Do desconcerto à esperança: relações entre “Os lusíadas” e “Mensagem”

Literatura | 16/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Capa de “Mensagem”, de Fernando Pessoa, 1934 (Ed. Parceria António Maria Pereira)

Capa de “Mensagem”, de Fernando Pessoa, 1934 (Ed. Parceria António Maria Pereira)

 

Primeira Parte –  O desconcerto do mundo

1. Introdução

Uma diferença de pouco menos de quatro séculos separa a publicação de Os Lusíadas e Mensagem. Apesar de terem sido confeccionadas por artistas da mesma pátria, guardam diferenças marcantes: a versificação, o tema e o objetivo. Camões quis e atingiu a finalidade de celebrar a aventura do povo português “por mares nunca dantes navegados”.  Fernando Pessoa relembra a façanha, porém, tem um outro objetivo: cantar um novo tempo para Portugal.

Há, nas duas obras, um modo peculiar de enxergar o próprio tempo, a época em que a obra foi feita e que ultrapassa esse próprio tempo e essa mesma época. Ao longo d’Os Lusíadas, Camões ora mostra-se queixoso em relação à sorte do seu próprio povo, ora mostra-se perplexo frente ao resultado não da navegação em si, mas dos ventos de valores que conduziram os navegadores às Índias. Tanto esforço, tanto dor valeram a pena? Essa resposta nos dá Fernando Pessoa, no seu famoso verso: “Tudo vale a pena se alma não é pequena”.

Por que Camões viu com certa desconfiança o maior feito do seu povo? Por que Pessoa vê de outra forma? E como vê? Quais são as fontes do famoso desconcerto que é notável tanto na lírica como na épica camoniana? E Pessoa, como pode ser identificado como um poeta que traz a esperança, visto que nos heterônimos escreveu: “e o universo/reconstrui-se-me sem ideal nem esperança”[1]

Essa intertextualidade, esse diálogo entre as obras será o tema do presente trabalho.

2. O desconcerto

Seja o que se pensa sobre a obra de Gustavo Corção, o fato é que no livro O desconcerto do mundo o escritor tem belas intuições sobre a questão que dá título ao livro e que é pertinente a este estudo. Diz sobre o desconcerto:

“E aqui se abre, não somente o problema do desconforto humano, mas em toda a sua sombria extensão o problema do mal. O mistério do mal. Por que o mal? Por que o consentimento dos deuses? Por que este é castigado e aquele não? Por que isto? Por que aquilo? A consciência boquiaberta do homem, desde sempre, exprime o seu pasmo diante do espetáculo do mal e da impassibilidade dos céus.”[2]

A “consciência boquiaberta do homem”, ou seja, o ser racional, desde que começou a pensar a sua existência no mundo de modo mais elaborado, viu-se diante do problema do mal. Os gregos identificavam o mal como uma decisão arbitrária dos deuses, que manipulavam o caminho dos homens de acordo com os seus caprichos. Um exemplo é a tragédia de Édipo: os pais desobedeceram aos deuses e o filho foi punido com a desgraça.

Na era cristã, o problema do mal se tornou mais inteligível, porém ganhou em dramaticidade, pois o bem e o mal já não estão fora do homem, mas no seu próprio coração. Além disso, a confiança em um Deus benevolente fez com que a perplexidade ante o mal se transformasse em perplexidade ante a aparente contradição divina, que parece deixar que quem procure o bem sofra, enquanto é benevolente com o mal. Camões exprime bem essa confusão no ser humano no poema Ao desconcerto do mundo: seguiu o bem e não recebeu recompensa alguma e mais, agiu mal para alcançar o mesmo que os maus recebem, mas recebeu o castigo pelos seus atos.

3. O desconcerto no Outono da Idade Média

Cerca de um século antes de Camões, um grande poeta discorreu sobre um tema intimamente ligado ao desconcerto e citado diversas vezes pelo autor d’Os Lusíadas. François Villon escreveu a Balada da Fortuna. O poema é reflexo de um século que foi chamado de o “Outono da Idade Média”, devido às suas referências constantes sobre a morte. Citando o historiador Johan Huizinga, Otto Maria Carpeaux diz que, nesse período há três “típicos estados de alma: o sonho do ideal de cavalaria, o sonho de uma vida pacífica e idílica, e a obsessão da morte.”[3]

No poema, Villon dá voz à deusa grega:

Por doutos eu Fortuna há tempos fui chamada,

Eu que, François, gritas e dizes carniceira,

Tu que nem homem és de algum nomeada.

