Muito processo e pouca justiça


Meu vizinho gosta de ciprestes. Há uma dezena deles adjacentes ao muro aqui de casa. Eu também gosto de ciprestes, porque eles me lembram a Toscana, uma região italiana que me toca o coração, assim como a Provença, e é por isso que cultivo, domesticamente, a lavanda. E há várias delas plantadas bem embaixo da sombra da copa dos ciprestes do vizinho, porque boa parte dessa copa invade minha propriedade. 

E, ultimamente, meus afetos florais andam à flor da pele, com o perdão do trocadilho, porque, ao ver as lavandas subdesenvolvidas, por conta da sombra dos ciprestes, eu já não vejo a Toscana (e mesmo a Provença) do mesmo jeito, e o que é pior: a copa dos ciprestes transformou-se num grande condomínio de pombos, os quais passam, a maior parte do tempo, a alvejar as lavandas, cirurgicamente, com seus, digamos, “regalos pombalinos”, na falta de uma expressão melhor…

Fui conversar com meu vizinho. Expliquei os fatos e o chamei à responsabilidade, mas, diante de seu misterioso silêncio a respeito, só me resta “procurar meus direitos”, como lembrou minha fiel empregada. Casa de ferreiro, espeto de pau? Não. Mas confesso que, se um processo assim fosse parar na minha mesa, eu começaria a audiência dizendo mais ou menos assim: “Sem dúvida, precisamos resolver isso, além dos quase cem milhões de ações que abarrotam os juízes brasileiros, mas creio que um bom acordo seria melhor para as partes envolvidas. Menos para os pombos, é claro!”.

Nos últimos anos, os tribunais vêm tentando responder à crescente demanda de conflitos impulsionada pelo fenômeno da judicialização sistêmica de todas as questões cotidianas, como se o âmbito judicial fosse o mais apropriado ou o único para a resolução de todos os problemas políticos, econômicos e sociais. A prevalecer tal raciocínio canhestro, logo, nessa toada, teremos mais processo que população.

No modelo positivista jurídico, o magistrado ocupava um papel profissional sem muita transcendência social, já que a capacidade configuradora social competia ao legislador e, aos juízes, competia apenas repetir a norma geral, asséptica e logicamente, no caso concreto. Atualmente, o juiz vê-se obrigado a assumir aquele papel de transformação social, em razão daquele fenômeno.

A judicialização sistêmica é explicada a partir da realidade anônima das sociedades ocidentais contemporâneas, onde o vazio deixado pela ausência de uma ética social comum pretende ser preenchido pelo direito. É uma pretensão, dentro dos limites de eficácia do direito, que resulta excessiva, pois acaba por transferir ao juiz a resolução de problemas que teriam seu foro adequado e natural junto ao legislador ou na órbita da mediação e da conciliação pré-processual, somado ao fato de que existe uma impossibilidade judicial intrínseca de se oferecer soluções efetivas a muitos problemas que não são jurídicos.

Na prática, em nossa visão privilegiada de magistrado há quase dezesseis anos, a judicialização sistêmica exacerba os limites de um saudável protagonismo judicial, porque ao transcender o campo estritamente jurídico, provoca reações e inquietudes polêmicas. Salvo na realidade jurídica norte-americana, porque sua constituição alçou os magistrados da Suprema Corte à condição de árbitros sociais, a completa judicialização das pautas de uma sociedade acaba por gerar um perigoso “governo de juízes”, chamado de ativismo judicial pelo senso comum, e, ao cabo, uma série de interrogantes sobre o protagonismo institucional dos juízes numa ordem social.

Nesse ritmo, deixaremos um extremo para assumir o outro: a distância que há entre a famosa definição de Montesquieu sobre os juízes como seres autômatos e inanimados, o juiz como a tal “boca da lei” (hoje, como o nível normativo anda meio diarreico, melhor seria “fossa da lei”), e o ativismo judicial marca também a distância que há entre dois erros: somados, não configuram um acerto.

Não é o melhor dos cenários sociais. Aquilo que a sociedade poderá vir a ter como experiência judicial repousará nas consciências dos juízes, tentadas a deixar um saudável protagonismo institucional em prol do puro ativismo judicial. Por isso, convém refletirmos se não é chegada a hora de resgatarmos uma verdadeira ética social que supere nossa realidade anônima e litigante, a qual, atualmente só serve para produzir muito processo e pouca justiça. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação e coordenador do IFE Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br)

Publicado no jornal Correio Popular, dia 10 de setembro de 2014, Página A2 – Opinião