou a injustiça das ações do legislador positivo.

E foi nesse contexto em que, várias vezes, concluiu-se que uma lei positiva que não respeitasse o justo natural era uma lei injusta e, dentro do raciocínio jusnaturalista, não era uma lei, conclusão que não se coaduna com o alegado conservadorismo.

Sob outro ângulo de vista, o positivismo normativista, cujo expoente máximo é o próprio Kelsen, é, seguramente, conservador, pois o juiz, a partir dele, carece de um critério ético avaliativo da lei positiva: a lei positiva chancela situações fáticas consolidadas, injustas ou não e o ensino jurídico, nessa mesma linha, reproduz novos profissionais aptos a conservar essa mentalidade jurídica. E não custa lembrar que foi justamente Kelsen quem mais rejeitou a justiça ou qualquer outro valor ético por meio de sua conhecida teoria pura do direito.

Todavia, reconhecemos que o mestre de Viena, em sua teoria, captou, melhor que muitos dos aderentes à fórmula clássica, um aspecto fundamental que aqui defendemos: a justiça sucede ao direito, isto é, o direito vem antes e a justiça depois, porque essa dimensão corresponde ao cumprimento e à satisfação do direito. Kelsen, na verdade, captou essa realidade fundamental, mas não entendeu bem suas implicações. Na fórmula clássica, ser justo está relacionado a um direito existente, ser justo é cumprir esse direito e ser injusto é infringir esse direito. Logo, a questão da justiça ou injustiça de uma ordem jurídica positiva só tem sentido em relação a alguns direitos preexistentes e não derrogados por ela: os direitos naturais.

Se a lei positiva lesa um direito natural, como o direito à vida de uma pessoa inocente, ela é injusta. Caso contrário, é justa. Se for negada a existência do direito natural, a questão perde o sentido. Não é que a lei positiva fique justificada em razão disso, isto é, que seja reputada como justa, mas ela nem se torna justa ou injusta: a justiça não é algo que pode ser proposto em relação à lei positiva, pois a justiça visa ao cumprimento e à satisfação do direito, baseado no pressuposto de que não há outro direito que o positivo.

Na hipótese do positivismo normativista, a concepção clássica de justiça não justifica a ordem jurídica ou mesmo a reprova, porque nem uma nem outra são uma questão de justiça. Então, é falso que a fórmula ulpiana justifique qualquer ordem jurídica, mas é verdadeiro que não se possa emitir um juízo de justiça ou injustiça sobre a fórmula. Contudo, não se cuida de uma falha da definição ulpiana, mas do próprio positivismo, que deixa sem solução o problema da justiça no direito: a justiça é o que é chancelado pela lei positiva.

Sua lógica é clara: se só há o direito positivo, sobre ele não se pode propor qualquer questão sobre a justiça. A ideia de justiça, no positivismo normativista, resolve-se na estrita exigência de que uma decisão seja o resultado da aplicação de uma regra geral, legitimada pelo respeito ao processo legislativo constitucionalmente estabelecido. A justiça, assim, consiste na aplicação correta de uma norma posta, como oposição à arbitrariedade, à qual é estranha a noção de lei positiva. Porém, admitir uma lei positiva injusta supõe um critério de avaliação axiológico, superior e preexistente à norma, em relação ao qual pode ser feito um juízo de justiça.

Esse critério é denominado justiça por muitos, ao invés de direito natural, o que provoca uma alteração substancial no conceito de justiça. Deixa de ser virtude e passa a ser critério, algo estritamente inerente à razão, fundado num certo consenso social ou numa vontade majoritária. E, assim, já não consiste mais em dar a cada um o seu, mas outra coisa: igualdade, felicidade, democracia ou mesmo um valor não definível. Mesmo que se afaste a fórmula ulpiana, a justiça ainda continuará viva, pelo menos como a justiça do magistrado e do cidadão que agem em conformidade ao direito, mas de um direito que não negue o direito natural – ao contrário do que o positivismo normativista faz – o qual, a nosso ver, continua sendo aquele critério ou valor preexistente à lei positiva.

No atual estágio do pensamento jurídico contemporâneo, a definição ulpiana ainda é a descrição da justiça mais difundida atualmente entre os profissionais do direito. Existem outras definições de justiça que, em maior ou menor grau, dela afastam-se, deduzidas a partir do sistema geral proposto pelo autor, porque raras vezes se vê alguém que dê uma definição de justiça de um modo tão explícito, singelo e perene. Comecemos por Kant.

Na passagem já citada, Kant (2008:96) entende que a justiça é garantir a cada um o seu. Ele substitui o “dar” por “garantir” e elimina assim, a seu ver, o resultado absurdo a que levaria o uso do verbo dar. Dessa forma, Kant acaba por reduzir o espectro maior da justiça a um de seus aspectos: dar a cada um o seu implica em garantir a cada um o seu. Redução que carece de fundamento, pois a justiça é mais ampla que um sistema de garantias do direito: é justo devolver um bem dado em depósito, mas isso não é igual a garantir que isso vá efetivamente ocorrer.

Kelsen (1966:36) defende que a justiça é a “felicidade social, garantida por uma ordem social”. Aristóteles (2009:104)[36] já tinha atribuído essa finalidade à justiça geral (ou legal), aquela que se orienta para o bem comum, pois a satisfação de necessidades socialmente reconhecidas e a proteção de interesses reconhecidos socialmente são uma dimensão do bem comum. Se a ideia kelseniana de justiça fosse aceitável, só poderia se referir à justiça geral aristotélica; o justo distributivo e o justo comutativo, no seio da justiça particular aristotélica, ficariam sem solução.

No final do século passado, Rawls construiu a teoria de justiça mais extensa e influente de nossos dias[37]. No entanto, ele não dedicou sua atenção a formar um conceito de justiça, a não ser incidentalmente (RAWLS, 2012:19): “Concentrarei, então, a atenção no sentido usual de justiça, no qual essa consiste essencialmente na eliminação de distinções arbitrárias e no estabelecimento, dentro de uma estrutura de uma prática[38], de um equilíbrio adequado entre pretensões rivais” (tradução livre). Essencialmente, Rawls refere-se à justiça distributiva aristotélica, porquanto se preocupa somente com a igualdade de consideração no esquema das instituições políticas e sociais, no seio de uma prática. E deixa de fora de seu sistema a justiça geral (ou legal) e a justiça comutativa aristotélicas.

Na história do pensamento jurídico, não é a primeira vez que se reduz a justiça ao justo distributivo, ainda que seja uma faceta importante no âmbito da dimensão geral da justiça. Isso foi a regra na Antiguidade e, como naquela época, a redução é inadmissível, porque a justiça distributiva só é capaz de agir eficazmente se estiver em comunhão com a justiça geral (ou legal) e a comutativa. Deve ser considerado ainda que Rawls restringe sua teoria à importante órbita da justiça social, que é, sobretudo, justiça distributiva e, talvez, por isso, esse destacado pensador do direito e da filosofia política não tenha se preocupado em adentrar naquelas categorias que apontamos como faltantes.

