Do ruim ao pior

Opinião Pública | 29/03/2017 | | IFE CAMPINAS

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Na última semana, um libertário entupiu minha caixa de mensagens com um monte de artigos em réplica à última crônica (Correio, 22/03). Como eram todos de autoria de terceiros, nem me dei ao trabalho de responder. Em suma, tinham um denominador comum: os argumentos pragmáticos. É aqui onde eu entro.

Pode-se argumentar que a liberdade de escolher entre uma variedade de substâncias inebriantes é um direito subjetivo e as pessoas apenas se divertiriam inocentemente ao ingerir estimulantes ou narcóticos. Mas o consumo de drogas, em qualquer caso, tem o efeito de reduzir nossa liberdade, limitando o leque de nossos interesses que, em regra, deixam o campo da magnanimidade e adentram no da mediocridade.

O prejuízo à aptidão na busca de objetivos mais importantes ou nobres, tais como ser um profissional de prestígio entre seus pares, constituir uma família ou cumprir as obrigações cívicas, fica evidente. Não raro – e isso é um fato curiosamente negligenciado pelos defensores da descriminalização – inviabiliza-se a capacidade de exercício de um trabalho e promove-se o parasitismo social, custeado pelo dinheiro público. Corrijo. Dinheiro de nossos impostos weblink.

Certa feita, num interrogatório judicial para a internação de um garoto de catorze anos numa clínica de reabilitação, ouvi do médico, que o tratava desde os doze, que, longe de expandir a consciência, a maioria das drogas a limita seriamente, em virtude dos danos neurobiológicos provocados, alguns irreversíveis.

Ele ainda ressaltou que alguns dos atributos mais marcantes dos usuários de drogas são a intensa e tediosa auto-absorção e “as viagens” rumo ao espaço interior que, na prática, consistem em incursões rumo a vazios existenciais. Ainda ponderou ser vendida a ideia do consumo de drogas como o caminho mais curto para um indivíduo procurar a “felicidade” e a “sabedoria” e que esse atalho, na prática, é o mais mortal dos becos sem saída.

A desagregação da sociedade é o próximo capítulo desta tragédia. Nenhuma cultura, que sanciona publicamente esse nível de auto-indulgência coletiva em seu mais alto grau, pode sobreviver por muito tempo, pois, logo em seguida, um egoísmo radical toma forma e as limitações no comportamento pessoal passam a ser interpretadas como uma “violação” de direitos subjetivos.

Contudo, minha atenção, no meio daquele monte de artigos, foi magnetizada pelo mais pragmático dos argumentos pragmáticos: as leis sobre drogas não funcionam, porque muitos a infringem. Esbocemos uma analogia com as leis de limite à velocidade. Elas cerceiam nossa liberdade e é possível dizer que não funcionam, porque a maioria só tira o pé do acelerador próximo do radar móvel.

Então, o limite de velocidade não funciona e, por isso, precisamos abandoná-lo? Eu adoraria que a Rodovia dos Bandeirantes fosse uma Autobahn, a rodovia alemã sem limites de velocidade, e, nesse ponto, tendo até a achar que o outro lado tem a razão, já que um adulto responsável, com receio das consequências nefastas ou fatais de um acidente, poderia muito bem ser o melhor juiz da velocidade em que se julga capaz de trafegar com segurança.

Até o momento em que descubro que essa antropologia filosófica é furada. Posso perceber que outras pessoas não devem dirigir acima de certa velocidade, mas posso não perceber que eu deveria fazê-lo. As outras pessoas, é claro, têm uma visão de espelho: pensam que estão seguras e que eu é que sou o sujeito perigoso e, embora todos nos consideremos seguros, o fato é que o excesso de velocidade sempre nos deixa mais propensos a sofrer um acidente ou a matar alguém.

Uma pessoa não é, por si mesma, o árbitro de tudo. A ilicitude do uso de drogas justifica-se em prol da prevenção de danos maiores e mais graves aos próprios usuários, aos seus próximos e à sociedade como um todo. É uma questão de discernimento. Saber divisar entre uma e outra liberdade, porquanto existe uma hierarquia entre elas, é justamente o que conserva as sociedades longe das fronteiras da barbárie, do estado social imaginado por Hobbes.

Perde-se muito menos caso não seja permitida a descriminalização das drogas. O mais pragmático dos argumentos pragmáticos é, no fundo, um exercício de sociologismo estúpido, pronto a exercer o mais completo fascínio sobre o pensamento. A situação atual não é a ideal, sem dúvida. Mas poucas são as situações ruins que não possam se tornar ainda piores, sobretudo se provocadas por meio de equivocadas decisões judiciais ou políticas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 29/03/2017, Página A-2, Opinião.