O fiel da balança

Sem Categoria | 01/12/2014 | |

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Já faz algum tempo que existe um certo consenso acerca da importância de um Estado democrático, sobretudo no velho e bom mundo ocidental, onde muitos parecem estar entediados desse valor, a ponto de se bandearem para as hostes do bando terrorista que está impondo a sharia a bala e fogo literalmente do outro lado do mundo. Lamento a má escolha feita, porque as instituições democráticas são a consagração histórica da dignidade da pessoa humana.

Contudo, por outro lado, há aqueles que endeusam o Estado – os exemplos estão diariamente nos jornais – e entendem que ele deve apresentar-se como a própria vox Dei ao pretender representar a vox populi e, assim, o Estado transforma-se numa espécie de bezerro de ouro, sobretudo na visão jacobina de democracia, em que o Estado personifica a “vontade geral” de Rousseau, sem que haja um tribunal de apelação. Nesse ponto de vista, é evidente que a sociedade assume uma posição posterior e inferior ao Estado.

Churchill dizia que a democracia é o pior de todos os regimes, excetuados todos os outros. A sabedoria de tal afirmação está no fato de que a política democrática não é a resposta última para os fins últimos do homem. Entretanto, ela é muito superior às outras formas de política, porque respeita a dignidade humana, protege os direitos do homem, promove um ethos de paz, possibilita o controle e a substituição dos governantes e zela pela justiça social.

Além disso, a democracia está aberta ao futuro e oferece um grande espaço para o exercício da responsabilidade pessoal e a busca do bem comum. De fato, são tantos bens que a democracia proporciona, que resulta difícil ter algum pendor para os outros regimes, embora haja muitos que estão apenas esperando a democracia enfraquecer para mostrar sua verdadeira máscara. Porque sabem que uma democracia, tal como hoje é vista, fundada apenas no procedimentalismo e no primado do princípio da maioria é uma democracia incapaz de sustentar os pressupostos morais e valorativos em que a mesma democracia busca erguer-se e, principalmente, sustentar-se. Seria como um castelo assentado na areia: na primeira intempérie mais forte, não resiste e desmorona.

Essa visão é um perigo a longo prazo, pois a democracia corre o risco de se tornar numa espécie de ante-sala de novos ensaios autoritaristas ou totalitaristas, “os outros regimes” a que Churchill referiu-se, e é provocada pelo relativismo ético reinante, compreendido por muitos como o fiel, na balança social, da tolerância, do respeito recíproco entre as pessoas e da adesão às decisões majoritárias, o que seria impossível se prevalecessem alguns absolutos morais, mais propensos, segundo essa ótica, ao descalabro democrático.

É inegável que, ao longo da história, foram cometidos muitos abusos em nome dos absolutos morais e que existe o risco real de que uns tantos, ainda hoje e apesar daqueles abusos, queiram impor uma opinião como se fosse um absoluto moral. Mas isso não é suficiente para prescindir dos absolutos morais, até porque muitos balaios de gato foram levados a cabo por aqueles que rejeitam qualquer ideia de absolutos morais: crimes não menos graves e negações radicais da liberdade e da humanidade foram cometidos e ainda se cometem em nome do relativismo ético.

Quando os absolutos morais deixam de nortear a ação social, as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder político ou econômico e a democracia, oca desses valores, converte-se num arremedo de si mesma. Mas não é só. Quando não se aceitam alguns absolutos morais, a lei passa a ser a substituta desses absolutos e o “aprovado democraticamente” transforma-se em critério prático para a atuação dos cidadãos, como se a democracia, em si mesma, fosse “o absoluto moral” definitivo. A democracia não é o outro nome do absoluto moral nem a panacéia da imoralidade: ela é um ordenamento e, como tal, um instrumento e não um fim “autorreferente” (Luhmann).

Sabemos que a democracia moderna surgiu como reação aos excessos absolutistas, em defesa dos direitos do homem e de um rol de valores que derivam da própria verdade do ser humano, isto é, a democracia moderna foi sendo forjada em prol de certos absolutos morais, em muito superiores à vontade arbitrária ou legislada de alguns homens sobre os outros. Horkheimer já nos recordava que “o mundo, que é relativo, pressupõe, segundo seu sentido, um absoluto”. Compete a nós a tarefa de discernir os absolutos morais e, depois, reconhecê-los como o verdadeiro fiel da balança democrática. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 1 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.