Luzes e Sombras

Opinião Pública | 19/08/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print
Share Button

A capacidade de refletir conduz-nos à admiração, que é uma das facetas mais impressionantes do ser humano. A filosofia antiga não tinha problemas com isso. Depois de Bacon e Descartes, substituímos a contemplação pela dúvida metódica: durante séculos nessa trilha, como resultado, vivemos no desencanto. No lugar da confiança que a admiração deposita na realidade, introduzimos a desconfiança da hesitação.

A admiração sempre nos ajuda a dar conta de que o mundo é mais profundo, belo e misterioso que parece ao senso comum das coisas e apesar das contradições e misérias que nos cercam. Inclusive, as de cada um. Da admiração nasce a alegria, já afirmava Aristóteles. Por isso, na medida do possível, devemos ver as coisas pelo olhar da filosofia: não tomar as coisas com resignação, mas com espírito de reflexão que vai nos levar à admiração. É uma meta que abre novos horizontes, pois toda admiração carrega consigo uma esperança intrínseca.

Uma pessoa que admira não fica fechada no seu pequeno mundo. Excede-se e, nesse exceder, arrasta os outros. Ou, pelo menos, cria um sinal de contradição, sobretudo no mundo em que boa parte das pessoas – e compreende-se perfeitamente – perambula pelos becos do pessimismo ou pelos labirintos do ceticismo.

Quantos pensadores buscaram consolo na filosofia no cárcere ou na iminência da execução de uma pena capital! Boécio escreveu sua célebre obra “Do consolo pela filosofia”. Tomas More redigiu seu famoso “Um homem só”, um conjunto de cartas escritas e recebidas enquanto esteve aprisionado no calabouço da Torre de Londres.

A admiração interior mantém vivo o conhecimento de que a existência é, a partir de um dado limite, incompreensível e mesmo misteriosa, mas, ao mesmo tempo, plena de sentido. Na medida em que se descobre o sentido da própria existência, pode-se experimentar – mesmo no cárcere – uma profunda felicidade, ainda que isso soe um tanto incompreensível para nossas mentalidades arraigadamente cartesianas.

Quando se dedica à reflexão, alcança-se, aos poucos, os alicerces da realidade e, mesmo que se chegue à algumas conclusões sobre nós e o mundo, sempre será possível se aprofundar mais, porque um saber fechado e a reflexão excluem-se. Nessa área, ao contrário da gastronomia, não se dão receitas. Ao contrário do ensino fundamental, não existem respostas de cartilha.

Quanto mais profunda e extensamente caminha-se na reflexão, mais se abre ao horizonte intelectual o imenso campo daquela dimensão que ainda se está por compreender. Por isso, vai-se e volta-se da reflexão pela contemplação. Muitos pensadores finalmente compreenderam a filosofia quando passaram a contemplar a ordem do universo.

Essa contemplação tem uma estação final: a experiência divina. Aristóteles não duvidou em qualificar a filosofia como uma “ciência divina”. Wittgenstein afirmava que, quando o filósofo pergunta pelo sentido das coisas, só uma resposta divina é capaz de dar sentido à vida. Horkheimer acreditava ser inútil pretender salvar um sentido incondicionado sem Deus. Quanto mais se conhece o mundo, tanto mais se percebe seu caráter transcendente.

O homem moderno vê boa parte de suas perguntas científicas resolvidas, mas lhe faltam ainda as respostas de seus problemas existenciais. E, quem não vive uma vida examinada, termina sua existência encerrado pelo preconceito, pelas opiniões voláteis e pelos modismos de época. Quem não pensa por conta própria, não reflete. Não se admira. Não contempla. Não é livre.

Conhecer a fundo nossa cabeça é a melhor maneira de evitar outra igual. É um tipo de remédio – para a cura de muitos de nossos males existenciais – que não se vende na drogaria da esquina, não se retira num posto de saúde ou se requisita na farmácia de alto custo do governo. E tem uma posologia simples: a posologia da busca do conhecimento. De si mesmo e do mundo. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 18/9/2015, Página A-2, Opinião.