Ross (1997:272-279) também se preocupou com o tema em foco, muito embora apresente uma certa oscilação na noção de justiça ao afirmar que a justiça é a aplicação correta de uma norma. Trata-se da justiça geral (ou legal) aristotélica e, logo, muito restrita, pois alheia às noções de justiça distributiva e comutativa do mesmo filósofo grego. Depois de afirmar que a justiça não é um padrão jurídico-político ou um critério último para julgar uma norma, defende que o papel da justiça, na formação do direito positivo, equivale à racionalidade da norma, isto é, a previsibilidade e a regularidade ante o risco de aplicação arbitrária da lei pelo magistrado. Nota-se que há uma certa confusão do princípio de justiça com o princípio da segurança jurídica.

Também não faltaram aqueles que reduziram a justiça à uma ideia. Roubier (1951:216) afirma ser a justiça “uma ideia de uma ordem superior que deve reinar no mundo e que assegurará o triunfo dos interesses mais respeitáveis” (tradução livre). A ideia de justiça, nesse caso, é de natureza estritamente política e nada tem a ver com a noção jurídica. Depois, de certa forma, é uma noção idealista relacionada a uma ordem social futura, de sorte que injustiça se limitaria a ser o desajuste entre o presente real e o futuro ideal. Contudo, os crimes e as carências materiais são uma desordem atual, por causa do devido atualmente ao homem e não pela falta da realização de um ideal.

Por isso, a justiça refere-se à uma exigência atual do homem, ao que lhe é devido no momento presente, o aqui e o agora e que diz respeito a seus direitos atuais. Não é ideia do que deveria ser, mas se refere à uma dimensão real e atual da sociedade humana. Ademais, a justiça não é coisa de interesses, mas de direitos.

Ao cabo, a justiça não é uma ideia, pois a ideia é uma dimensão do intelecto, ao que fica dado à justiça um estatuto intelectual, ao invés de um estatuto volitivo, o que não condiz com a noção de justiça que defendemos nesse trabalho. Não se diz que um homem é (in) justo porque (ignora) conhece a ordem social e sim porque age (contrariamente) corretamente em relação à lei e ao direito. O justo e o injusto são qualificativos das ações humanas, porque a justiça é uma virtude, ou seja, uma disposição da vontade.

A mesma confusão entre justiça e critério ideal – a justiça como ideia – é observada em outro expoente do pensamento jurídico, Radbruch.  O jurista alemão (RADBRUCH, 1974:45) defende que o padrão da justiça é uma organização ideal da sociedade, ou seja, prevalece um critério ideal da lei em função de uma sociedade idealizada. Essa definição reduz a justiça à lei, sem abranger a justiça em relação às pessoas. A justiça é mais ampla e o tema da justiça do legislador é importante, porém a justiça também é o cumprimento das leis e o respeito dos direitos do indivíduo.

A par disso, confere-se ao conceito de justiça um estatuto estritamente intelectivo, ao transformá-lo em critério ideal, o que não lhe é próprio. Na verdade, isso provém da transmutação kantiana do direito natural, que deixou de adotá-lo como ponto de referência da justiça na lei positiva: esta é justa na medida em que está de acordo com os princípios do direito natural. Kant substituiu o direito natural pelas formas a priori do direito, algo restrito à dimensão intelectual, de sorte que a injustiça já não é mais uma negação do direito, mas a desarmonia com uma forma a priori, o critério de justiça.

A partir da matriz kantiana, o pensamento jurídico evoluiu, defendendo que esse fator intelectivo é a justiça propriamente dita, chamando de justiça o direito natural transmudado kantianamente. Daí decorre que a justiça seja entendida como critério, confundindo a justiça com seu critério. A justiça não é critério, mas a virtude de agir conforme esse critério. No que se refere à lei, a justiça consistiria na concordância de seu comando com esse critério.

Além disso, o critério de justiça não pode ser exclusivamente um ideal, pois a injustiça não é a tensão entre o ideal e real, mas uma agressão concreta a um direito específico e existente, representado pelo descumprimento de uma determinada norma posta. A injustiça não lesa entes ideais, mas entes reais. O critério ou ponto de referência da justiça é o direito, porque a justiça sucede ao direito, como já abordado anteriormente.

No que toca à lei positiva, o critério é o direito natural. Se este é rejeitado teoricamente, a questão da justiça ou injustiça da lei fica sem solução, porque desaparece o verdadeiro critério. Não se pode chamar o direito natural de critério de justiça, sob pena de distorção desta, transformando-a indevidamente no que é seu critério ou ponto de referência, o direito.

A justiça não é a ideia de direito. Como já exposto, a justiça está relacionada ao sein ou ao agir e à capacidade operativa e não estritamente ao sollen ou dever-ser: de um lado o preceito ou a norma; do outro lado, a virtude. A justiça aparece na ordem secundária do cumprimento ou satisfação do direito e não na ordem primária da constituição do direito.

A justiça é a concordância com o direito e não o próprio direito. O direito é o objeto da justiça, segundo a concepção aqui defendida. Logo, direito e justiça são coisas realmente diferentes e a acusação de que a noção ulpiana identifica justiça e direito não tem sentido. Demonstra uma certa falta de conhecimento da concepção clássica do direito e daquela noção ulpiana de justiça, falha um tanto generalizada no pensamento moderno.

No âmago desse problema, a justiça como ideia é um valor absoluto e baseia-se em si mesma, sem estar atrelada a qualquer valor superior, como a verdade, a bondade e a beleza. Segundo defendemos, o valor, como ideia, está ligado ao intelecto, enquanto a justiça refere-se à vontade, no âmbito da capacidade operativa. A justiça difere do valor. Supondo ser correto falar de valores, a justiça estaria relacionada à atuação de acordo com o valor, mas não é o próprio valor. O valor seria algo próprio do direito. E se o valor absoluto existisse, então, só poderia ser o direito como ideia universal, o que nos coloca diante do direito natural como critério de valor da lei positiva.

Dizer que a justiça – e não o direito – é um valor resulta da falsa identificação entre direito e justiça. O ente valioso é o direito e o valor absoluto – em termos de filosofia dos valores – é o direito como ideia universal. O paralelo entre a justiça e a bondade e a beleza e a verdade não se sustenta, porque o justo, o bom, o belo e o verdadeiro não estão no mesmo nível. O justo (ou injusto) é sempre algo real, concreto e histórico. Os demais são transcendentais do ser, isto é, razões do ser, junto com o uno. Um transcendental refere-se ao ser e, logo, a todo ser, o que não é próprio do justo, que se declara, sempre em referência ao outro, só de algumas coisas.

Entre essas coisas, está o direito. E a dimensão do direito em cuja virtude se fala do justo é a igualdade, aquilo que pode ser constituir no atributo valioso do direito. Por que a igualdade é valiosa para o direito? Porque a igualdade consiste na adequação da coisa constitutiva de direito em relação à pessoa: é o que lhe cabe, o adequado. E isso é bom e valioso. A igualdade é, para o direito, o transcendental “bondade”. No entanto, o valor não é a justiça, mas é a igualdade como transcendental do direito.