Gente melhor do que tu acabo-a nas gesseiras

Por pobreza, ou então faço-a cavar pedreira;

Se vives em vergonha, deves te queixar?

Não és só tu; não deves pois te lamentar.

Nas estrofes seguintes, relata a “sorte” de grandes nomes da história: Príamo, que morreu na guerra de Tróia, César, assassinado por Brutus, Pompeu, morto por ordem do rei Ptlomeu, etc. e conclui:

François, ouve por isso o que te vou confiar:

Sem Deus do céu pudesse eu algo consumar,

Em ti nem em ninguém seria um trapo achado,

Pois em dez eu faria um mal se avolumar.

Villon, antes recebas tudo de bom grado![4]

Villon nos apresenta uma visão diferente da grega sobre a Fortuna, que é, de certo modo, cristianizada. A Fortuna é tida pelo poeta como assassina (mutriere, traduzida como carniceira), entretanto, o poder da deusa é limitado por Deus. Pensa ser infeliz com as injustiças da Fortuna mas, segundo a própria deusa, deveria aceitar de bom grado (no original: Par mom conseil prens tout em gré, Villon). A Fortuna aconselha Villon a aceitar, a receber a sorte que Deus lhe deu, pois sem Ele tudo seria pior.

Em Villon está ausente a dramaticidade da “impassibilidade dos céus”, que ao homem dá a idéia, como a própria palavra indica, de não se afligir com o mal. Por que os céus são benevolentes com quem pratica o mal e rigoroso com quem busca o bem? Como funciona essa lógica divina, tão diferente da do homem e que o deixa espantado?

Este tipo de indagação é freqüente e pode-se dizer que é o ponto crucial da obra de Camões, pois percorre toda a lírica e acompanha a viagem épica de Vasco da Gama.     

4. O desconcerto em Os Lusíadas

Um dos aspectos que mais chama a atenção em Os Lusíadas é o discurso do Velho do Restelo. E chama a atenção porque condena o empreendimento, paradoxalmente celebrado em inúmeras oitavas. O que levou Camões a dar voz a tal personagem agourenta? Respondendo a alguns críticos que viam nessa fala uma oposição a D. João III, Hernani Cidade escreve: “O problema não é a oposição de Camões a D.João III, é antes a oposição do Camões que escreve estas estrofes ao Camões que escreve e começa: “Vós portugueses, poucos quanto fortes,/que o fraco poder vosso não pesais;/ vós, que à custa de vossas várias mortes/ a lei da vida eterna dilatais… (VII,3)”.[5]

De onde nasce essa oposição em um legítimo patriota? Seria o escritor português contra as navegações? É evidente que não. É necessário, portanto, analisar a fala do velho do restelo para compreender. Há dois versos que foram comentados por Antonio Sergio e auxiliam a compreender essa discordância:

Com um saber só de experiências feito

Tais palavras tirou do experto peito[6] 

“Ser experto, ter um saber só de experiências feito, é, na boca de Camões o elogio mais inteiro, a garantia de maior valor. (…) Como conciliar, portanto, as duas atitudes do seu poema: a crítica do feito, e a sua sublime exaltação? A meu juízo, basta considerar, primeiramente, a duplicidade do ser humano: traz grandes males a ambição: é porém ela, afinal de contas, que valoriza a nossa vida, que glorifica o nosso afan.” Em seguida, o crítico enumera os diversos erros cometidos na obra do descobrimento.

