Igualitarismo entediante

Opinião Pública | 10/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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A perspectiva de ser novamente pai numa outra fase da vida é realmente estimulante. Faz com que o pendor da reflexão gire não só em torno de fraldas, mamadeiras, noites mal dormidas, choradeiras e cólicas infantis sem fim e tudo mais que, sem uma visão mais transcendente da paternidade, reduz-se a um estorvo destinado a loucos ou inconsequentes. Ser pai é muito mais que isso: é pertencer a uma relação de amor com uma outra em prol da abertura à uma nova vida ao mundo. É, ao mesmo tempo, ser tão distinto quanto tão complementar com aquela que escolhemos para conviver, envelhecer e morrer.

Num mundo em que a ortodoxia politicamente correta não está muito disposta a tolerar a ideia de família fundada na distinção e na complementariedade entre um homem e uma mulher, um dado antropológico até mesmo reconhecido pelo maior expoente da etnografia estruturalista, sempre olho com muito respeito, mas conferindo-lhe o devido valor na escala de fins educativos e de perpetuidade social, as propostas de qualificação da família baseadas em conceitos de natureza ideológica que somente gozam de força num determinado momento histórico e, depois, caem como as folhas de outono.

Nessa ótica, assim, a família deixa de ser meramente “família” e passa a ser “família conservadora”, “família progressista”, “família multiparental”, “família pluriconjugal”, todas dignas de proteção legal, sem dúvida, mas cada qual segundo sua importância em prol daqueles fins, a serem medidos pela régua de lesbos aristotélica e não conforme a régua igualitária cartesiana, atualmente em voga.

O desenho geométrico daí resultante é bem interessante: a mesma cartilha que prega a oportunidade de direito ao matrimônio sem qualquer discriminação – como se não existissem fatores de discrímen justos e injustos, algo tão estudado e perene quanto a mesma régua grega e que atende pelo nome de justiça distributiva – é a mesma que, mais abaixo, sugere a manutenção dos códigos simbólicos masculinos e femininos na educação da prole, obviamente, sem apoio na ideia de marido e esposa, porque, segundo a mesma cartilha, trata-se de conceitos superados e substituídos pelas noções de genitor A e genitor B. Para os mais vanguardistas nessa área, há também genitores suficientes para contemplar todas as letras do abecedário…

A permanência desses códigos simbólicos resume bem o tributo que o erro presta ao acerto, porque, implicitamente, reconhecem o valor da razão relacional que assenta a noção perene de família, lastreada na diferenciação e na complementariedade sexual, atributos que, na educação dos filhos, assumem uma transcendência pedagógica que não se verifica, ontologicamente, nas demais formas de relação familiar, a não ser sob o ponto de vista do igualitarismo que, nesse campo, sofre de uma miopia antropológica invencível.

Ou da cegueira do cego que não quer ver que as demais razões relacionais ficam muito aquém da razão relacional que a noção perene de família porta em si mesma: aqueles modelos não ultrapassam razões relacionais de amizade ou de ajuda mútua “biconjugal” ou “pluriconjugal”, que são muito valiosas, mas que produzem, em seus efeitos, papéis e identidades no seio da relação conjugal bem diversos, se comparados com aqueles que se potencializam na relação havida a partir da noção perene de família.

No lugar dessa ditadura do igualitarismo familiar, proponho uma igualdade familiar que respeite e valorize, segundo seus reflexos para o bem social, a razão relacional de cada realidade familiar sociologicamente verificada. Porque uma fecunda razão relacional não sustenta um “uni-verso” monístico, nem um “multi-verso” entrópico, nem um “pluri-verso” indiferente da tolerância liberal, mas um “inter-verso” ordenado, situado num mundo de diversidade que se orienta a partir de uma racionalidade recíproca.

Ao contrário da camisa de força do igualitarismo, a igualdade fundada na razão relacional é capaz de convergir as múltiplas experiências e práticas comuns autônomas em favor de uma justa distribuição dos bens e deveres no campo familiar. Então, a partir agora, aguardemos pelas fraldas, mamadeiras, e, também, pelas noites mal dormidas. Ou de reflexão, a depender do nível dos decibéis da choradeira do mais novo herdeiro familiar. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 10 de dezembro de 2014, Página A2 – Opinião.