Esgrimir contra a parede

Opinião Pública | 17/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Debater em público não é fácil. Ser coerente com sua filosofia de vida, sempre que se abordam concretamente temas morais ou éticos, torna mais complexa a equação. De qualquer forma, sempre esperamos que nosso interlocutor esteja qualificado para o embate argumentativo. Um indício da falta disso está no uso do shaming na crítica, isto é, o oponente dirige-se à sua pessoa com o intuito de expô-la de maneira embaraçosa. Diz, mais ou menos, assim: “Você não propõe o livre debate! Deveria ter vergonha disso!”.

Atualmente, debatemos a inclusão da teoria de gênero no ensino público. Se alguém argumenta que a dita teoria não tem embasamento científico, ignora o marco biológico da identidade sexual e se baseia numa ideia insuficiente de construção social ou cultural, logo é tachado de frames baseados no shaming, como, por exemplo, “preconceituoso”, principalmente, quando, depois de investigada a tal teoria, conclui-se se tratar de uma petição de princípios, para ser bem acadêmico, ou numa ideologia propriamente dita, por absolutizar uma dimensão da realidade, para ser mais claro.

Então, nosso interlocutor, com base no que leu na wikipedia ou no google, resolve cobrar igualdade de espaço nessa questão, em nosso canal, para sua posição, como se fosse um assunto indiferente, como escolher entre preto ou branco. Do contrário, segundo o mesmo interlocutor, estaríamos a censurar o debate. Outro frame de shaming. Participamos do debate levando argumentos de razões públicas para o assunto em foco, uma maneira bem concreta de atuação no diálogo público.

E não como nosso interlocutor gostaria que fosse, até porque duvido da sensibilidade dos canais oponentes para fazer o mesmo. Seria semelhante a uma universidade católica conceder uma cátedra para Foucault ou um partido de extrema esquerda nomear Reagan ou Thatcher como patrono. Creio que nem mesmo os homenageados sentiriam-se muito confortáveis com o reconhecimento…

Não dar espaço para o pensamento alheio em nosso canal não interfere em sua liberdade de divulgação. Há outros meios colocados à disposição na mídia. Deixar de fomentar outra visão do assunto, discordante daquela em que acreditamos, é muito diferente de censurar. Mas manter uma constante análise crítica da reflexão oposta, também com o intuito de refinar nossas opiniões, é sinal de abertura e de diálogo e não de censura.

Exigir de todos os respeitáveis leitores concordância com nossos pontos de vista não só configura uma certa arrogância intelectual, como ainda resvala para a pretensão implícita de criação de ”igrejinhas”, prática tipicamente acadêmica, só que no seio da opinião pública. Nada mais ridídulo. O leitor não pode ser a imagem especular do colunista, nem a caixa de ressonância de suas ideias. Deve pensar por conta própria e construir sua própria posição, ainda que simpatize com nosso ideário.

Para isso, convém superar os clichês e os frames fáceis que parecem explicar tudo, mas que, no fundo, acabam por reduzi-lo à condição de ignorante no debate público: estudar a fundo um tema a ser debatido é uma forma bem inteligente de superar uma menoridade intelectual e a doxa que costuma acompanhar todos aqueles clichês e frames. Tão ruim quanto a vaidade intelectual, da qual não estou isento, é a vaidade do pseudo intelectual.

Por fim, lembro que ser fiel a um conjunto de ideias, sempre suscetíveis de oportuna correção ou aprimoramento, sobretudo num mundo repleto de ideais opacos, relações líquidas, pensamentos débeis e opiniões passageiras, é o que chamamos de identidade, cujos limites, vez ou outra, também são testados com interlocutores que se limitam ao shaming. Mal sabem eles que são peritos numa arte: a arte de esgrimir contra a parede. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/6/2015, Página A-2, Opinião.

http://correio.rac.com.br/index.php?id=/colunistas/andre_fernandes