Juízes operadores


Não é novidade para nenhum cidadão que o Poder Judiciário vem sendo alvo da sanha institucional do CNJ, com avanços inegáveis e algumas ressalvas aqui ou ali, sobretudo quando o mesmo órgão insiste, muitas vezes, em tratar os tribunais brasileiros sob a perspectiva de um Estado unitário ou quando resolve assumir o papel de delegacia de polícia das “vítimas” dos juízes. Enfim, esse embate intestino não interessa muito ao leitor. Mas outro bem concreto.

Ao leitor, o destinatário de nosso serviço público, interessa muito mais um outro Poder Judiciário: aquele das práticas judiciárias, porque diretamente envolvidas com o cotidiano do cidadão e que respeitam ao trabalho diário do magistrado de assinalar e distribuir a justiça no caso concreto.

Convém lembrar ao leitor que vivemos numa sociedade de massas e, por isso, tais práticas judiciárias vêm sendo conduzidas muito mais sob a perspectiva de uma eficiência desbussolada do que de uma preocupação com o justo concreto. É a visão, crescentemente hegemônica, que está na raiz da práxis dos principais atos administrativos tanto dos tribunais como do CNJ, a enfocar a ritualização do “modo de produção” de decisões pelo juízes.

As práticas culturais e sociais contemporâneas, desde há muito, têm sido colonizadas pelo dado técnico, neutro, padronizado e informático. Lembram muito uma linha de produção fordista-taylorista. Ou, na versão atual, um modelo toyotista. Não tenho a menor dúvida que esse movimento colonizador é a causa daquela perspectiva eficientista, até porque as práticas de distribuição da justiça são, no fundo, práticas sociais.

Como representante do baixo clero judiciário, tenho a sensação de que a ritualização do “modo de produção” das decisões já provoca uma estéril postura reflexiva do magistrado no ato de julgar. Em outras palavras, o efeito prático dessa ritualização é simples: mais juízes operadores, expressão que diz muito, e menos juízes prudentes, na acepção greco-romana do termo.

Isso já pode ser notado em muitas expressões do jargão forense. Numa audiência, um advogado disse que o mais importante era a rapidez dos tribunais na solução dos litígios. De fato, a lentidão judiciária gera impunidade, injustiça e fomenta um clima social de autotutela, mas a dita rapidez tem um lado oculto: o maior risco de erro judiciário, o que também é uma injustiça e provoca o desprestígio da instituição.

Outra expressão que vai se sedimentando no inconsciente coletivo judiciário é a chamada “decisão técnica”. Nada mais positivista que isso, porque o positivismo responsabilizou-se pela transformação da justiça em técnica decisória, por meio de uma racionalidade dogmática que foi alimentando o processo de definição do justo pelo legalmente positivado.

Contudo, o pior efeito dessa ritualização do “modo de produção” é a prolação de sentenças em série e a votação de recursos em bloco, pois, aos poucos, tais práticas vão despersonalizando a figura do juiz e, indiretamente, desumanizando o poder que zela pela distribuição da justiça.

Ao cabo, a impressão que fica é a de que, para o CNJ e para os tribunais, o importante mesmo são os números dos itens e subitens das planilhas mensais: a estatística é erigida à condição de racionalidade laborativa e “torna-se o método de cálculo do rendimento profissional e do merecimento promocional”.

Rapidez, tecnicidade e estatística: eis os deuses idolatrados pelos tribunais e pelo CNJ. Mas são deuses de pés de barro, porque a “justiça” dessa racionalidade desumanizante é a “justiça” que se fecha à reflexão, à prudência e à tomada de decisão inserida na articulação do real concreto, fragilidade que, com o tempo, será percebida pela sociedade em que vivemos.

E, então, aqueles deuses cairão pela ação do próprio peso, porque uma sociedade repleta de juízes operadores é uma sociedade vazia de justiça. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 12/10/2016, Página A-2, Opinião.