Maravilha de mulher

Opinião Pública | 04/10/2017 | | IFE CAMPINAS

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“Eu queria salvar o mundo. Acabar com a guerra e trazer a paz às pessoas. Mas depois eu vislumbrei a escuridão que vive dentro da luz delas e aprendi que, dentro de cada pessoa, sempre haverá ambas e uma escolha que cada um deve fazer para si. Algo que nenhum herói será capaz de mudar. E, agora, eu sei que somente o amor pode verdadeiramente salvar o mundo. Então, eu luto e me dou pelo que sei que o mundo que pode vir a ser. Essa é a minha missão. Agora e para sempre”.

Com essas palavras, nossa heroína, Diana, faz o epílogo do filme que protagoniza como a mais famosa das amazonas na pele da mulher-maravilha. Na película, Diana, paulatinamente, esforça-se por descobrir o ser humano, não sem alguma incompreensão aqui e ali, já que via muita discórdia entre os homens e seu inimigo e irmão, o deus Ares, achava o homem um ente caído.

No plot do filme, esse desvelamento do ser humano dá-se no contexto bélico da 1a GM. A guerra é sempre impessoal. São nações enfrentando-se com interesses manejados pelos governos, aos quais o povo costuma permanecer alheio. Somente quando quem está do outro lado da trincheira é personalizado e assume a forma de uma pessoa concreta e real, a violência esvazia-se, perde sentido e o entendimento se torna possível.

Ortega y Gasset explica bem a necessidade de se personalizar o outro para entendê-lo, quando aponta que podemos julgar um absurdo o ato do outro, justamente porque não percebemos ser uma reação diante de coisas que nós não conseguimos ver. Não percebemos a paisagem que rodeia ao nosso interlocutor, a quem criticamos. Não notamos que o único modo de compreendê-lo é esforçar-se por reconstruir e adivinhar sua paisagem, o mundo com o qual está em diálogo vital. E para ver essa paisagem, que não é a nossa, precisamos buscar com lealdade as pupilas adequadas, ainda que, muitas vezes, pareça que estejamos a lançar um olhar cego para a luz.

Essa ideia nos introduz no fascinante tema da empatia, encarnado por Diana ao longo da película: sentir com os outros, colocar-se no lugar dos outros. Algo que está na boca de muitos, mas que, na prática, é sempre um desafio. Tendemos a nos fechar na realidade de nossa concha vital e, mesmo quando tentamos nos colocar no lugar dos outros e ver com os olhos deles, ainda estamos presos aos nossos filtros de leitura da realidade, cuja trama é feita pela perspectiva de nossas próprias categorias existenciais.

Calçamos os sapatos dos outros, mas com os nossos próprios pés e não entendemos como é ter os pés dos outros. Não é a mesma coisa. A advertência não é minha, mas de Edith Stein, essa santa judia que, como doutora em filosofia de uma tese sobre a empatia nos anos 10, teve sua fonte de pesquisa não apenas a fenomenologia de Husserl, de quem era discípula, mas sua atuação como enfermeira voluntária na 1a GM.

Curiosamente, a mesma guerra onde Diana, junto com Steve Trevor, o major-aviador-espião, participa e, por muito tempo, anda a tatear na paisagem dos outros, porque apegada às próprias pupilas até o momento em que ele sacrifica a própria vida por amor a ela, por mais piegas que isso pareça. Bom, isso é uma pieguice para um mundo dominado pelos esquemas sociais de racionalidade weberiana e pelo eficientismo econômico que coloniza as demais dimensões da realidade humana.

Então, daquele sacrifício surge a mudança de foco nas pupilas de nossa amazona, que passa a viver, nobremente, de empatia pelos homens. A verdadeira nobreza não é aquela que vem do sangue, mas de outro lugar, bem ao alcance de todos: a nobreza de ânimo de quem abre seu coração à sabedoria do outro e abandona o culto confuso ao próprio ego, a ponto de criar, como efeito, um certo desconcerto à sua volta, porque o indivíduo transforma-se em levedura que rompe com o eu conhecido e se abre ao outro desconhecido.

Ser empático é uma filosofia de vida e, como toda filosofia, tem a pretensão de ser “amor ao saber”, mas que, no caso de Diana, deveria ser o “saber do amor”, porque ela soube exprimir um profundo anseio existencial, o de conhecer a verdade do ser humano.

Eis uma heroína de prato cheio, dotada de um protagonismo forte e determinado, mas, ao mesmo tempo, sendo empática e capaz de amar. Parabéns à diretora do filme. Brindou-nos com um papel principal que não se resume a um mero símbolo sexual e nos mostrou que uma mulher, como heroína, é muito mais completa que qualquer herói macho já inventado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 04/10/2017, Página A-2, Opinião.