Humanidades: é o fim?


Nessas conversas de barbeiro, ouvi o cliente ao meu lado dizer que “finalmente, mandaram um projeto de lei lá em Brasília para acabar com vários cursos de humanidades nas universidades públicas”. E arrematou afirmando que “só assim vamos parar com essa fábrica de socialistas que só serve para apoiar causas políticas perdidas e doutrinar a cabeça dos jovens com essas porcarias de cotas, ideologia de gênero e assistencialismo do bolsa-família. Vocês não viram aquela professora de história que queria matar fascistas a pau e voadoras?”.

Bom, o sujeito despejou muita doxa para uma conversa informal e muito pano para manga para uma clientela que, por não ter muito cabelo, não costuma dispensar mais que meia hora para esse tipo de compromisso estético. Não pretendo entrar nas questões nominadas por ele, mas um detalhe chamou minha atenção: o fato dele misturar alhos com bugalhos. Não dá certo, porque, embora haja semelhança entre a cabeça de alho e a do bugalho, alho e bugalho continuam sendo alho e bugalho respectivamente.

Em primeiro lugar, dou-lhe razão em relação à citada professora. O besteirol da dita cuja é incompatível com o nível universitário de sua formação e com sua condição de docente de graduação. Para ela, quem discorde de suas ideais, é fascista, embora, muito provavelmente, nem ela saiba o que diz, já que o fascismo é uma espécie de irmão siamês do socialismo: ambos nutrem um gosto pelo messianismo político, pelo estado totalizante, pela escatologia terrena e pela ausência de liberdades públicas. Parece que, por falta de argumentação, ela prefere atacar o argumentador, o que é conhecido, em lógica retórica, como falácia ad hominem.

Em segundo lugar, se for para abolir as humanidades, dentro da lógica do cliente da barbearia, é melhor acabar com a medicina, pois, a longo prazo, todos estaremos mortos e com a engenharia, já que, um dia, com todos falecidos, só restarão os escombros. Esse é o ponto.

Há muito tempo, as universidades, sobretudo as humanidades, estão bem longe dos fundamentos que se inscrevem em seus mottos (verdade, liberdade, glória, sabedoria, luz, Deus) e, por isso, enfrentam um processo de decadêcia moral e axiológica. A universidade atual está bem longe de suas origens medievais, época em que eram vistas como centros de difusão da verdade e do bem.

O discurso de ódio da aludida professora é apenas o menor dos problemas e sabemos que muito dinheiro público financia obras acadêmicas, nas humanidades, de racionalidade científica duvidosa (“integrações homoeróticas em banheiros públicos” – UFBA) ou curiosa (“a grande pensadora contemporânea Valesca Popozuda” – UFF). Esses fatos demonstram bem um certo grau de auto-estultificação da atividade intelectual em muitas das instituições de ensino superior.

Tudo isso explica, mas não justifica o fim dos cursos de humanidades. Sem tais cursos, arrisco a dizer que nem as ciências exatas ou biológicas sabem que são ciências exatas ou biológicas. Mais. A história ensina-nos a não repetir os erros do passado; a sociologia ensina-nos que nem todas as desigualdades são naturais ou defensáveis; a política ensina-nos a distinguir entre formas de governo dos destinos da cidade que respeitam ou não a dignidade da pessoa humana; o direito, por meio do justo concreto, ensina-nos que as coisas estão distribuídas e precisam ser repartidas ou devolvidas; a antropologia ensina-nos o que nós somos e a filosofia dá a forma arquitetônica e organizativa em todo o prédio do conhecimento humano.

As humanidades pavimentaram o caminho civilizatório humano. Hoje, distanciadas de seus fundamentos, colocam em abalo os pilares de séculos de saber científico. Como solução, sugiro defenestrar, do mundo acadêmico, quem subverte ciência para arma ideológica ou a reduz a uma pura doxa, sob o manto diáfano de “liberdade de cátedra”, para, depois, recomeçar as humanidades, a partir da formulação das perguntas corretas para as questões fundamentais.

Já seria um bom recomeço. Afinal, um problema bem definido é um problema parcialmente resolvido, de forma que os alhos e os bugalhos também agradecem, por não serem confundidos um com o outro. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/05/2018, Página A-2, Opinião.