Algumas outras opiniões correntes, sobretudo no campo da filosofia política, sem entrar em definições de justiça, subentendem-na. Uma delas é a de que a justiça consiste exclusivamente na igualdade. Uma ordem social é justa quando vigora efetivamente o princípio de igualdade entre os homens e a fórmula da justiça seria “dar a todos a mesma coisa”. Sem dúvida, a igualdade é uma característica do justo, isto é, do direito e, à medida que a justiça cumpre e satisfaz o direito, cumpre e satisfaz a igualdade. Mas a igualdade não é primariamente um aspecto da justiça e sim uma dimensão do direito. É típico da justiça o cumprimento do direito e só nesse sentido a justiça implica em igualdade.

Há outros pensadores que restringem a justiça ao direito positivo e afirmam que a justiça consiste na elaboração democrática das leis: se a lei é democraticamente estabelecida, dentro do jogo do processo legislativo, logo, é justa. Em primeiro lugar, a justiça não se limita à questão da lei justa ou injusta. Em segundo lugar, reduz-se o âmbito da justiça ao aspecto formal ou procedimental e não se dá o devido peso da justiça no conteúdo da lei. A forma democrática e a observância do processo legislativo não asseguram necessariamente a justiça do conteúdo normativo, como demonstra a experiência histórica da civilização ocidental.

Na caracterização dos atributos da justiça, convém lembrar que estamos no mundo do cumprimento das normas e dos profissionais do direito, mormente no mundo do foro, onde se dá o ofício do magistrado. Logo, a promulgação das leis não é algo próprio do ofício daqueles profissionais, mas do parlamentar. O processo legislativo só lhes causa interesse em alguns casos, como na análise da ratio legis ou da constitucionalidade formal ou material. Nesse diapasão, a justiça sucede ao direito ou, de outra forma, a justiça pressupõe o direito ou, ainda, a justiça consiste na realização do direito.

Sem direito preexistente, não é possível a ação justa ou o ato de dar a cada um o seu direito. Assim, podemos falar da primazia do direito sobre a justiça e soa falsa a afirmação de que o direito é uma realização da justiça. Não estamos num mundo de ideias. A justiça sempre se refere a direitos existentes, reais e concretos. O ideal de justiça é o cumprimento e a satisfação de todo direito, que é a justiça real. O oposto é a injustiça.

Assim, o ponto de partida na caracterização dos atributos da justiça é a existência de direitos e a situação de interferência da qual podem ser objeto. É o primeiro aspecto. As coisas estão repartidas, o que equivale dizer que os direitos estão constituídos e estabelecidos. Para se falar de “o seu”, é necessário que as coisas estejam atribuídas a diferentes sujeitos. Quando tudo é de todos ou nada é de ninguém, não pode existir o meu ou o seu. Daí se deduz que a justiça não é virtude da repartição das coisas, mas do respeito à repartição estabelecida. Observe-se que todo direito traz consigo uma atribuição e, nesse sentido, implica uma repartição.

As coisas estão ou podem estar em poder de outro: eis o segundo aspecto do ponto de partida e equivale a que os direitos podem ser afetados. Os tribunais brasileiros estão abarrotados de processos em que há coisas que estão em poder do outro. Eis o âmago do que significa o “dar” da fórmula. A ação justa é gerada na hipótese de uma alteração ou potencial alteração na ocupação, no uso ou no gozo da coisa, uma interferência ou possível interferência na posse e no gozo dos direitos. O ato de justiça respeita ou restabelece ao titular seu direito. Dado que a justiça pressupõe o direito constituído, a ação de dar o seu – o seu direito – pressupõe a existência de uma alteração, atual ou potencial, na devida relação de fato entre a coisa que é direito e seu titular.

Para se manter uma ordem social justa, requer-se, no que cabe aos homens, saber e querer. Saber os direitos de cada um e querer cumprir as leis e respeitar os direitos, já que a justiça não pertence à ordem do saber, mas à ordem do querer, ao apetite racional, assento da vontade. A justiça relaciona-se ao agir, à ação justa, como princípio e motor dela. A justiça é um hábito da vontade. Prova disso é que não chamamos ninguém de justo porque esse alguém conhece o direito, mas porque esse alguém cumpre o direito.

Não seria correto dizer, então, que a justiça é uma reação emotiva, fundada num sentimento de repulsa ante uma injustiça flagrante? Do ponto de vista do emotivismo ético, a corrente de filosofia moral que entende as virtudes como reações emotivas, a resposta seria sim. Mas o emotivismo ético padece de fundamento: as emoções são reações do apetite sensitivo e a ação justa é um ato de vontade, ligado ao apetite racional. Pagar uma dívida é um ato voluntário e não uma ação emotiva, porque a ação justa requer, como pressuposto, um conhecimento racional, visto que se fundamenta no conhecimento da lei e do direito.

É algo ligado à razão e não à sensação. Posto isso, se o saber que o ato justo requer é racional, o que se move e realiza por ele é o apetite racional, isto é, a vontade. E se a ação justa é um ato voluntário, o hábito correspondente, a justiça, é inerente à vontade e não aos afetos. Visto que a justiça tende a dar a cada um o seu, aí repousa sua retidão e importa muito mais a objetividade de dar precisamente o seu a cada um do que a intenção reta de se fazê-lo. O problema principal da justiça, como um todo, consiste na determinação do “seu” de cada um, algo que pertence ao mundo do direito (pois o “seu” de cada um é seu direito) e, assim, os problemas da justiça são mais do direito do que da própria justiça.

A justiça é a virtude da ordem justa e com finalidade social, quer dizer, embora seja uma virtude pessoal, seu objetivo direto é a correta relação de cada pessoa com o seu, em suma, a objetividade da ordem justa[39]. A virtude da justiça deve ser julgada não pela perfeição que alcance no interior do sujeito, mas pela perfeição com que se estabelece na relação jurídica com o outro.

Dado que a justiça consiste na virtude de dar a cada um o seu, é óbvio que a justiça tem a alteridade como atributo, isto é, ser virtude de uma relação social. Significa que o reto ou o virtuoso decorre do equilíbrio entre dois ou mais sujeitos, ou seja, uma harmonia determinada pela proporção das pessoas em relação a uma coisa: que seja dado justamente o direito do outro[40]. E, nesse sentido, importa a vontade de implantação da ordem justa e não a afeição ou ânimo com que se considera o outro. Em suma, a relação entre as subjetividades das partes não intervém diretamente, mas a condição de titular de uma coisa sua[41].

Eis o fato que permite o estabelecimento do ofício do juiz como diferente do moralista: para aquele profissional, seu mister está relacionado com a virtude da justiça e não é próprio dele o dinamismo ético da justiça (o aperfeiçoamento pessoal de quem a realiza), mas o dinamismo social e objetivo da justiça, isto é, a implantação da ordem justa nessa situação concreta, real e histórica. Nesse ofício, deve ser lembrado que o titular ou o destinatário de um ato da justiça pode ser não só uma pessoa, mas uma coletividade, porque, por trás desta, está um conjunto de pessoas. Logo, a justiça é sobre ela declarável, ainda que a declaração seja analógica, como é analógica a vontade de uma coletividade.

