Direito: reflexo e reflexão

Opinião Pública | 22/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Leio a notícia de um menino que agradeceu ao juiz, responsável pela execução penal de sua mãe, pela permissão para o cumprimento do restante da pena em regime domiciliar, já que ela, em estado terminal, teria apenas alguns dias de vida. Ela morreu em seu lar, ao lado do filho e de seus familiares. Em suma, uma estória que, infelizmente, não tem espaço nas manchetes dos jornais, porque, afinal, juiz só tem destaque quando tem aumento de subsídio, dá uma carteirada ou um passeio com o carro do réu. Quando sua caneta tem as tintas da humanidade, dilui-se no noticiário ordinário.

A partir dos dados da notícia, estou convicto de que o magistrado fez o que deveria ter sido feito, sem precisar apelar para um certo emotivismo ético: repugna à equidade, essa dimensão jurídica tão esquecida, que a fria letra da lei deva sempre ser aplicada a ferro e a fogo. Cartesianamente e sem os sutis matizes que cada circunstância traz consigo num processo.

Por isso, o velho Aristóteles já comparava, em sua principal obra ética, a equidade à uma régua muito usada na ilha de Lesbos: corrige os excessos hermenêuticos da lei, acomoda o direito às curvaturas da realidade e harmoniza a justiça com outras virtudes que regulam as relação humanas, porque a justiça deve ser sempre considerada no contexto geral do bem comum, ao contrário do que Kelsen, com todo seu neokantianismo imanente, propunha. Na verdade, seu normativismo positivista sequer a considerava.

A decisão de nosso juiz põe em pauta a questão da humanização do direito, essa órbita existencial que, como a equidade, ficou perdida na poeira que se acumula sobre os pesados tratados jurídicos que habitam nossas bibliotecas. O direito foi feito para o homem e não o homem para o direito. Logo, o direito não é um produto pronto e acabado dos códigos. Deve ser realizado em cada ato decisório. Contudo, nas entrelinhas desta importante reflexão, está outra que, no fundo, possibilitou-a: a reflexão sobre o ser do direito.

A reflexão sobre o ser do direito é um jogo de espelhos. O direito pensa a si mesmo e, assim, vê-se ao espelho. Verá imagens de si próprio e, ao ver, teorizará. Ao teorizar, verá a si próprio. Ver para teorizar e teorizar para ver. Porém, nossos espelhos são cruzados. Permitem ao direito ver-se em sua multidimensionalidade e nos vários ângulos de sua imagem halográfica.

Os espelhos cruzados são também um caleidoscópio, um labirinto de imagens, composto pelas formas teóricas do direito. É preciso cuidado nesta visão omnicompreensiva, porque tudo ver e refletir todos os reflexos é um geometrismo oco. Por isso, os espelhos em que o direito vai mirar-se vão ser mais cruzados no tempo que no espaço e, assim, sucessivamente, o direito irá experimentar os vários espelhos até chegar àquele que é mera superfície polida de si próprio – o direito como espelho da realidade das coisas.

Atravessaremos pelo espelho da matéria e das ciências, depois, contemplaremos as paisagens do espelho da vida, certos de que o direito é uma realidade a serviço do protagonista da grande aventura jurídica, o homem, sem o qual ou contra o qual, nada de tudo isso faz sentido. Em seguida, entraremos na esfera do espelho espiritual, com o direito a enfrentar-se face a face, como espelho de si próprio.

Espelho de um espelho e, se os espelhos ou realidades exteriores serviram ao direito para se ver e se compreender, o direito também foi sendo sempre espelho de todos esses espelhos exteriores, a proclamar imagens agradáveis, como a de Narciso, ou não, como a da bruxa da Branca de Neve. Tanto mais agradável quanto mais retrata a realidade das coisas.

Nosso juiz, com esse “milagre jurídico”, agiu como o “homem humano” de Guimarães Rosa, para quem, “quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Corrijo: agora o vemos. Que nada continue, assim, acontecendo. Não tenho problemas com milagres. Agradeço ao colega pela exemplar decisão e, também, minha outra colega, Patrícia, cuja caneta é dada a “milagres jurídicos”, que me enviou a notícia deste caso. Sem sabê-lo, moveu-me a escrever a respeito. Como ela, eu também acredito que o direito é como um rosto, no dizer de Borges, que mira y debe ser sempre mirado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, Edição 22.04.2015, Página A2 – Opinião.