Um belíssimo filme. Com peso, densidade, com a gravidade que parece faltar no cenário espacial. Dito isto, e para aumentar os créditos, vale comentar a seguir o processo como fui seduzido. Os filmes de ficção nunca foram a minha praia. Se a ficção é espacial, e as críticas recomendam ver em 3D, sei que posso esperar uma constelação de efeitos especiais que tentam compensar a falta de conteúdo humano, que é a verdadeira isca com a que um filme consegue me fisgar. Resisti-me à aventura espacial de Clooney e Bullock, fui encontrando desculpas –afinal há muito filme na lista de espera para ser visto- até que, num momento desavisado, apertei o play. Impactante. Não soube dizer por quê, mas deixou marca.
Como dizia Ortega, somos também nossas circunstâncias. As minhas guardavam, ainda quentes, as ponderações geradas pelos livros que tinha acabado de ler e comentar. Garotas no limite, de Leonard Sax, onde se fala das mulheres –adolescentes, para ser mais preciso- que estão conectadas com metade do planeta, e desconectadas delas mesmas, da sua intimidade. A biografia de Marañon, onde se adverte que o romantismo precisa de tempo e solidão para ser vivido, distanciando-se da pressa e da técnica. E um texto que o Papa Francisco enviou no dia mundial das comunicações aos detentores da mídia, sugerindo que se esforcem por encontrar no ambiente digital o sentido da pausa e da calma, o silêncio que permite escutar, dimensões todas que nos ajudam a crescer em humanidade e em compreensão recíproca
Todos estes pensamentos temperavam-se com os comentários dos protagonistas no filme. “Metade da américa ficou sem Facebook” –diz Clooney quando perde a comunicação com Houston. “O que você mais gosta de estar aqui em cima?” –pergunta ele para a cientista. “Creio que é do silêncio” –responde Sandra Bullock. Retornei ao filme outra vez, buscando agora o eco das reflexões que tinha me provocado. Borges dizia que quando voltamos uma e outra vez sobre um livro, o vemos de modo diferente porque nós mudamos durante o processo. Foi o que me aconteceu. Um efeito retardado, a ficha demorou em cair completamente, o fez em câmara lenta, como os atores movimentando-se na ausência de gravidade. Assim as ideias que cercavam minha mente, em busca do peso próprio, lentamente, em silêncio.
O filme é, todo ele, uma epopeia feminina, a conquista da uma mulher sobre ela mesma. O espaço sideral, as questões técnicas, são guarnição, detalhe sem importância. Surgem máquinas que respondem a ordens em russo ou em chinês, tentativas de diálogos em sintonias perdidas que tem cães por interlocutores, crianças, e canções de ninar. E o frio que congela a cápsula espacial e, sempre, o silêncio que permite encontrar-se com ela mesma: refletir sobre a sua vida, suas frustrações e alegrias, suas dores e feridas que encontram , na ausência da atmosfera tóxica, possibilidades de cicatrização. “Você rezará uma prece por minha alma?. Eu vou tentar rezar uma também, embora nunca rezei na minha vida, ninguém me ensinou”. Uma cura da própria vida. Uma conquista do espaço, não do astral, mas do interior, dos meandros da alma.
Tinha escutado de algum crítico que a performance da Sandra Bullock merecia um Oscar. Como é possível uma mulher ser feminina enfiada num traje de astronauta e movendo-se em câmara lenta? –pensei. Ela consegue; impõe-se, nos gestos, na modulação da voz, nas miudezas, e faz do entorno escuro, gélido, silencioso, o seu habitat. Lembrei –como não?- de Ortega, naquele ensaio magnífico sobre a alma feminina, “Estudos sobre o amor”: A mulher muda o entorno, como o clima faz com o vegetal. E faz de tudo o que a circunda, costume; transforma o ambiente –mesmo inóspito e adverso- num lar.
