Novilíngua

Opinião Pública | 12/07/2017 | | IFE CAMPINAS

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Gosto de ler os textos dos jornais e panfletos acadêmicos. Uns valem pelo rascunho que proporcionam no verso, outros para aprimorar nosso nível de acerto à distância no lixo, outros para nos dar vergonha do nível de analfabetismo funcional dos alunos do nível superior e outros ainda pelas novas palavras que nos são ensinadas e manejadas com uma desenvoltura machadiana.

“Transfobia”, “autoidentidade de gênero”, “feminicídio”, “pansexualismo”, “família patchwork”, “eutanásia preventiva”, “gravidez indesejada”, “interrupção terapêutica da gravidez”, entre tantas outras novas palavras, muitas delas já usadas com naturalidade na mídia escrita e falada. A logomaquia é uma realidade muito comum nas sociedades em que a ideologia fala mais alto que a racionalidade.

A mais nova palavra com a qual me deparei, implementada de forma embrionária no laboratório do jornalismo acadêmico, é uma justaposição curiosa: “ultracatólico”. Logo, ela seguirá seu ciclo: uma vez fermentada, deixará a mídia marrom universitária e chegará na pena de algum formador de opinião anti-clerical da grande mídia.

Num primeiro olhar, tenho a impressão de que os católicos converteram-se num bando de fanáticos perigosíssimos, até porque ninguém é idiota o suficiente para achar que o qualificativo “ultra” não tenha sempre uma conotação negativa. Ou melhor, “ultra” negativa.

Num segundo olhar, é inevitável que o epíteto sirva tanto para o “catolicismo buffet” como, com mais lógica ainda, para o “catolicismo rottweiler”. Em suma, todo católico, só pelo fato de sê-lo, pois a metanarrativa de mundo dessa religião não tem mais espaço numa realidade líquida, já merece a tarja de “ultra”.

Como sempre sucede com a linguagem, é necessário definir a palavra antes de usá-la. Quem é o “ultracatólico”? Vamos dar a resposta real: é aquele indivíduo que não pode ser suportado por nossa sociedade aberta que, de aberta, está mais para fechada, porquanto patologiza quem não pensa e age segundo as linhas mestras da mentalidade contemporânea, ainda que tenha ponderáveis ou melhores argumentos contrários.

Exemplos abundam. Na barriga de aluguel, vende-se como algo normal o pagamento de uma mulher pobre para realizar a gestação de um ser que, ao nascer, ela terá que renegar como filho ou filha. Por isso, para se evitar tal incômodo, pretende se afirmar que esse filho ou filha tenha três pais.

Se um indivíduo nega-se a aceitar a normalidade desse contrato de locação do útero alheio, porque o comércio de seres humanos fere a dignidade da pessoa humana ou porque é biologicamente insustentável uma paternidade biológica tripartite, então, ele é um “ultracatólico”. Mesmo com apoio em argumentos de razões públicas, isso não adianta: a objetividade biológica ou a tutela de um direito universal viram um dado ideológico.

É impressionante a agenda da novilíngua. Lança-se uma palavra que não se entende muito bem e se declara que o apoio às suas pretensões consiste em militar em prol do “partido da verdade”. Impõe-se, como um pensamento único, toda a doutrina que sustenta esse neologismo e quem corre por fora converte-se em paladino da mentira, do ódio ou de qualquer fobia formada por uma nova composição por justaposição.

Se um católico não se adapta à nova fé, deve perder sua cátedra, sua profissão e sua palavra na mídia, mesmo que se oponha com argumentos baseados na racionalidade filosófica ou científica. Voltamos a “1984”. Nada significa nada, o “duplipensar” vira regra, as referências objetivas converteram-se em paradigmas superados e, como efeito, nada pode ser mais defendido de forma convicta.

Não se pensa e se aceita a novilíngua com um sorriso. Aceitam-se as lições de doutrinação na escola e na televisão. Em nome do relativismo total, defende-se, fanaticamente, dogmas construídos a partir da agenda dos ideólogos do mercado de ideias.

Quem não comunga com a “verdade oficial”, torna-se indigno de participar do jogo social. De fato, o totalitarismo não foi exclusividade dos bigodes de Stalin: a novilíngua é sua nova forma, testada e aprimorada na pena do estudante engajado – seu agente júnior – e, depois, consolidada na pena do formador de opinião militante – seu agente sênior. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 12/07/2017, Página A-2, Opinião.