Duro de matar

Opinião Pública | 30/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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Em tempos de crise social, os melhores termômetros da normalidade são uma imprensa livre e um Poder Judiciário independente. Sobretudo, quando vivemos num clima de lavanderia nos poderes Executivo e Legislativo e numa parcela do empresariado que, à semelhança daqueles poderes, era tida como intocável até então: muita roupa suja sendo lavada a jato.

Diante dos avanços até às mais profundas trevas do poder, parece que chegamos ao último círculo desse inferno dantesco. Os envolvidos, em sua retórica perversa, agora, demonstram-se capazes de ir mais longe na insensata marcha de exacerbação da sem-vergonhice, apoiados por um séquito de uma minoria de juristas que, em muitos argumentos, poderiam compor uma fila de traidores intelectuais do Direito. Não me estranha. Nosso subdesenvolvimento moral não é improvisado. É obra de séculos.

Admiro a criatividade dos envolvidos, mormente quando a realidade é adversa e as sombras marcam o compasso na busca de um projeto criminoso de poder, no dizer de um ministro do STF. Entretanto, quando o rol de desculpas para as seguidas denúncias esgotou-se, a inovação esvaiu-se e sobrou somente a arma do ataque diversionista, os envolvidos resolveram criminalizar a operação que os incrimina e, principalmente, o juiz que a conduz. O prelúdio de um suicídio político. Aliás, até nisso somos singulares. No resto do mundo, o suicídio seria de outro tipo: os envolvidos teriam disparado uma bala na cabeça.

Na questão processual, vivemos sob vigência do duplo grau de jurisdição e, por isso, existe sempre a possibilidade da revisão de uma decisão de um juiz singular por um órgão colegiado. Contudo, escolhem por criminalizar a decisão. Na verdade, o problema dos envolvidos não é só com magistrado já citado, mas com o tribunal ao qual está vinculado, que tem reconhecido – sobejamente – a correção das decisões do colega.

Então, ao invés de seguir a cartilha dos códigos, os envolvidos agravam a tática incriminalizadora ao manipular a militância, os blogs dos jornalistas vendidos à grana pública ou à ideologia e os ditos movimentos sociais como massa de manobra em favor da tese de que as manobras ilícitas dos envolvidos não seriam assim tão ilícitas. Uma espécie de descriminalização sociológica de fatos tipicamente criminais.

Teriam outros nomes eufemísticos, seriam o mais-do-mesmo de práticas oriundas desde a carta de Pero Vaz e, nos casos mais patológicos, seriam meritórias, afinal, seu líder “messiânico” seria o guerreiro do povo brasileiro. Essa postura só pode ser uma reação desesperada de quem assume a condição de réu e não tem fatos ou mesmo argumentos para apresentar em sua defesa no processo de saqueamento sistemático do bem público.

Na questão das interceptações telefônicas, veio a tentativa de criminalização da decisão de levantamento de sigilo das gravações, mesmo que baseada no principio do livre convencimento do juiz.

Querer que uma decisão judicial fundamentada – com amplos e sólidos argumentos – seja tratada como se fosse um ilícito penal, pela simples razão de haver produzido efeitos políticos contrários aos interesses da inquilina do Palácio do Planalto, equivale a pretender que a nação volte aos tempos do absolutismo monárquico. E estender a argumentação incriminalizadora acusando o colega de ameaçar a soberania nacional parece coisa do Dr. Simão Bacamarte…

Ainda que o dito juiz tenha agido de modo inapropriado na divulgação das gravações, sua conduta não pode ser utilizada como cortina de fumaça para encobrir a pilhagem estatal, o esquema espúrio com empreiteiras e o tal do sítio, cujo dono, no papel, não tem sequer um pé de meia perdido em algum cômodo. Em suma, o colega de toga merece elogios e não críticas incriminalizadoras. Ao STF e ao CNJ cabem a análise da correição na atuação do juiz.

Quanto aos envolvidos, sobre quem não tenho suspeitas, mas certezas, posso apenas afirmar que, enquanto estão indo, o juiz Sérgio Moro já voltou há tempo. Por isso, eles o odeiam. E eu, como colega de toga, admiro-o. Sem lhe imputar qualquer tipo de heroísmo, porque ele, afinal, está a cumprir um dos deveres de qualquer magistrado, o dever de ser duro de matar e, dessa forma, dá mostra de um protagonismo judicial venturoso. Como nunca antes na história desse pais.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 29/3/2016, Página A-2, Opinião.