Medida por medida


Recordo-me, até hoje, a primeira vez que tentei esboçar umas linhas sobre Shakespeare e o Direito. Foi no segundo ano da faculdade, logo depois que a professora ensinava a regra do stare decisis, uma doutrina que dispõe sobre a observância obrigatória dos precedentes legais. Ato contínuo, ela emendou um comentário, ao dizer que a relação entre o Direito e a originalidade era fundamentalmente diferente da relação da Literatura com a originalidade.
 
Em outras palavras, ela afirmou que o Direito não valorizava a originalidade, ao contrário da Literatura. Segundo aquela regra, se um juiz encontra um caso essencialmente idêntico àquele que está a examinar, sua reputação cresce, ao contrário de um escritor, o qual nunca tem seu prestígio aumentado por dizer que alguém já havia manejado certa abordagem.
 
Os dias passaram-se. Não precisei refletir muito para concluir que, na condição de devoto de Shakespeare já naquela época, muitas obras literárias extraíam seu vigor de seus predecessores canônicos e, logo, propus-me a cotejar a regra jurídica do stare decisis com a estratégia literária utilizada na peça “Rosencrantz e Guildestern estão mortos”, de Tom Stoppard, na qual se altera o significado de seu predecessor canônico, “Hamlet, o Príncipe da Dinamarca”, sem qualquer contestação de seus fatos e cuja trama se dá pelo envio de ambos os cavalheiros, pelo tio de Hamlet, para conter a ira do sobrinho e desvendar a origem de sua loucura.
 
Em minha perspectiva judicial e docente, o Direito permeia a obra de Shakespeare. Não existe sociedade sem Direito. A responsabilidade é irmã gêmea da liberdade. A misericórdia tem espaço no mundo jurídico. O poder deve ser exercido legitimamente e sem abuso ou desvio. A ordem legal é penhor da ordem social e o advogado é o fiador daquela ordem. O devido processo legal é um marco civilizatório da humanidade. A distribuição da justiça não pode ser nem empática e nem rigorosa, mas prudencial.
 
Todos esses temas, além de muitos outros, têm acentuado matiz na obra de Shakespeare e provocam, na cabeça do leitor, um raciocínio e uma hermenêutica típicos dos julgamentos nos tribunais, a ponto de saturá-la num mar sem fim de discussões provenientes das tramas e dos textos shakespearianos. Em suma, no cânone shakespeariano, Literatura e Direito podem ser perspectivados, a fim de se examinar instituições, aporias, problemas e soluções com as quais convivemos diariamente na fria realidade dos processos judiciais.
 
A obra shakespeariana é capaz de redirecionar nosso olhar estético sobre o mundo e nobre nossa humanidade, com sua imperfeição e miséria, de maneira a propiciar a dilatação de nossa sensibilidade em prol de uma melhor apreensão de estratégias retóricas, dos ditos e dos não-ditos que costumam povoar os textos legais. Em suma, a obra de nosso bardo nos ajuda na tarefa de julgamento: colocar-se no lugar do outro, relativizar muitas de nossas certezas sobre assuntos contingentes e lembrar-se da beleza e da tragédia da condição humana.
 
As inesquecíveis personagens de Lear, Hamlet, Falstaff, Catarina, Ulisses, Ricardo III, Otelo, Desdêmona, Shylock, Pórcia, Ofélia, Brutus, Henrique V, Macbeth, Romeu, Julieta, Vicêncio, Ângelo, Iago – todas elas envolvidas, afinal, em situações passíveis de recondução ao universo jurídico – iluminam as atualidades do Direito com a luz potente do rumor shakespeariano. Quando lemos Shakespeare, em razão de nossas constantes idas e vindas ao tribunal de nossa consciência durante a leitura, creio que, na verdade, é ele que, ao nos penetrar, acaba por nos ler.
 
Minha professora me incentivou a escrever o trabalho a que me propus, tendo sido publicado na revista jurídica dos alunos da faculdade. Foi meu primeiro artigo jurídico. Como informação legal, um rotundo fracasso; como contributo literário, um libelo esforçado. Enfim, pelo menos, serviu a um propósito: firmou minha convicção de que, como bacharel, eu sempre poderia e iria encontrar, medida por medida, um lugar, na Literatura, para o Direito. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 02/11/2016, Página A-2, Opinião.