O nascer do sol, lindo, imponente, sem nuvens na atmosfera que filtrem a sua contundente luz. O oxigênio que escasseia e que é preciso saborear, respirando devagar, como quem degusta vinho, e não cerveja para apagar a sede.
Alfonso Cuarón, o diretor Mexicano, leva com mérito o Globo de Ouro. Afinal, não é fácil dirigir um ator e meio e quatro vozes ao longo de um filme, mantendo o interesse, segurando uma trama tensa em suspense magnífico. Hitchcock dizia que dar sustos no cinema não requer muito talento, além do que, tudo se resolve em cinco segundos. O mérito mesmo é por conta do suspense onde o diretor brinca com a plateia, minutos, até horas, porque envolve o espectador na trama, torna-o partícipe do que se passa no celuloide. O susto e o terror ficam por conta dos efeitos especiais, da surpresa grosseira. O suspense requer a habilidade de sintonizar de modo quase interativo com os sentimentos do público –emoções, expectativas, medos- e, de algum modo, projetá-los como num espelho nas ações e figuras das personagens. O suspense faz-nos, por algum tempo, viver a vida peculiar dos protagonistas.
Quando o suspense não depende apenas de ações externas, mas das decisões vitais dos protagonistas, a empatia abre um canal de comunicação todo especial. Por isso Sandra Bullock e a sua epopeia particular nos fascinam. Ficamos presos aos seus solilóquios, nos emocionamos quando busca o conforto no latir dos cachorros, nas coisas simples da vida. “Houston in the blind’- assim começam sempre os registros que envia a cegas porque não sabe se alguém a escuta. Têm o sabor daqueles diários femininos, onde se estampavam o colorido da alma, fatos e sonhos, medos e receios, realidades e fantasias em igual proporção. E junto com a cientista que se debate pela sobrevivência, somos obrigados a pensar na nossa própria realidade. Vale a pena estar conectados com milhares de pessoas –quer dizer, com uma plateia que é tão numerosa como irreal e infiel- ou aproveitaria mais nutrir a própria intimidade, e conhecer-nos melhor? Vai ver que é quando desparecem as supostas conexões o momento em que começamos a conhecer-nos. É conhecida a piada daquele que está sendo enterrado, contemplado por apenas um par de sujeitos que comentam: “quem diria, ele tinha milhares da amigos no Facebook. Cadê eles?”.
Conhece-te a ti mesmo, reza a máxima dos clássicos. Ao que poderia se acrescentar o conselho do monge sábio do século XII, Bernardo de Claraval: “Por maior que pareça o teu saber, de nada vale se não te conheces. Não é sábio aquele que não o é para si mesmo”. Conhecer-nos para, depois, poder conhecer os outros e sabermos servir, ser úteis. Conhecimento, silêncio, ponderação, paciência. Aqui encaixa o recado do Papa Francisco, que se recolhe na mensagem já comentada: “Temos necessidade de ser pacientes, se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: uma pessoa expressa-se plenamente a si mesma, não quando é simplesmente tolerada, mas quando sabe que é verdadeiramente acolhida”
E para tudo isso ser possível é preciso sair do barulho, da correria da alma. É preciso desprender-se da gravidade que nos amarra à terra. Gravidade que nos prende à mediocridade e nos impede, como dizia Guimarães Rosa, de “botar para se esquecer uma porção de coisas -as bestas coisas em que a gente no fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão, mas sem fidalguia”. E ai sim, focar-se no que interessa, encontrar as verdadeiras prioridades, aquilatando as lembranças, tornando-as reais, na dimensão certa, em câmara lenta, saboreando-as como o oxigênio da alma que se acaba e do qual precisamos para retomar a nossa vida com passo firme, decidido.
Tudo isso gira na órbita de Gravity. Um filme superior. Um diretor corajoso. Uma atriz monumental.
Pablo González Blasco
Publicado originalmente em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/02/20/gravidade-epopeia-feminina-a-conquista-do-espaco/> Último acesso: 16/07/2015.