Leandro Karnal e o autismo


12079430_786772644765012_5875047528865667158_n

No dia dois de outubro, o professor Leandro Karnal ministrou uma palestra no Café Filosófico, na CPFL Cultura. Muito concorrida, como de costume. Fui testemunha porque, como moro perto do local, passava por lá de carro e pude ver a fila que se formou para escutá-lo.
Ao que tudo indica, a palestra foi brilhante. Contudo, ao fim da apresentação, uma senhora fez uma pergunta ao professor: por que insistia em usar o termo autismo como metáfora de pessoas isoladas, que se distanciam dos outros? A resposta de Karnal não poderia ter sido mais equivocada. Lamentou o politicamente correto reinante na sociedade e o patrulhamento de palavras que ocorre na sociedade de hoje. E ainda publicou o vídeo na internet.
Breves parênteses: um dia antes, ocorria um novo massacre nos Estados Unidos. Um homem de 30 anos, Christ Mintz, teve um gesto heroico: acionou o alarme, avisou os alunos para fugirem e voltou ao lugar onde estava o atirador para fazer algo. Antes de levar o primeiro tiro, pediu para não ser alvejado, pois naquele dia seu filho completava seis anos. O filho é autista. Mintz levou sete tiros, mas passa bem.
Fiz esses breves parênteses, porque sei que os pais e as mães de crianças nessa condição fariam o mesmo. O primeiro pensamento que nos vem à mente são sempre nossos filhos, que dependem tanto de nós. Certo, todo filho precisa de seus pais, mas o que dizer dessas frágeis criaturas?
Nós, pais de crianças com autismo, não queremos policiar as expressões de ninguém, não queremos impedir qualquer pessoa de falar sobre autismo. Pelo contrário: quanto mais gente, ainda mais da capacidade intelectual de Karnal, tocar no assunto, melhor. Mas do modo correto, que impeça o preconceito. Sei que a intenção do professor não foi má, porém, a pergunta da senhora também não foi.
Sabemos que poucas pessoas sabem como lidar com os nossos filhos. Não é fácil. Quando a criança busca um canto para se refugiar, pensa-se que ela não gosta dos outros, que prefere mexer as suas mãozinhas ou fazer sons estranhos. Mas, hoje já se sabe que os autistas têm interesse pelos outros. O problema é que eles não sabem como interagir com as pessoas, nem elas com eles. Não é um mundo à parte, mas diferente.
Um colega contou-me que escutou a conversa entre dois alunos de treze anos. Um disse: “Fui ao Mac Donalds outro dia e o atendente era down. Sabe o que eu fiz? Pedi um Mac down”. É essa a sociedade que queremos? Meu colega corrigiu com veemência o aluno e explicou que aquela pessoa era uma vitoriosa, assim como sua família, pois lutaram e lutam para que o portador da síndrome tenha uma vida digna.
Portanto, não se trata de politicamente correto, de patrulhamento. Trata-se de vidas, de pessoas que amam seus filhos e querem proporcionar-lhes, dentro de todas as suas limitações, o melhor possível.
Acabei de ler a edição espanhola do livro de Josef Schovanec, “Je suis à l’Est”. Schovanec, além de autista, é filósofo, escritor e militante pelos direitos dos autistas. Na obra, descreve que, quando era criança, tinha medo dos coleguinhas: “No plano social, estava sozinho. Tinha medo dos outros; infelizmente, por uma boa razão: recebia pancadas diariamente.” Em outro trecho: “As crianças sabem logo quem será popular e quem será rechaçado. A sociedade dos adultos é similar, mas sua hipocrisia mais refinada: em lugar de bater diretamente, utilizam expressões de exclusão, certas atitudes, para atingir um objetivo mais ou menos análogo.”
Hoje, Schovanec tem 30 anos e ainda se lembra dessas feridas. Eu desejo uma sociedade mais humana. Desejo que meu filho não passe por isso.
Aliás, sr. Karnal, a senhora que fez a pergunta é autista.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE-Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/10/2015, Página A-2,Opinião.