Na morte, seremos pontuais

Opinião Pública | 02/12/2016 | | IFE CAMPINAS

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Deus já morreu. Nietzsche foi encontrá-lo e, nós, os vivos e alguns mortos-vivos, ainda acreditamos numa espécie de certeza delirante: somos imortais. Vivemos como se fôssemos eternos, porque, afinal, a morte alcança os outros, o vizinho e os velhinhos do asilo do bairro.
 
As tragédias mortais dos jornais nos abalam por uns dias e, depois, viram memória e vão se encerrar em algum limbo do córtex cerebral. Então, exibimos novamente nossos sorrisos. Imortais, é claro. Em novembro, costumo recordar dos meus mortos e, na medida em que envelheço, a lista aumenta. Um dia, farei parte da lista de alguém. Pelo menos, anseio por isso. A começar pelos meus.
 
Uma vez, li uma crônica de um autor português sobre esse macabro assunto. Um homem caminha no centro da vila. A Morte aparece, apresenta-se e diz: “Temos um encontro marcado. Seis da madrugada.” O homem, aterrorizado, vende todos os seus bens e, cavalgando sem parar, afasta-se da vila com a velocidade de um raio.
 
Muitas horas depois, e muitas milhas depois, sente-se cansado, dolorido e com sede. Decide se recuperar numa fonte ao longo do caminho de fuga. E a Morte, depois de ter olhado para seu relógio, surge novamente em cena com um sorriso: “Curioso. Eu poderia jurar que você não chegaria a tempo”.
 
O medo do fim é coisa moderna. Por muito tempo, a Dona Morte tomava parte no cotidiano e, quando ela batia na porta da alma do recém defunto, havia uma certa serenidade ritual. No século retrasado, a morte virou uma experiência estética: uma encarnação da beleza, para os românticos, e da tragédia, para os dramáticos. Na centúria passada, morrer virou uma fobia. Os funerais são ligeiros, as crianças são poupadas dessa “indignidade” e o melhor é nem ter mais uma lápide. Tudo em cinzas, espalhadas num jardim ou num lago. Por quê?
 
Não se faz justiça ao homem atual nem aos seus sonhos de eternidade, se não se analisa a expulsão da ideia de morte num mundo dominado pelas realidades do consumo desenfreado e da beleza sem limites. Na primeira, paira a lógica da descartabilidade das coisas, as quais são, cada vez mais rápido, destruídas e substituídas por outras mais novas e melhores.
 
Na segunda, fomos tragados pela histeria da saúde e da juventude, as únicas divindades que nos sobraram. A propaganda vende a falsa ideia de poder transformar qualquer Jeca Tatu num Davi de Michelangelo, depois de uma cirurgia aqui, outra ali, além de um monte de pílulas e complexos vitamínicos no pós-operatório.
 
Cemitérios vazios de almas vivas são o melhor sinal dessa pretensa eternidade, porque cemitérios cheios de corpos mortos são a pior recordação tangível dessa terrível “doença” chamada morte, a produzir efeitos na dimensão temporal. Falar de morte significa falar de tempo e vice-versa. Quando um contexto material anula a realidade da morte, o sujeito é precipitado para uma situação existencial em que prevalecem a circularidade e a simultaneidade das séries temporais: o Fábio Júnior já está no sétimo casamento e ainda tem idade para encarar mais outros três.
 
Mas não é só. Surge a ideia de que a estrutura social a que estamos submetidos é o nosso destino eterno. Então, boa parte de nós será “eterno” bem longe de uma ideia de paraíso idílico: numa estrutura social marcada pela busca do hedonismo materialista, muitos ficarão do lado de fora dessa festa “eterna enquanto dura”, porque não terão dinheiro para isso. Para os abastados, já que a dita festa não continua do outro lado do pano, é preciso aproveitar enquanto o pano não desce.
 

A morte, o único limite insuperável ao homem, é silenciada, porque, como já dizia Pascal, não podendo o homem remediar a morte, decidiu, então, para viver bem feliz, a não pensar mais nela. Não me parece que isso seja uma estratégia inteligente para se celebrar o dom da vida. Como na crônica portuguesa, podemos cavalgar toda a noite para bem longe do centro da vila. Mas, na hora marcada, ninguém chegará atrasado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 30/11/2016, Página A-2, Opinião.