Entendida a justiça como a disposição dos sujeitos de uma ordem social à ação justa, chegamos aqui ao núcleo da questão: a ação justa. O juiz, no exercício de seu ofício diário, não se interessa pela justiça como virtude pessoal deste ou daquele indivíduo, mas pelos resultados decorrentes da ação de dar a cada um o seu. A arte[42] própria do magistrado é a dinâmica social da justiça. A virtude da justiça propriamente dita não é o objeto primário do saber jurídico, mas a ação justa. A virtude da justiça, como tal, só importa ao mesmo profissional enquanto serve para conhecer a ação justa, como pressuposto.

Nessa tarefa, é imprescindível analisar a fórmula da ação justa, o “dar a cada um o seu”, em três partes – “dar”, “a cada um” e “o seu”. Na primeira parte, a ação justa foi denominada pela tradição romana como tribuere, o que se traduz por dar, por falta de um verbo no vernáculo que expresse todo um conjunto de ações específicas que tomam parte num ato de justiça. A ideia que o verbo que designa o ato justo deve expressar é a de uma ação em cuja virtude o seu de cada um é respeitado ou, se passou ao poder de outro indevidamente, é restituído ou restabelecido em sua primitiva posição.

Conforme já dito, o ponto de partida do ofício do juiz é o de que as coisas estão repartidas e passam ou podem passar para a esfera de poder de pessoa diferente de seu titular. Por exemplo, o respeito, por parte dos cidadãos, às autoridades constituídas decorre da sujeição ao poder legítimo. Se não for legítimo, cabe a desobediência civil. No caso da observância do direito à vida alheia, a questão também se resolve pelo respeito. Se furto, o ato de justiça consiste em restituir a coisa ao seu dono. Se lesiono alguém ou algo, o ato de justiça está em reparar o dano inflingido. Dar, assim significa toda ação ou omissão em cuja virtude aquilo que é atribuído a alguém permanece em sua esfera de poder. Abrange ações como entregar, devolver, restituir, respeitar, obedecer, entre outras.

Nesse sentido, a propósito de Kelsen, não se deve confundir a justiça com o que o Digesto denomina iuris praeceptum, embora seja atribuída aos dois a mesma fórmula: suum cuique tribuere. O iuris preceptum é um juízo deontológico: “deve”. Isso provém do direito, que é algo devido, donde decorre um preceito: deve-se dar a cada um o seu. Dessa maneira, o verbo “dar” deveria ser traduzido, na fórmula do iuris praeceptum, por “deve-se dar”, segundo Kelsen.

Contudo, essa versão não é aplicável à justiça: a justiça não é um juízo deontológico, não é um juízo da razão, é um hábito da vontade. A ação que é gerada da vontade justa ou ação justa pertence à ordem fática. É um agere, um atuar. Logo, não pode ser designada por um enunciado preceptivo. O verbo que nela cabe designa um ato: dar. Ao dar, conforma-se um ato justo, resultado do cumprimento do dever jurídico e não o dever jurídico propriamente dito. É um sein e não um sollen.

A segunda parte da fórmula diz respeito à expressão “cada um”. Cada um é oposto de um conjunto ou um grupo. Não é próprio da justiça determinar normas sobre repartições de bens na comunidade política. Isso é próprio dos políticos. A justiça dos profissionais do direito e, sobretudo, a do magistrado em sua faina diária, é a justiça do caso concreto, aquela atinente à cada pessoa ou coletividade concretamente considerada e em relação a todos e a cada um de seus direitos. Não se trata de fazer justiça em geral.

Todavia, para isso, é necessária uma organização social que leve a justiça a todos e em cada caso concreto, a tarefa primordial do Poder Judiciário e de todos que auxiliam na administração da justiça. A ação de capilaridade para levar a justiça a todos e a cada um é típica do ofício do magistrado, porque, para a justiça em geral, já existem os políticos. Tal traço salienta que a justiça requer o respeito do direito de todas e cada uma das pessoas. Uma justiça para a generalidade, a maioria, junto com o desprezo do direito da minoria, não é justiça. Continua sendo injustiça e opressão. Quando muito, supõe a substituição de uma injustiça por outra.

Não é justiça essa justiça seletiva que tantas vezes vemos em nosso mundo. Por exemplo, a justiça de classe: seus seguidores, para fazer justiça a uma classe social – camponeses ou oprimidos – não hesitam em lesar o direito – às vezes, direitos humanos elementares, como o direito à vida ou à liberdade – dos que, segundo eles, são um obstáculo para essa justiça de classe.

Isso é política, mas não é justiça: a justiça é, nesse sentido, onicompreensiva e específica ao mesmo tempo: a todos sem exceção e, logo, a cada um. Dar a cada um o seu leva a dar a todos o seu. Isso é consequência do princípio da igualdade de todos os homens como sujeitos de direito. Os fenômenos de marginalização que afetam verdadeiros direitos, sejam naturais ou positivos, constituem injustiças, pois supõem a negação ou a violação do direito.

A terceira parte da fórmula atine ao significado de “o seu”. Na definição da justiça e na fórmula do iuris praeceptum (o dever fundamental da ordem jurídica), o direito é designado com o termo genérico suum, “o seu”. Em primeiro lugar, destaca-se a multiformidade de “o seu”. A plasticidade e a generalidade da fórmula com que se define a justiça é evidente e aí reside sua virtude e sua capacidade de significar o direito e abranger tantas modalidades de direito.

“O seu” denota uma relação de atribuição ou pertença, mas a atribuição ou a pertença admitem muitos modos. Por exemplo, para uma mesma coisa, um lar, posso a ela me referir como “minha residência”, o que denota um sentido, ou “meu domicílio”, o que corresponde a outro. E isso significa que “o seu” tem uma atribuição exclusiva, que algo está destinado a um sujeito com exclusão dos demais, segundo diferentes modos de atribuição e pertencimento.

Em segundo lugar, “o seu” é uma coisa, a ser determinada pela arte do profissional do direito, dentro daquilo que o próprio direito define como coisa. Saliente-se que a definição de justiça – da ação justa – e a fórmula do dever fundamental da ordem jurídica não dizem que é preciso dar a todos a mesma coisa, mas que é preciso dar a cada um “o seu”. A justiça não consiste em dar a mesma coisa e sim em dar “o seu”, sob pena de se cair na falácia do igualitarismo, que não se confunde com a igualdade, essa dimensão inerente à justiça.

A justiça trata todos por igual, sem discriminação ou acepção de pessoa. Entretanto, a igualdade não está no que se dá, mas em como dá. A justiça trata todos por igual, porque trata todos do mesmo modo, ao dar o mesmo e o idêntico tratamento a todos os titulares daquele mesmo direito. Assim, a repartição igualitária não é uma questão de justiça, mas de uma decisão política de uma sociedade.

Enfim, o ato de justiça ou a ação justa é um ato secundário, na terminologia de Pieper (1960:89), isto é, a ação justa pressupõe o ato de constituição do direito, o qual, em relação à justiça, surge como ato primário. Se o ato justo consiste em dar a cada um o seu, então o direito preexiste ao ato justo. O ponto de partida da justiça é o de que as coisas estejam repartidas. A repartição é, logo, antecedente à justiça e à ação justa. Não se confunde com o ato de justiça.