O Velho do Restelo é, portanto, a voz da dúvida. Um fato que auxilia a compreender essa visão de Camões é que escreveu a epopéia menos de um século após a era das descobertas marítimas. Além disso, viu de perto, quando esteve nas Índias, o modo como a conquista vinha sendo realizada. Camões leu e aprendeu a admirar os grandes nomes da história de Portugal que possibilitaram a formação de uma grande nação. Sabia muito bem os sofrimentos que a conquista supôs e ansiava uma grande glória para o seu povo. Porém viveu e percebeu o declínio de Portugal. A ascensão e queda da pátria foram experimentadas por Camões e, como homem do seu tempo, o escritor percebeu como ninguém este drama, causando a perplexidade demonstrada no episódio do Velho do Restelo.

O desconcerto nada mais é do que a percepção de que “os fatos não sucederam como eu cuidava”. Camões esperava a fama e a glória de Portugal, mas viu que após a ascensão vem a queda.

Além disso, Camões vivenciou não só o declínio da sua nação, mas do modo como a Europa estava organizada. Se a Idade Média viveu um período de relativa união em torno da Igreja Católica, o século XVI foi o palco da desagregação deste mundo. O cisma de Henrique VIII na Inglaterra, o de Lutero na Alemanha e as guerras na Itália foram cantadas por Camões de forma dolorosa no Canto VII:

O míseros cristãos, pela ventura

Sois os dentes de Cadmo desparzidos,

Que uns aos outros dão a morte dura,

Sendo todos de um ventre produzidos?[7]

Já no século XIV, a desagregação dava sinais claros, como afirma o historiador Daniel Rops: “A estrutura medieval do mundo, tal como a atitude cultural e espiritual que constituía as suas bases, vinha-se desagregando. A Igreja já não podia identificar-se com o Ocidente; o ideal da Cristandade estava ultrapassado; o próprio princípio que assegurava à existência humana a sua unidade revelava fendas profundas, e a autoridade espiritual apresentava-se como um entrave de que era preciso livrar-se.”[8]

Camões esperava que a sua pátria, ainda católica, fosse a restauradora desta ordem que ruía. Porém, como ele próprio pode perceber, os erros que estavam sendo cometidos nas conquistas estavam pondo a perder esta liderança imaginada pelo poeta.

5. O desconcerto universal

Camões viveu, portanto, em uma época bastante atribulada. Quando morreu, em 1580, e, principalmente, quando Os Lusíadas foi publicado (1572), ainda não havia uma definição sobre o futuro da sua pátria e da Europa. Portugal atravessaria uma fase de dominação espanhola, a Igreja Católica se reestruturaria a partir do Concilio de Trento, finalizado em 1564, mas com uma longa etapa de maturação das idéias por ele propagadas.

Pode-se dizer que Camões viveu em meio ao desconcerto, religioso, social e também político. Por isso, o seu épico cumpre a função de celebrar as conquistas do seu povo, porém, à primeira vista, causa estranheza o questionamento dessas mesmas conquistas. Entretanto, após a análise dos fatos que marcaram a sua época, aqui esboçados, fica claro que Camões compreendeu o seu tempo com a clareza e o lirismo que somente um grande poeta é capaz.

A universalidade da obra não está, evidentemente, nos feitos do seu povo, mas sim porque retrata uma situação própria não apenas do seu tempo, mas de qualquer era: o homem sonha com obras grandiosas, parte em busca das suas conquistas, mas, em contrapartida, nem sempre esse ideal se mostra como a imaginação o retratou. Como a lição dos EUA no Iraque nos ensinou, não basta conquistar (ou invadir), mas é preciso saber o que fazer com as conquistas.

Segunda Parte – Cinco séculos mais tarde…

1. Os Lusíadas em perspectiva histórica

Fernando Pessoa escreveu Mensagem cerca de cinco séculos após a publicação de Os Lusíadas. Trata, de certa forma, do mesmo tema que Camões: os feitos portugueses nas descobertas marítimas e os grandes nomes desta história.

