Direito, filosofia e educação

Opinião Pública | 04/03/2014 | | IFE CAMPINAS

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Na medida em que a história humana incorpora as camadas existenciais de cada época, o Direito aprende com os próprios erros, reforça velhos princípios com uma nova linguagem, adota outros e, assim, vai solidificando o patrimônio jurídico da humanidade, demonstrando a vitalidade e a perenidade de sua ordem natural. Como, de resto, nas leis físicas: até que Copérnico apresentasse o sistema heliocêntrico, passaram-se séculos e mais séculos. Mas, nem com a queda do sistema ptolomaico, a astronomia caiu em descrédito depois.

Dizia-se em Roma haver Direito (do latim derectum, em linha direta) quando o fiel da balança da justiça não se inclinava nem para a direita nem para a esquerda, mas pendia a “direito”, o que significa dizer que os pratos estavam no mesmo nível e, em sentido figurado, transmitia a ideia daquilo que estava conforme a regra, pois cada um havia recebido o “seu”. Muitos séculos depois, a “fórmula da justiça” foi substituída pela “fórmula da norma” do positivismo normativista e a lei tomou o lugar da justiça no mundo do direito.

Nessa guinada epistemológica, aspectos básicos da atividade e da pedagogia jurídicas foram marginalizados ou mesmo esquecidos. Como a justiça tornou-se uma categoria irrelevante para o Direito, o importante para o profissional do direito era assegurar para o sistema jurídico a certeza e a segurança da juridicidade posta pelo legislador, a fim de evitar uma indevida intrusão de qualquer normatividade extrapositiva. E o método científico, nessa lógica, seria o melhor método para aplicação do Direito: o Direito, então, “tornou-se” ciência e “deixou de ser” prudência, em sua acepção genuinamente filosófica.

Nesse ponto, o vínculo entre educação, direito e filosofia não é imediatamente elementar. Ulpiano, famoso jurisconsulto romano do século III, já afirmava que o direito é matéria que se aquilata em realidades muito concretas e comuns a homens e animais, a saber, a “coniunctio”, a “procreatio” e a “educatio”. Hoje, o Direito continua a levantar outros profundos problemas no campo filosófico que, indiretamente, refletem no conteúdo pedagógico de seu ensino e na forma de transmiti-lo.

Todo avanço desse saber bimilenar pressupõe uma determinada concepção de homem, de justiça e de agir social, com os efeitos daí decorrentes na dimensão jurídica e na pedagogia deste saber: uma espécie de jogo de espelhos. Usá-los é, como assinala Borges, perpetuar os males e os homens, multiplicando-os. A outra alternativa é não usá-los, ou seja, é não se conhecer, contrariando o velho imperativo filosófico primeiro: conhece-te a ti mesmo. E, assim o fazendo, o Direito fica sem responder, ao mesmo tempo, a outro velho interrogativo filosófico primeiro: como viver?

É um dilema cuja resposta é fácil e difícil. Fácil, porque, como uma realidade do mundo do espírito, o Direito é um ser que depende sempre de um elemento axiológico que o sustente e, como realidade dotada de politicidade, o Direito deve enveredar pelo caminho da antropologia filosófica e da ética social. Então, a resposta é afirmativa: devemos usar o jogo de espelhos, a fim de que o Direito conheça a si mesmo e paute o seu próprio viver.

Ao usar os espelhos, adentramos na parte difícil da resposta e na órbita dos riscos narrados pelo poeta argentino, aliás, riscos inerentes à nossa própria condição existencial, cujos espelhos não fazem mais do que refleti-los e confundi-los em forma de caleidoscópio. Apesar disso, acreditamos que a iniquidade profetizada pelo mesmo poeta pode ser substancialmente diminuída se o reflexo desse jogo de espelhos — o Direito — for capaz de, em sua multidimensionalidade, transmitir a imagem do justo concreto determinado prudencialmente.

E, assim, concomitantemente, o Direito passa a refletir a imagem de sua realidade prudencial, abre-se, hermeneuticamente, à experiência pedagógica de seu verdadeiro ser, desenvolve a dimensão ético-virtuosa humana, ilumina a natural politicidade do indivíduo e o conduz para o bem comum e para uma juridicidade fundada no respeito à dignidade da pessoa humana e no império do justo concreto.

Porque o Direito sempre foi tributário da fé secular humana no lento labor de construção das realidades temporais de nossa civilização, as quais ele mesmo acabou por engendrar numa tradição multissecular de incalculável transcendência social.

Com respeito à divergência, é o que penso.