Na sucessão hereditária, falecido o titular dos bens, os herdeiros já entram na posse e na propriedade destes, todos com uma parcela ideal de cada bem. O processo de inventário vai proporcionar a repartição, segundo a normatividade posta do direito sucessório, destes bens entre os herdeiros, atribuindo-lhes a cada um o seu.

Repartir, em vida, os bens e os encargos, em razão da regra de repartição anteriormente estabelecida, é um ato de domínio, porque é um ato de transferência do domínio. Só quem tem um domínio sobre os bens pode reparti-los, fazendo que os bens divididos passem a ser de outros. Ato de domínio, mas não ato de justiça, porque a justiça não está em repartir, mas em respeitar a repartição já feita pelo direito, pressuposto da justiça.

Contudo, há repartições justas e injustas. Isso se dá porque o direito antecede a essas repartições. E se o direito não antecede, ou não é possível se recorrer à justiça estrita ou o que antecede é uma norma de direito natural. Então, nesses casos, entra em cena a equidade, uma importante nota que também compõe a arte do ofício do juiz. A equidade é a arte de harmonização da justiça com outras virtudes que regulam as relações humanas, porque a justiça deve sempre ser considerada no contexto geral do bem comum.

É preciso dar a cada um o seu, porque a ontologia da pessoa humana e a própria estrutura das relações humanas demandam isso. Mas, nas relações humanas, nem tudo pertence ao campo da justiça, conforme já exposto anteriormente. Existem outros deveres próprios de outras virtudes, como a solidariedade, a probidade, a moderação, a magnanimidade, a veracidade, entre outras, que supõem um rol de deveres que devem se harmonizar com os da justiça. Essa harmonização dá origem à equidade, a justiça mesclada com outras virtudes e o equitativo é a resultante dessa operação.

A equidade, assim, abranda o rigor do dever e acomoda o direito no caso concreto, porque, muitas vezes, summum ius summa iniuria, o máximo do direito aplicado acarreta no máximo da injustiça aplicada. Esse abrandamento é, sobretudo, dentre os profissionais do direito, uma arte do ofício do magistrado ao exercer a iurisdictio, a jurisdição, etimologicamente, a ação de dizer o direito no caso concreto. Por exemplo, a hipótese de perdão judicial do Código Penal no caso do autor de um homicídio culposo[43].

Por sua vez, a acomodação, muitas vezes, importa na satisfação, dentro do possível, pelo bem do obrigado à prestação do direito. Nessa hipótese, aplica-se o princípio geral do direito, formulado pelos jurisconsultos romanos, do ad impossibilia nemo tenetur (diante da impossibilidade, não há o que se temer). Por exemplo, baseado nesse princípio, o Código de Processo Civil[44] determina que toda execução deve ser pautada pela economicidade, isto é, o cumprimento da sentença deve realizar-se de forma que, satisfazendo o direito do credor, seja o menos prejudicial possível ao devedor.

Nesse diapasão argumentativo, concernente ao ofício do magistrado propriamente dito (a justiça particular aristotélica), o Código Iberoamericano de Ética Judicial (2008:15-16 e 39-40) em vigor reforça, na exposição de motivos, o propósito último da atividade judicial como sendo a “da realização da justiça por meio do Direito” (artigo 35). A codificação intercontinental, dessa forma, assume o paradigma aqui defendido, qual seja, o de que o direito é anterior à atividade do juiz, a qual deve ser pautada como uma ação judicial justa, que, por meio do direito posto, visa à satisfação dos ditames de justiça no caso concreto.

O mesmo código (2008:15-16 e 39-40)[45] refere-se especificamente à equidade (artigo 36) e seu objetivo é o amenizar as consequências pessoais, familiares ou sociais desfavoráveis, acrescentando – com notáveis ressonâncias aristotélicas – que isso se gera na “inevitável abstração e generalidade das leis”. No artigo 39, a equidade vincula-se com a igualdade ante a lei, pois essa é a dimensão que essencialmente é preciso levar em conta na aplicação judicial do Direito (justiça particular aristotélica).

No artigo 37, o juiz equitativo é definido como aquele que, no marco do direito vigente, projeta coerentemente os valores do ordenamento ao caso que resolve, consciente de que a solução judicial por ele aplicada deve poder se estender a todos os casos substancialmente semelhantes.

Esse dispositivo, somado ao artigo 40, que obriga o juiz ao seguimento não só do texto das normas jurídicas, mas das “razões nas quais elas se fundamentam”, traduz uma concepção do direito afastada de uma visão puramente formalista, típica do positivismo normativista kelseniano, para o qual a justiça e a equidade são dimensões inexistentes para o direito, e reforça a fórmula de justiça descrita e analisada ao longo deste capítulo: suum cuique tribuere[46], dar a cada um o seu.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A realidade histórica indica não haver sociedade sem Direito, nem Direito sem sociedade: ubi societas ibi ius[47], sentenciaram, com precisão, os jurisconsultos de Roma, um povo dotado de um gênio prático, político e organizativo sem paralelo na história das civilizações. A existência de normas jurídicas positivadas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida gregária gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. Se nem sempre existiu o Estado, tal como hoje entendemos desde a Paz de Westfália[48], sempre houve poder.

Ou seja, os homens não se reuniram um dia para criarem a sociedade ou para estabelecerem o poder, mas nasceram no seio de uma comunidade, na qual, naturalmente, uma certa ordem foi estabelecendo-se e a partir da qual imanentemente brotou um poder. E, nessa tarefa, o homem, como ser racional e transcendente, foi percebendo que sua ordem não poderia ser meramente instintiva, mas precisaria ser dotada de justiça, sob pena de desagregação social, como efeito invencível do império da iniquidade.

A busca e a proposição de concretização de uma ordem justa, que se dá por meio de leis postas, é fruto de uma construção humana voluntária no seio da interação social. Mas essa missão não é imune ao erro e, logo, o direito posto pode até tornar-se injusto, principalmente hoje, em que a noção de Direito está, a nosso ver, na prática, concretizada pela ideia, cada vez mais cativante, de que a singela declaração de uma norma pelo poder estatal bastaria para a solução de uma situação fática específica, o que nem sempre atende os ditames concretos de justiça ali exigidos.

Se há, assim, na natureza humana, a constante busca de uma ordem lastreada axiologicamente – uma ordem justa – no seio de uma realidade histórica, contingente e concretamente determinadas, então, o desenvolvimento dessa ordem justa, como efeito da ação dos indivíduos de um grupo social e da realização do Direito pelo ofício diário e forense do magistrado na distribuição do justo concreto, deve ser derivado a partir da adoção de uma normatividade moral universal daí decorrente, pois a ordem social, da qual o Direito é protagonista e faz parte, ergue-se, também, sobre os alicerces de uma ordem natural.

Não podemos deixar de viver em sociedades organizadas juridicamente, ao menos no mundo ocidental. Contudo, isso não importa concluir que, em razão disso, estejamos condenados à uma vivência social sob formas de organização injustas, porque a ordem justa faz parte do especial modo de ser do homem, ainda que muitas realidades sociais não tenham sido, ao longo da história, reconhecidas ou respeitadas.

