O Natal e o vaga-lume


vagalumes-800

Tragédia aérea em que morreram 71 pessoas, na maioria jovens. Corrupção em larga escala. Um país no qual não se vê saída para uma grave crise. Sobram motivos para tristeza, afinal, ainda há os dissabores da nossa própria vida que concorrem para um quadro geral de desânimo. Contudo, ainda é possível repetir com o poeta Manuel Bandeira: “Tenho todos os motivos, menos um de ser triste.”

Se a alegria fosse apenas um sentimento, isto é, um estado de ânimo passageiro, algo como acordar bem-disposto ou de mau humor, nossa vida seria uma roda de momentos mais ou menos compreensíveis. Nascemos para a alegria, embora haja tanta tristeza pela vida. Por isso, a alegria tem de ser outra coisa. Não uma emoção repentina devido a um sucesso, mas um estado habitual de ânimo que independa das circunstâncias, isto é, uma virtude. E a virtude é conquistada à custa de esforço. Por vezes, de lágrimas.

O que é a alegria? No conto “As margens da alegria”, Guimarães Rosa, com sua fina sensibilidade, a desvenda. A história conta a viagem de uma criança para Brasília com os seus tios. Chegando à cidade, que à época ainda estava em construção, viu um peru. Encantou-se pelo animal. Mas logo foi chamado pelos tios para conhecer a futura capital do País. Aguardou ansioso pela volta: queria se encantar novamente. Porém, ao chegar, só viu penas no chão. O peru fora sacrificado para um aniversário a ser celebrado no dia seguinte. Invadiu-o a tristeza. Porém, “alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe a alma”. Viu um vaga lume. E aconteceu o mesmo que ocorrera com o peru: o maravilhamento.

A história é tocante pelo fato de apresentar um menino e o que pode ter sido o seu primeiro contato com o sofrimento. A criança é espontaneamente alegre. Na narrativa, é claro o motivo: ela é simples. Um adulto, quando confrontado com a decepção, tende a guardar mágoa, causada pelo ressentimento, ou seja, por trazer uma e outra vez o episódio doloroso à memória. “No hay olvido”, escreveu Pablo Neruda.

Se não há esquecimento, não há perdão. Ora, perdoar a quem? Aos outros, é claro. Mas, em última instância, a Deus. A afirmação pode soar ousada, mas não é bem isso? “O autor da vida, aquele que pode tudo; por que permitiu esse acontecimento?” Note-se que o menino de “As margens da alegria” se entristece. Sofre, mas a atitude que lhe permite ser alegre é não se encerrar em sua tristeza. Não teologou mais, não filosofou. Perdoou e manteve-se de olhos abertos à beleza da vida.

O menino — que não tem nome, porque pode ser qualquer um de nós — não se tornou cínico, não deu a vida como vista, deixou-se surpreender. No livro Breve Tratado de La Ilusión, o filósofo Julián Marías afirma que a “ilusión” é fundamental na vida de qualquer pessoa. É uma palavra sem tradução para o português, mas pode ser definida pela atitude do menino no conto: querer com afinco algo da vida e estar sempre disposto à surpresa.

O Natal pode ser esse tempo de “re-querer” novamente da vida. Chegamos até aqui como foi possível. É natural precisarmos renovar a esperança para que ela nos traga a alegria. A história do menino ensina que o primeiro passo para conquistá-la é a contemplação. Lá, era um vaga-lume. Nessa época do ano em que vivemos, será um bebê cuja mãe, em meio ao sofrimento, sabe ver no r19ecém-nascido o seu vaga-lume e a grande “ilusión” da sua vida. Afinal, como escreveu Guimarães Rosa no livro Ave, Palavra: “Mas a Deus só se pode dar alegria”.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE – Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/12/2016, Página A-2, Opinião.