Felicidade à la carte


Num jantar, alguns comensais conversavam sobre a felicidade. Quando fui chamado a dar minha contribuição ao assunto, socraticamente, disse: “Felicidade: haverá tema mais infeliz?”. Nossa sociedade é curiosa. É um paradoxo darmos uma importância excepcional à felicidade individual, talvez como nunca antes na história, e, ao mesmo tempo, tropeçarmos diariamente em pessoas infelizes e insatisfeitas.

Durante muito tempo, nossa realidade foi um vale de lágrimas e contávamos com as graças de nossa advogada celeste para superar esse desterro existencial. Depois que irromperam a ciência e a técnica e sua visão otimista do progresso perene, o homem tornou-se senhor e possuidor da natureza. O Iluminismo veio e canalizou essa atitude ao considerar que o infinito progresso transformaria nossa vida terrestre numa espécie de paraíso.

Como efeito, deu ao homem a sensação de confiança para poder conseguir por si mesmo a felicidade. Essas ideias consolidaram-se nos séculos XIX e XX e, atualmente, seus influxos alimentam dois fenômenos bem presentes: o consumismo e o individualismo, os quais transformaram o presumido direito à felicidade no dever de ser feliz.

Recordo-me, antes, porém, dos livros de autoajuda. A quase maioria dos livros de autoajuda são livros de anti-ajuda. Seguem a toada iluminista ao transformarem a felicidade em direito e, depois, em dever. Conheço gente que começou infeliz lendo um dessas cartilhas e, no final da odisseia, estava mais infeliz ainda.

O consumismo, alimentado pelo capitalismo, concebeu-se de pronto como o meio de se assegurar a satisfação de todas as necessidades. Os mecanismos de crédito adquiriram um papel determinante, porque tornaram possível a realização dos desejos sem a preocupação de se pensar nas contraprestações.

Numa época ainda recente, o sujeito juntava e juntava dinheiro antes de comprar isso e aquilo. Nos dias atuais, com aqueles mecanismos, a ”frustração” de não se poder comprar aqui e agora tornou-se insuportável: importa viver o presente e pagar no futuro. Nem que isso gere uma crise financeira sistêmica, como já se deu num passado recente.

Já o individualismo canaliza nossos esforços para a busca da felicidade desde nós mesmos, de sorte que eventual insatisfação deve ser debitada na conta da responsabilidade exclusiva do indivíduo. Não é à toa que proliferam os negócios relacionados com a realização pessoal, desde as cirurgias estéticas até as pílulas dietéticas, todas a prometer a reconciliação conosco mesmos e a consumação de todo nosso potencial.

Se o homem está condenado à felicidade, então qualquer contratempo converte-se numa espécie de enfermidade e, como doente, o insatisfeito acaba por ver-se como um inadaptado. “É obrigatório ser feliz!”. Se assim é para os indivíduos, o cenário piora para as nações. Na opinião pública, começa-se a falar sobre os índices de felicidade dos países: “país feliz” é tão absurdo como um “hipopótamo voador”. Os países não são pessoas e a felicidade não pode ser medida por níveis de “felicidade interna bruta”.

Aviso aos navegantes: nada disso funciona, porque a “felicidade nacional” não existe. Existem felicidades particulares, individuais, muitas vezes intransmissíveis, que não podem ser reduzidas a um denominador comum. As pessoas não são números, são distintas e irrepetíveis. Muitas vezes insondáveis e insolúveis.

Não adianta se encher de bens e mais bens e fechar-se para os outros. E, depois, ser medido por um índice que não mede nada. Somos, provavelmente, a primeira sociedade na história que produz indivíduos infelizes pelo simples fato de não serem felizes. Tenho a impressão de que não somos donos das fontes da felicidade e que nossa própria finitude deveria nos levar a reconsiderar saídas para esse beco em que nos enfiamos.

Ainda que consigamos aliviar muitas misérias, não podemos seguir concebendo a felicidade como quem solicita esse ou aquele prato num cardápio à la carte. Nesse sentido, a felicidade continuará sendo um tema infeliz. Até para uma conversa de jantar entre amigos. Com respeito à divergência, é o que penso. 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/10/2015, Página A-2,Opinião.