O reestabelecimento do reconhecimento ou do respeito à tais realidades sociais, galvanizadas pela iniquidade, é tarefa da justiça do Direito. Ou do direito como objeto da justiça, que é a justiça do caso concreto, o justo concreto reconhecido ou respeitado ou reestabelecido numa dada situação fática histórica, contingente e determinada. Mas, antes para isso, o Direito deve estudar as formas de o “dar a cada um o seu” fazer-se da melhor forma.

Em primeiro lugar, vem o “dar”, isto é, o atribuir, indicando o que devemos fazer enquanto obrigados a tanto: pode ser entregar, respeitar, obedecer, restituir e não se cuida de dever dar, mas de dar mesmo. Em segundo lugar, está o “a cada um”. O Direito é uma arte do concreto. O juiz (DIP, 2001:7) declara que uma área de terra pertence a Tício e não a Caio e, no mesmo ato, determina sua restituição. Ele só consegue saber o que é de cada um depois do estudo do caso concreto dos indivíduos concretos.

Não interessa ao Direito que Tício seja rico ou pobre, bom ou mau. Ao Direito importa apreciar se a terra lhe pertence ou não: pouco importa se ele cuida ou não da terra (questão fundiária) ou se precisa ou não dela para sobreviver (questão política). Prossegue Dip (2001:7), assinalando que

 

essa frieza, este rigor, faz-nos por vezes arrepiar. Por isso que o Direito não é tudo na vida e uma sociedade apenas justa seria também um absurdo. Além do Direito e das outras ordens sociais e normativas, precisa o homem da política, que se deve preocupar com o bem comum, da economia, que visa à produção de riqueza e ainda de outras coisas, como a caridade, o perdão e o amor, sem as quais a sociedade se torna irrespirável. Só que continua válido, até aqui, o princípio a cada um o que é seu. Não se devem misturar as coisas. Quando sou assaltado sem ninguém se dar por isso, posso perdoar e nada virá suceder ao criminoso. Mas isto não é Direito.

 

Em terceiro lugar, vem “o seu” de cada um. Aqui, o objeto pode ser tudo aquilo que interesse ao indivíduo na órbita social e que pertença ao mundo do comércio jurídico: bens materiais ou imateriais, sempre determinados por um título, como um contrato, uma lei, um testamento, uma declaração unilateral de vontade, uma promessa e até mesmo a natureza humana. Decerto que, na divisão dos títulos, injustiças sociais podem ser cometidas pelo legislador, as quais, na distribuição da justiça do caso concreto, o ofício do juiz por antonomásia, poderão ser abrandadas pelo manejo da equidade judicial.

O Direito tem uma finalidade prática, a solução de casos reais, e, por isso, (VIGO, 2010:103) o objeto terminal da gnoseologia jurídica é sempre uma decisão a ser tomada numa circunstância concreta e somente nela alcança o Direito sua plena realização. A tomada de decisão exige uma adequada compreensão das circunstâncias do problema, distintas em cada caso, pois em razão delas se construirá a resposta normativa adequada, a fim de (KAUFMANN, 1972:165) animar as palavras mortas da lei com a realidade da vida.

Na medida em que a história humana incorpora as camadas existenciais de cada época, o Direito aprende com os próprios erros: reforça velhos princípios com uma nova linguagem, adota outros e, assim, vai solidificando o patrimônio jurídico da humanidade e demonstrando a vitalidade e a perenidade de sua ordem natural. Como, de resto, nas leis físicas: até que Copérnico apresentasse o sistema heliocêntrico, passaram-se séculos e mais séculos. Mas, nem com a queda do sistema ptolomaico, a astronomia caiu em descrédito depois.

Dizia-se em Roma haver Direito (do latim derectum, em linha direta) quando o fiel da balança da justiça não se inclinava nem para a direita nem para a esquerda, mas pendia a direito, o que significa dizer que os pratos estavam no mesmo nível e, em sentido figurado, transmitia a ideia daquilo que estava conforme à regra, pois cada um havia recebido o “seu”, o objeto do peculiar ofício do juiz, a justiça do Direito.

A justiça do Direito não é a justiça do político: é a modesta justiça do foro, a justiça do caso concreto. E, em sua modéstia, carrega consigo a base da vida comunitária, atende a uma das mais altas virtudes humanas, satisfaz uma necessidade fundamental da vida do homem e possibilita a estruturação de uma sociabilidade humana conforme o direito e não segundo o arbítrio.

 

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NOTAS

[1] In De Officiis, 1, 7.

[2] In Expositio in Librum Sancti Job, cap. VIII, lect.1.

[3] A prudência é tratada ex professo no livro VI da Ética a Nicômaco, que aborda as virtudes dianoéticas, e no capítulo 34 do Livro I da Magna Moralia. Segundo Aubenque (2003: 59-60), “a tradição moral do Ocidente pouco reteve da definição aristotélica de prudência. Enquanto as definições estóicas de phronêsis como ‘ciência das coisas a fazer e a não fazer’ ou ‘ciência dos bens e dos males, assim como das coisas indiferentes’, facilmente se impuseram à posteridade, a definição dada por Aristóteles no livro VI da Ética Nicomaquéia apresenta um caráter demasiado elaborado ou, se se prefere, demasiado técnico para poder conhecer a mesma fortuna. Ali, a prudência é definida como uma ‘disposição prática acompanhada da regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem (L. VI, 5, 1140 b 20 e 1140 b 5)”. Tomás de Aquino (S. Th., V, 47, 2), alguns séculos depois, irá adotar fórmula semelhante para a definição da prudência, essa virtude da inteligência do concreto, como sendo a recta ratio agibilium, a reta razão aplicada ao agir. Hoje, os dicionários da língua portuguesa traduzem a palavra prudência como cautela, precaução, circunspecção, sensatez ou ponderação, expressões que bem pouco lembram seu significado original.

[4] “Ao proceder-se à análise daqueles que no Digesto são apresentados como preceitos fundamentais do Direito: – ‘Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere’ (D., I, 1, 10) (…) consonante opinião dominante, esses três princípios refletiriam três grandes correntes filosófica da Grécia. ‘Não prejudicar a outrem’ traduziria a orientação epicurista de uma ordem social na qual cada homem só fosse obrigado a não prejudicar a outrem. O Direito teria por finalidade traçar os limites de ação dos indivíduos, de forma negativa, não impondo o dever de fazer algo, mas a obrigação de não causar dano. O segundo princípio: ‘viver honestamente’, seria de inspiração estóica, segundo o ideal de alcançar a felicidade com fiel subordinação à natureza, aos ditames da razão. O último dos preceitos já representaria a lição aristotélica da justiça distributiva, como proporção de homem para homem segundo seus méritos. (…) Em conclusão, pensamos que os chamados praecepta iuris não nos auxiliam a esclarecer a distinção possivelmente existente no mundo romano entre Moral e Direito, mostrando antes a alta compreensão moral que os jurisconsultos tiveram da vida jurídica (REALE, 1993:632)” (grifos nossos).