Entretanto, Pessoa tem um objetivo maior do que apenas recontar a história do maior momento do seu povo. A mudança de título do livro, que de Portugal passou a se chamar Mensagem, atesta que o escritor tinha consciência dos seus propósitos. Fernando Pessoa tem outro objetivo em relação a Camões. Já não se trata de relatar a história de Portugal, mas de uma retomada do espírito que tornou possível as descobertas. Pessoa, portanto, não reconta a história de Portugal, mas, por meio de uma seleção criteriosa de personalidades históricas, indica uma revolução originada no espírito: não quer, obviamente, que Portugal se lance novamente ao mar, mas que as idéias que moveram aquele povo sejam revividas. Pessoa diz que: “Onde quer que se coloque o início da nossa decadência – da decadência resultante do formidável esforço com que realizamos as descobertas e as conquistas-, aí se deve colocar o início da grande ruptura de equilíbrio, que se deu na vida nacional. Com a dispersão por todo o mundo, e a morte em tanto combates, precisamente daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso pequeno povo foi pouco a pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forcas que, em uma sociedade, instintivamente reagem contra todo o avanço.”[9]

Sem entrar na idéia de progresso defendida por Pessoa, pois nos desviaria do assunto principal, o fato é que afirma pensar que houve um momento de desequilíbrio nacional após as conquistas marítimas e que é preciso que Portugal tenha novamente elementos que busquem a aventura, como D. Sebastião:

Louco, sim, louco porque quis grandeza

Qual a sorte não dá.

(…)

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver addiado que procria?[10]

2. Uma Mensagem de esperança

Este é o espírito que Pessoa quis resgatar para a sua nação e que moveu a época das descobertas. Se consideramos o Velho do Restelo como a voz da dúvida, a perspectiva histórica trouxe ao autor de Mensagem a certeza? O poema Mar Portuguez pode ser visto como um diálogo imaginário entre a voz do Velho do Restelo e a Mensagem:

Velho do restelo:

Ó Mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão resaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Na estrofe seguinte a voz muda de tom e responde à primeira estrofe e, de certa forma, ao que Camões não tinha como responder na sua época: todo o sofrimento que acabou gerando o desencanto e a ruína do império foi válido?

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,

Mas nelle é que espelhou o céu.[11]

Em Mensagem ocorre não apenas uma celebração de feitos do passado, mas conclama o seu tempo a reviver o espírito de aventura que moveu a história passada de Portugal. Esse aspecto denota mais do que a intertextualidade das obras, mas também a atualidade de ambas.

Em Os Lusíadas, nos é apresentado um mundo em decomposição, de valores que estão sendo perdidos. Esse choque com um mundo que não é o que esperávamos é inerente a qualquer ser humano e se prolonga durante a vida, fazendo com que Camões diga que “por isso é melhor ter muito visto”[12].

Em Mensagem, reafirma-se o valor das conquistas portuguesas e são exaltados os espíritos que a conduziram: a “loucura” de Dom Sebastião, a fidelidade de Dom Fernando, a ampla visão de Dom Diniz. Porém, como toda a obra de alcance universal, Mensagem ecoa além das terras portuguesas, pois o seu objetivo é despertar o ser humano para a busca de um novo tempo, em que o motor para novas conquistas seja o mesmo que guiou os portugueses para além do Bojador, um sonho repleto de esperança:

O sonho é ver as formas invisíveis

Da distancia imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade.[13]

NOTAS:

[1] Tabacaria, Obra Poética, pág. 366 – Nova Aguilar, 1999

[2] O desconcerto do mundo, Gustavo Corção, pág. 23 – Ed. Agir 1965.

[3] História da Literatura Ocidental I-A, Otto Maria Carpeaux, pág. 394 – Ed. O Cruzeiro

[4] Poemas de François Villon, pág. 161 – Art Editora, 1986 – trad. Péricles E. da Silva Ramos

[5]  Luis de Camões II – O épico, Hernani Cidade, 2ª edição, Pág.124 – Revista da Faculdade de Letras

[6] Os Lusíadas – pág.

[7] Os Lusíadas, Pág. 334 –FTD, s\d

[8] A Igreja da Renascença e da Reforma, Daniel Rops – Pág. 168 – Editora Quadrante, 1996

[9] Obra em Prosa, pág. 596 – Nova Aguilar, 1998

[10] Mensagem, Obra Poética, pág. 75-76 – Nova Aguilar, 1999

[11] Idem, pág. 82

[12] Poesia Lírica, pág. 94 – Editorial Verbo, 1971

[13] Idem, pág. 78

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário e Gestor do Núcleo de Literatura do IFE Campinas.