Família, estado e mercado


Os estudiosos da ciências humanas coincidem no mesmo diagnóstico atual da sociedade: um paciente que passa por uma crise de sentido e que reflete, em parte, o mal do homem moderno, a depressão. O discurso da modernidade esclarecida representou um longo salto para a promoção da ciência e da tecnologia. Contudo, foi pouco capaz de proporcionar um crescimento profundo do ser humano como pessoa.

Uma das razões desta crise estrutural está na polarização que a modernidade criou entre indivíduo e Estado. Certamente, a vida humana é marcada por uma tensão dialética entre sua dimensão pessoal e sua dimensão social, mas tensão não significa necessariamente alienação ou mesmo oposição.

Supõe uma harmonia íntima reforçada mutuamente, pois somente por meio da relação com os outros, a reciprocidade e o exercício do diálogo com nossos semelhantes a pessoa desenvolve todas as suas potencialidades e pode responder à sua vocação natural.

Com efeito, um novo paradigma social deve evitar as patologias de um individualismo institucionalizado, que tende a reduzir a pessoa nas dimensões econômica e política. Resulta urgente promover iniciativas que fortaleçam o tecido social e impeçam o império da mercantilização das interações sociais ou mesmo de uma vazia politização social.

O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos do Estado e do mercado. De fato, às vezes, parece que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou como objeto da administração do Estado, esquecendo que a coexistência dos homens não tem como fim nem o mercado nem o Estado, já que a pessoa tem em sim mesma um valor singular, a cujo serviço devem estar o Estado e o mercado.

O banimento das esferas de sentido humano, fruto próprio da extremada racionalização da vida contemporânea, aumenta a entropia do sistema social, cuja legitimidade vai sendo constantemente questionada, em razão do esfacelamento do consenso social (con-senso: sentir com os outros) nas áreas vitais. Como reação, estes âmbitos tendem a dobrar sobre si mesmos e a autorreferencialidade dos sistemas sociais passa a refletir a autorreferencialidade dos indivíduos.

Daí a oportunidade de assegurar contínuos e flexíveis intercâmbios entre as esferas do sistema (político e econômico) e do mundo da vida. O desengate havido entre sistema e mundo da vida criou uma falsa contraposição entre a tese pública do bem comum e a antítese privada do bem pessoal que, na prática, resulta numa confusa síntese entre conformidade estática e alienação hedonista.

Creio que o “reacoplamento” de ambas as esferas poderia ser feito pela adoção da órbita social como espaço para uma gestão livre e solidária, fruto da criatividade das organizações intermediárias autônomas e com reconhecimento público pela burocracia estatal. Logo, o sistema deve favorecer, na prática, tais grupos sociais, pois estão em condições de alcançar iniciativas que transcendem os interesses setoriais e de desenvolver objetivos comunitários de envergadura universal.

O núcleo dessas iniciativas repousa sobre o conceito clássico de amizade social e sua importância reside na atenção conferida aos dados pré-políticos e pré-econômicos da vida cotidiana, como a educação familiar, ajudando no resgate das fibras do esfacelado tecido social.

Além das agências de solidariedade secundárias, como as organizações não-governamentais, mais importante ainda, para o fomento da amizade social, são os grupos de solidariedade primários, onde a família, notória vítima das ideologias modernas, tem o principal destaque: é fonte radical de sociabilidade e de mediação humana cheia de sentido. É necessário, assim, sublinhar a “subjetividade” da família. Porque a pessoa é um sujeito e assim também é a família, por estar constituída por pessoas que, unidas por um laço profundo de comunhão, formam um único sujeito comunitário.

Além disso, a família precede outras instituições, como a própria sociedade e o Estado, os quais gozam de uma subjetividade peculiar na medida em que a recebem das pessoas e de suas famílias. E não o oposto: perverter essa relação é tão totalitário quanto acomodar o indivíduo à sombra do Estado ou do mercado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 20/10/2015, Página A-2, Opinião.