Um dia, parado no semáforo, apareceu um sujeito, representante de uma famosa organização ambiental mundial, e me ofereceu um flyer com a proposta de adoção de um par de ursos siberianos ou de pandas chineses. Agradeci cordialmente. Ele insistiu. Disse que era protecionista e só aceitaria adotar um animal da fauna nativa. Em seguida, perguntei se ele não pensava em adotar uma criança. Brasileira, preferencialmente. Ele disse que preferia se dedicar às grandes causas humanitárias e, por isso, não tinha interesse num exemplar de sua espécie. Então, devolvi o flyer e fui embora.
Sempre tive uma intuição acerca de indivíduos desse tipo: não têm problemas pessoais ou se recusam a encará-los. Quando ouço um sujeito, como o do semáforo, a prosear apaixonadamente sobre as tais grandes causas humanitárias, como o aquecimento global, a paz no Oriente Médio, as crianças das guerras africanas, os aborígenes australianos ou os refugiados curdos, ligo o modo de atenção “seletivo” e a informação entre por um ouvido e sai pelo outro.
Fico a pensar quais os problemas que esse indivíduo apaixonado evita enfrentar: alguma divergência familiar, algum entrevero com o vizinho, alguma dívida não quitada pontualmente, alguma patologia grave, algum processo em que é réu, algum desafio empregatício ou alguma decisão constantemente adiada. Incorporar-se ao exército desses incompreendidos nessas grandes causas humanitárias é, sem dúvida, uma forma muito eficaz de esconder ou ignorar suas próprias misérias.
Mas não é só. As grandes causas humanitárias têm lá seu apelo existencial: estão bem distantes geograficamente do sujeito apaixonado, não exigem muito esforço pessoal, anulam a banalidade dura e crua que nos cerca e alimentam as utopias internas que cada um de nós carrega consigo.
Em suma, a luta em prol do urso siberiano ou do panda chinês, como, de resto, em qualquer outra grande causa humanitária, quando preenche toda a existência de um indivíduo, deixa de lado a principal causa humanitária: o conhecimento de si.
Alexandre Magno, o lendário guerreiro macedônico talhado paideicamente por Aristóteles, dizia que conhecer a si mesmo é a tarefa mais difícil para uma pessoa, por incitar diretamente nossa racionalidade e colocar à prova nossos medos e paixões. Contudo, quando nos conhecemos a fundo, somos capazes de compreender os outros e a realidade que nos rodeia.
Nota-se que o discípulo bem captou a lição de seu mestre, inaugurada por Sócrates um século antes. Conhecer a si mesmo não é fácil. Na sociedade em que vivemos, confundimos o conhecimento de si com aquisições de conhecimentos que nos transformam em identificação de rótulos, sobretudo o da profissão. E, em razão disso, focamos toda nossa potencialidade cognitiva, durante anos e anos, tão somente para cursos de formação que sequer tangenciam o ser, porque se encerram apenas no fazer.
Quando não nos conhecemos, acabamos por entregar habitualmente o comando de nosso comportamento às circunstâncias que nos rodeiam. A vida vira uma sucessão de reações de curto-circuito, automáticas e previsíveis, em que, diante de determinados estímulos, opomos uns modos de proceder que jamais chegam ao nível superior e mais íntimo do eu, lá onde existe um conhecimento dos motivos para agir e uma vontade que escolhe livremente a forma de ser mais adequada ao nosso entorno existencial.
Para que o centro de nosso ser esteja no lugar certo, o ponto de partida essencial é o conhecimento próprio: assim, teremos plena ciência de nossas excelências e, também, do demônio que habita em nós. Logo, o conhecimento próprio é um meio e não um fim. Não é um exercício de endeusamento psicológico, porque tem em vista saber como somos para saber como devemos ser. E nem requer domínio nas artes da caracteriologia, mas o olhar simples do indivíduo consciente.
“Torna-te o que és!”, já lembrava o poeta pagão Píndaro: sua percepção refinada nos diz que nada é mais importante do que nos tornarmos seres humanos em plenitude. Talvez tivesse sido a resposta que me faltou no dia do diálogo no semáforo. Afinal, continuo a pensar que quem é dado a melhorar o mundo, desistiu de se melhorar. Ainda que apareça na foto abraçado ao par adotado de filhotes de urso siberiano ou de panda chinês. Por fim, lembro ao leitor que o colunista merece umas férias e a coluna regressa apenas em fevereiro. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/12/2016, Página A-2, Opinião.