Mais justiça e menos direito?


Ouvi, recentemente, uma procuradora da república afirmar que “precisamos mudar nosso sistema urgentemente, no qual ricos e poderosos saem impunes e pobres e humildes pagam pelas brechas do sistema. Impunidade para uns e penas severas para outros. Reflitam: precisamos de mais justiça e menos direito!”.

A declaração caminhava muito bem no diagnóstico. De fato, ainda que de uma forma bem simplificada, o sistema a que ela se referia – o penal – guarda muitas iniquidades intrínsecas e, ao que parece, o julgamento do mensalão e a operação “Lava Jato”, com algumas ressalvas aqui e ali, animam nossa esperança por dias melhores para o mundo forense do direito criminal.

Quando chegou no prognóstico, a declaração não foi das mais felizes. De fato, coloquei-me a refletir: direito e justiça são expressões antagônicas, isto é, o império de um acarreta o ocaso do outro? Reformulo a questão: pode haver justiça fora do direito? Sigamos, então, a sugestão da procuradora. Vamos queimar os neurônios.

Dentre os vários problemas que as sociedades enfrentam, boa parte deles prende-se com a questão da justiça: direitos humanos, direitos sociais, intervenções militares da ONU, criminalidade, desobediência civil, cotas raciais, aborto, eutanásia, feminismo, direitos das minorias, proteção ao meio ambiente, educação e saúde entre outros temas candentes.

Cada um desses pontos é uma verdadeira arena de combate intelectual e prática e todos eles comportam uma boa dose de subordinação a um desejo de justiça. Kant já dizia que a maior miséria dos homens procede mais da injustiça entre eles do que da má fortuna. Ele também nos recordava que, se o fundamento da ética social é a dignidade da pessoa, da qual derivam seus direitos fundamentais, o centro é a justiça, pois a justiça é a virtude que protege a dignidade da pessoa e a que regula seus direitos e deveres.

Já Platão relacionava a justiça à saúde e a injustiça à enfermidade, ao sentenciar que a justiça e a injustiça são exatamente parecidas às coisas sãs e malsãs. Uma sociedade justa é sã e, uma sociedade injusta, malsã. Assim, a justiça é, pois, uma noção fundamental da existência humana e constitui, ao lado da verdade e do bem, a trilogia dos grandes conceitos humanos. Pelo contrário, a injustiça guarda relação com a mentira e o mal.

O ofício do profissional do direito, sobretudo do juiz, tem uma íntima ligação com a justiça, porque a justiça consiste em dar a cada um o seu direito. Ao discernir e assinalar prudencialmente entre este e aquele direito, o profissional do direito relaciona sua conduta, num caso concreto, a um saber-fazer justo, pois, muito embora não deva realizar sozinho a obra da justiça, deve, para ser fiel a seu ofício, ser pessoalmente justo, no sentido de amante da justiça. Do contrário, dará ouvido à injustiça e terá se corrompido.

Ao tensionar a justiça do caso concreto, o profissional do direito atende à uma necessidade social bem específica, a de criação de uma ordem social justa: uma ordem em que cada pessoa e cada instituição tenha o seu, aquilo que lhe pertence e cabe. Dado que a vida social é cambiante e o direito de cada um pode estar em situação de interferência por uma ação ou omissão alheia, gera-se um dinamismo orientado para estabelecer ou restabelecer uma situação devida. Então, só pode haver justiça com o direito.

Ao cabo, tentar separar a justiça do direito serve apenas para misturar alhos com bugalhos. O direito que temos, posto pelas leis, pode não ser o direito ideal para uma sociedade idealmente justa. Infelizmente, eu não conheço nenhuma sociedade terrena idealmente justa. Até lá, prefiro que a justiça ande de mãos dadas com o direito, porque, historicamente, tudo que começou com “mais justiça e menos direito” acabou em “menos justiça e nenhum direito”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 05/10/2016, Página A-2, Opinião.