Recebi há pouco o acórdão que confirmou uma decisão minha em que rejeitei um pedido de inseminação artificial em favor de um casal de lésbicas pelo sistema público de saúde, sob o argumento-serve-para-tudo-nos-dias-de-hoje, o da discriminação por orientação sexual. A pergunta, lançada na sentença, ficou sem resposta pelo advogado do dito casal, quando apresentou as razões do recurso junto ao tribunal: a saúde pública deve financiar intervenções que não respondem a um problema estritamente médico, mas que são consequências de estilos de vida livremente adotados?
O movimento ideológico gay vende essa cantilena da discriminação para a sociedade e o indivíduo desavisado compra a ideia, que mais lembra um ovo choco: esse argumento, da forma com que se apresenta, só serve para reforçar ainda mais as injustas discriminações que muitos homossexuais sofrem, porque atentam contra a dignidade da pessoa humana em última análise.
No caso concreto, o ente administrativo negou o acesso à reprodução assistida, porque a limitava aos indivíduos com problemas reais de fertilidade e só depois de observada uma série de longas prescrições médicas relativas ao esgotamento das tentativas naturais de procriação pelo casal interessado, o que, biologicamente, só é possível entre uma mulher e um homem. Abre parentêsis: eis um sinal da insuficiência ontológica da tão propalada afetividade nas relações familiares. Fecha parêntesis e adiante.
Ao que parece, o ente estatal ainda não notou que se difunde uma espécie de medicina consumista, dirigida a não tratar problemas de saúde reais, como um câncer ou lesões por esforço repetitivo, mas destinada a satisfazer as veleidades centrífugas dos pacientes e a consolidar seus estilos de vida. Talvez, agora, consiga um tão sonhado par de bíceps sem pisar numa academia…
Se tomasse parte do processo judicial, alguma semi-despida (inclusive de racionalidade) do Fêmen poderia proclamar que o ente estatal estaria a negar a uma das mulheres do casal o “direito de ser mãe”. Não. A legislação em vigor não proíbe expressamente que uma mulher solteira, independentemente de sua orientação sexual, possa recorrer à inseminação artificial numa clínica particular. Ou seja, desde que pague de seu bolso. Uma questão é reconhecer um suposto direito. Outra é mandar a conta do reconhecimento desse suposto direito, que se dá pela lei, mas não se confunde com o direito, para o erário público.
Mormente quando vivemos um sistema público de saúde altamente deficiente no atendimento aos serviços médicos mais elementares. Não se faz o que deve e se quer fazer mais do que pode. A esterilidade natural exigida pelo ente administrativo não é discriminatória, porque fundada numa patologia médica comprovada. Discriminatória é a postura de pretender que o erário público financie estilos de vida do cidadão.
No caso brasileiro, além de discriminatório, a pretensão ainda lembra um requinte sanitário escandinavo numa realidade sanitária sudanesa. Então, porque não ampliarmos o leque? Congelamento de óvulos para uma gestação tardia, religadura de trompas para os arrependidos ou mesmo cirurgias de “troca de sexo” genital. De minha parte, sugiro o “direito” à cirurgia estética no sistema público de saúde sempre que alguém se sinta discriminado pela natureza, pela carga genética dos pais ou por uma débil conta bancária, insuficiente sequer para pagar a consulta inicial de um cirurgião plástico de convênio…
A questão do casal em foco dá bem o tom marcante de muitas das pretensões dos movimentos paparicados pela opinião pública. De mãos dadas com a medicina consumista, trata-se de um capricho reprodutivo que se apresenta como um ”direito reprodutivo” e, depois, de teor vinculativo nas determinações da política de saúde pública. Em outras palavras, “o estilo de vida é meu, mas a fatura é de vocês!”. Resta saber se, caso a sentença tivesse sido alterada, o bebê daí resultante não se sentiria discriminado por um capricho reprodutivo, por não ter direito a um pai. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).
Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 28/10/2015, Página A2, Opinião.