[5] Na esteira de uma longa e destilada tradição jusfilosófica, acreditamos que existem dois tipos de leis humanas: a escrita e a não escrita. Esta corresponde àquela que o homem tem dentro de si como premissa de sua ação. É chamada de lei moral e está expressa em diversos textos religiosos e laicos (como o Decálogo e a Declaração Universal dos Direitos do Homem) e, principalmente, no coração e na consciência do homem, como ressaltaram expoentes tão diversos como São Paulo e Rousseau. Refere-se aos critérios mais elementares de ação e de justiça, como não matar, não roubar, falar a verdade, respeitar a dignidade da pessoa humana, respeitar os pactos e, principalmente, fazer o bem e evitar o mal (Suma Teológica, I-II, q.94, a.2). Tais critérios básicos podem ser chamados de princípios da razão prática, porque constituem as premissas de toda ação humana. O homem, na medida em que age porque tem inteligência e vontade, acrescenta uma dimensão moral em todos seus atos. Assim, os atos humanos são atos morais.

[6] Política, L. I, 1253 a37.

[7] Suma Teológica, II-II, q.58, a.12; I-II, q.66, a.1.

[8] Morrison (2006:24) lembra que “muitos dos filhos de Zeus e Têmis tornaram-se fiadores das leis e da estabilidade social, em particular Dike, Eunomia e Irene. Dike passou a personificar o ideal de justiça que colocava o homem acima do mundo animal (…). Como deusa, Dike levava os juízes a se empenhar em deliberar com integridade lógica em vez de tomar decisões arbitrárias; sua irmã Eunomia representava a harmonia social e jurídica que resulta desse comportamento racional e Irene expressava a paz. Em conjunto, configuravam a ideia social de homonoia, ou o ideal de uma comunidade urbana harmoniosa”. Os Sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, na filosofia, e Sófocles, com sua célebre “Antígona”, na literatura, assumiram a tarefa de compreender esse ideal, correlacionando-o ao problema do justo. Porque os gregos já tinham uma certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social.  A justiça deveria ser o verdadeiro pressuposto de toda ordem jurídica no mundo espiritual da polis, onde já se percebia que um justo natural antecedia um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada. Frise-se que a importância do contributo grego para a noção de um justo natural decorre justamente do fato de, pela primeira vez na história, o homem ter despertado para a consciência do problema. Não houve uma proposta deliberada de composição epistêmica de critérios capazes de distinguir a juridicidade da legalidade, o justo natural do justo legal. Até porque, como a polis era a expressão mais alta da vida ética na Hélade e tudo convergia para a manifestação do indivíduo na vida política, de certa forma, não havia a necessidade daquela distinção.

[9] Jaeger (2003:134-137) relata que o conceito de dike não é etimologicamente muito claro. “Vem da linguagem processual e é tão velho quanto themis. Dizia-se das partes contenciosas que ‘dão e recebem’ dike. Assim se compendiava numa palavra só a decisão e o cumprimento da pena. O culpado ‘dá’ dike, o que equivale originariamente a uma indenização ou compensação. O lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, ‘recebe’ dike. O juiz reparte dike. Assim, o significado fundamental de dike equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa, ao mesmo tempo, concretamente, o processo, a decisão e a pena (…). Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e validade, dike significa o cumprimento da justiça (…). Encontramos, desde os tempos mais recuados, uma série de palavras que designam certos gêneros de delitos, como adultério, assassínio, rapto e furto. Mas falta-nos um conceito genérico para designar a propriedade pela qual evitamos aquelas transgressões e nos mantemos dentro de justos limites. Para esse efeito a nova época criou o termo abstrato dykaiosyne, tal como na época do mais alto apreço pelas virtudes combativas se criaram substantivos correspondentes à destreza guerreira, à valentia nos combates pugilísticos, termos hoje ausentes nas línguas modernas. O novo termo proveio da progressiva intensificação do sentimento da justiça e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa arete. Originariamente, as aretai eram tipos de excelências que se possuíam ou não. Nos tempos em que a arete de um homem equivalia à sua coragem, colocava-se no centro este elemento ético e todas as outras excelências que um homem possuísse se subordinavam a ele. A nova dikaiosyne era mais objetiva. Tornou-se a arete por excelência, desde que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e do injusto. Pela fixação da lei escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, o conceito de justiça ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a ‘virtude cristã’ consistiria na obediência às ordens do divino”.

[10] Lc 1, 5-6.

[11] República, L. I, 6, 331 e.

[12] Memorabilia, IV, 4.

[13] República, L. IV, 10, 433 e.

[14] República L. IV, 10 e 11, 434 b – 434 c.

[15] República L. IV, 16, 441 c – 443 b.

[16] República L. IV, 17, 443 d – 443 e.

[17] República L. IV, 10, 433 b.

[18] Retórica, L. I, 9, 1366 b.

[19] Ética a Nicômaco, L. V, 1129 a3 -1130 a13.

[20] Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q.58, a1.

[21] Ética a Nicômaco, L. V, 1130 b – 1131 a. Axia pode significar valor, mérito, dignidade ou condição social.

[22] D. 1, 1, 10.

[23] Etimologías, XX, X, 124: Iustus dictus quia iura custodit et secundum legem vivit.

[24] Cidade de Deus, XIX, 21: Iustitia porro ea virtus est, quae sua cuique distribuit. Em tradução livre, pois justiça é a virtude que distribui a cada um o que é seu.

[25] De officiis ministrorum, I, 24, 115 e 16, 62: secundo justitiam, quae suum cuique tribuit, alienum non vindicat, utilitatem propriam negligit, ut communem aequitatem cusdotiat. Em tradução livre, em segundo lugar, a justiça, que distribui a cada um o que é seu, não reivindica coisa alheia e nem negligencia a utilidade particular para conservar a equidade comum.

[26] Etimologias, II, XXIV: Iustitia, quia recte iudicando sua cuique tribuit. Em tradução livre, justiça, porque julgando retamente distribui a cada um o que é seu.

[27] Cf. Hervada (2008:75): “ver os seguintes textos de Santo Agostinho. De Civitate Dei, XIX, 21: ’Quae igitur iustitia est hominis, quae ipsum hominem Deo vero tollit et inmundis daemonibus sudit? Hocine est sua cuique distribuere? An qui fundum aufert eius, a quo emptus est, et tradit ei, qui nihil habet in eo iuris, iniustus est; et qui se ipsum aufert dominante Deo, a quo factus est, et malignis servit spiritus iustus est?’. Em tradução livre, portanto, que justiça é essa dos homens que tira o próprio homem do verdadeiro Deus e verte demônios imundos? Acaso isso é distribuir a cada um o que é seu? Por ventura é injusto quem retira uma terra de alguém de quem foi comprada e entrega a outro que não tem nenhum direito a ela? E é justo quem retira a si mesmo do Deus dominante, de quem foi feito, e serve a espíritos malignos?

De Civitate Dei, XIX, 4: ‘Quid iustitia, cuius munus est sua cuique tribuere (unde fit in ipso homine quidam iustus ordo naturae, ut anima subdatur Deo et animae caro, ac per hoc Deo et anima et caro), nonne demonstrat in eo se adhuc opere laborare potius in huius operis iam fine requiescere?’. Em tradução livre, Quanto à justiça, cuja função é distribuir a cada um o que é seu (de onde ocorre no próprio homem alguma justa ordem da natureza, de forma que a alma é submetida a Deus e a carne à alma, e por isso tanto a alma quanto a carne a Deus), acaso ela não demonstra ser ainda trabalhar nessa empreitada em vez de descansar nessa empreitada já finda?

