Monopólio da cidadania


A esquerda sempre teve um cacoete muito grave: o de se enxergar como detentora do monopólio das virtudes. Os pensadores e filósofos que construíram o socialismo e suas vertentes o fizeram de suas casas amplas e aristocráticas, amparados pela riqueza de suas famílias. O mundo dos pobres e dos desfavorecidos nunca lhes foi nada além de um mundo imaginado, de uma realidade extremamente distante, razão pela qual suas soluções para os problemas de desigualdade social sempre geraram cada vez mais pobreza em todos os lugares onde foram implementadas.

Mas, a despeito do fracasso prático dessas soluções e ideias, o simples fato de declararem uma preocupação para com os mais pobres parece ser mais que suficiente para inflar o ego de grande parte dos militantes de esquerda. Aqui no Brasil o fenômeno é facilmente identificável entre os membros do partido governista, o PT, desde o seu surgimento até os dias de hoje. Sua fundação foi auto-aclamada como a de uma agremiação até então jamais vista, composta de “salvadores da pátria”, gente que iria injetar uma dose cavalar de ética e honestidade na política brasileira. Muitos que participaram desse início dificilmente poderiam ser considerados representantes dos trabalhadores que se propunham defender; os que o poderiam fazer com alguma legitimidade, caso do próprio Lula, se transformaram, durante os muitos anos no poder, em exemplos máximos da nova aristocracia brasileira, vivendo um estilo de vida que nem os homens mais bilionários do planeta costumam viver. Cruzam o país em jatos particulares, bebem garrafas de vinho mais caras que um automóvel, e continuam dizendo que são do povo, e contra a elite.

Do alto de sua pseudo-humildade megalômana acusam todos os que não concordam com suas posturas, ideias e ações de serem contra os pobres, transformando-os em bodes expiatórios da nação. Sim, todos aqueles que não querem o governo do PT e que estão se manifestando contra ele nas ruas estão sendo difamados e caluniados pela liderança petista. Manifestantes que marcam suas passeatas no final de semana, pois não podem se dar ao luxo de perder um dia de trabalho, que não vandalizam o patrimônio público e nem o privado, que não colocam máscaras para esconder seus rostos, que não colocam fogo em pneus para bloquear estradas, esses são chamados de golpistas, de antidemocráticos, de elite branca, de burguesia inconformada. A diferença entre o discurso e a realidade é tão gritante que chega a ser ofensiva à inteligência. Quando o MST invade os gramados de Brasília e agride policiais, a presidente da república os chama para dialogar. Quando milhares de pessoas tomam pacificamente as avenidas de São Paulo num sábado à tarde, o partido da presidente da república os chama de golpistas, fascistas e reacionários.

O que nos resta? A quem não faz parte das minorias agraciadas pelo PT foi reservada uma categoria diferente: a de cidadão de segunda classe. Os que não se qualificam para nenhuma bolsa, para nenhuma ajuda governamental, que não se beneficiam por conta de seus antepassados negros ou indígenas, que não são filiados ao partido, que não têm cargos comissionados na máquina estatal petista, esses todos, que compõem a maioria dos brasileiros, não podem sequer exercer seu direito de expressão, pois qualquer opinião ou ação contra o governo é rapidamente classificada como quase criminosa, como um atentado à democracia. Não que isso seja algo espantoso – o PT sempre deixou claro em seus documentos e congressos que tinha como objetivo a hegemonia, e isso significa massacrar toda e qualquer oposição, mesmo a de ideias. O próprio Lula já comemorou em público a ausência de candidatos de direita nas eleições presidenciais, como se isso fosse a coisa mais saudável do mundo. Pluralidade não é uma palavra muito querida por ele e seus companheiros de partido, a não ser quando aplicada a reais, dólares ou euros.

Já passou de hora de desmascarar esses “homens do povo”. É isso que nos resta, expor suas contradições, sua hipocrisia e suas mentiras. Eles têm o poder do estado e do dinheiro farto, mas não têm ao seu lado a verdade. Enquanto houver espaços a ocupar onde se possa falar a verdade, ela acordará pessoas e libertará mentes. Assim eu espero.

Flavio Quintela é bacharel em Engenharia Elétrica, escritor, tradutor de obras sobre política, filosofia e história, e membro do IFE Campinas. É o autor do livro “Mentiram (e muito) para mim”. (flavio@quintelatranslations.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de novembro de 2014, Página A2.