De Alcuíno. Liber de virtutibus et vitiis, 35, 101, 637: ‘Iustitia est animi nobilitas, unicuique rei propriam tribuens dignitatem. In hac divinitatis cultus, et humanitatis iura, et iusta iudicia, et aequitas totius vitae conservatur’. Em tradução livre, Justiça é a nobreza da alma distribuindo dignidade a cada coisa.  Nela é conservado o culto à divindade, as leis dos homens, os julgamentos justos e a equidade da vida toda.

Também de Alcuíno. De anime ratione liber, III, 101, 640: ‘Nam quid est iustius quam Deum diligere eiusque mandata custodire, per quem, dum non fuimus, creati sumus, dum perditi fuimus, recreati sumus, et a servitute diabólica liberati, qui nobis omnia bona quae habemus perdonavit? (…) et iustitia, qua Deus colitur, et amatur, et recte vivitur inter consocias animas’. Em tradução livre, pois o que é mais justo que amar Deus e conservar suas ordens, através de quem, enquanto não estamos perdidos, somos criados,  enquanto estamos perdidos, somos recriados e liberados da servidão diabólica, quem deu a nós todas as coisas boas que temos ? (…) e a justiça, através da qual Deus é cultuado e amado e vive-se corretamente entre almas associadas.”.

[28] Suma Teológica, II-II, q.58, a.2.

[29] Suma Teológica, II-II, q.58, a.5.

[30] Suma Teológica, II-II, q.58, a.7 e a.8.

[31] Suma Teológica, II-II, q.61.

[32] Suma Teológica, II-II, q.58. a.1 ad 1.

[33] Suma Teológica, II-II, q.68. a.1.

[34] As considerações de Stammler (2008:248) são pertinentes: “Não tem sentido objetar que essa noção de um método absoluto de juízo é uma noção vazia. Quem faz essa objeção não nos diz qual conceito tem do conteúdo. O conteúdo de uma noção é constituído pelas características que a distinguem de outras noções. E uma característica própria compreende, inevitavelmente, todo pensamento. É absurdo, então, conceber uma noção carente de conteúdo. Essa objeção só pode ser explicada por uma confusão do conteúdo em geral com os elementos materiais concretos que podem integrá-lo. Porém, existem noções que carecem de toda característica materialmente condicionada e cujo conteúdo consiste na representação permanente de um método unitário de ordem. Entre elas, está a ideia do Direito.” Pode-se perceber que as formas puras a priori, como noções racionais alheias à experiência, não contêm nenhuma realidade existente. Nesse sentido e somente nele, são noções vazias de realidade, ao contrário de uma noção abstrata a posteriori.

[35] “Este comportamento social do homem será justo quando estiver de acordo com uma norma que o estabelece; ou seja, que o instaura como dever. Será injusto, por outro lado, quando for contrário a uma norma que estabelece um determinado comportamento que, por causa disso, adquiriu valor de justiça. A justiça de um homem é a justiça de seu comportamento social. E a justiça de seu comportamento social consiste em que está de acordo com uma norma que constitui o valor de justiça. Essa norma pode ser, então, denominada norma de justiça”.

[36] Ética a Nicômaco, L.V, 1129b: “de modo que, e\m certo sentido, chamamos de justo ao que é de índole para produzir e preservar a felicidade e seus elementos para a comunidade política”.

[37] A teoria deste importante filósofo político americano é composta pelas clássicas obras “Uma Teoria da Justiça” e a “Justiça como Equidade”.

[38] Qualquer atividade embasada por um sistema de regras que a estrutura, como os rituais, os jogos, os mercados e os discursos.

[39] Suma Teológica, II-II, q.58, a.11.

[40] Suma Teológica, II-II, q.58, a.10.

[41] Suma Teológica, II-II, q.57, a.1 e q.58, a.8.

[42] No sentido da techné grega, um saber-fazer orientado por regras determinadas.

[43] O perdão judicial consiste na clemência do Estado para situações expressamente previstas em lei, quando não se aplica a pena prevista para determinados delitos ao serem satisfeitos certos requisitos objetivos e subjetivos que envolvem a infração penal (causas de exclusão da punibilidade). O artigo 121, § 5º do Código Penal é um exemplo de perdão judicial: “Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”. Como magistrado, já tive oportunidade de aplicar essa espécie de perdão judicial por duas oportunidades (homicídio culposo na condução de familiares em veículo automotor) e a hipótese do legislador demonstrou-se de uma equidade e justiça exemplares.

[44] Artigo 620 do Código de Processo Civil: “Quando, por vários meios, o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.

[45] Eis os artigos do Código Iberoamericano:

Art. 35 O fim último da atividade judicial é realizar a justiça por meio do Direito.

Art. 36 A exigência de equidade provém da necessidade de moderar, com critérios de justiça, as consequências pessoais, familiares ou sociais desfavoráveis surgidas pela inevitável abstração e generalidade das leis.

Art. 37 O juiz equitativo é aquele que, sem transgredir o direito vigente, leva em consideração as peculiaridades do caso e resolve-o baseado em critérios coerentes com os valores do ordenamento e que possam estender-se a todos os casos substancialmente semelhantes.

Art. 38 Nas esferas de discricionariedade que oferece o Direito, o juiz deverá orientar-se por considerações de justiça e de equidade.

Art. 39 Em todos os processos, o uso da equidade estará especialmente direcionado para obter-se uma efetiva igualdade de todos perante a lei.

Art. 40 O juiz deve sentir-se vinculado não apenas pelo texto das normas jurídicas vigentes, mas também pelas razões nas quais elas se fundamentam.

[46] D., I, 1, 10. Reportamos o leitor ao conteúdo da nota de rodapé nº05.

[47] Onde há sociedade, há direito.

[48] A Paz de Westfália designa uma série de tratados que levou a termo a Guerra dos Trinta Anos e também reconheceu oficialmente as Províncias Unidas e a Confederação Suíça. É composta pelo Tratado Hispano-Holandês, que pôs fim à Guerra dos Oitenta Anos (assinado em 30 de janeiro de  1648 em Münster), e pelo Tratado de Osnabrück (assinado em 24 de outubro de 1648 entre Fernando III, Sacro Imperador Romano-Germânico, os demais príncipes alemães, além da França e da Suécia), encerrando o conflito entre estas duas últimas potências e o Sacro Império. Este conjunto de diplomas inaugurou o moderno sistema do Direito Internacional Público, ao acatar consensualmente noções e princípios como o de soberania estatal e o de Estado-nação. Embora o imperativo da paz tenha surgido em decorrência de uma longa série de conflitos generalizados, surgiu com eles a noção embrionária de que uma paz duradoura derivaria de um certo equilíbrio de poder, noção essa que se aprofundou com o Congresso de Viena (1815) e com o Tratado de Versalhes (1919).

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.