Das nove às cinco

Opinião Pública | 01/11/2017 | | IFE CAMPINAS

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Não é regra, mas muitas das economias avançadas, como Alemanha, Holanda e Noruega, têm, na pauta de debate, a tarefa de conciliação entre trabalho e outras dimensões humanas, sobretudo a família. Entendo. A experiência história ensina que, na medida em que uma economia desenvolve-se, trabalham-se menos horas, porque sobe a produtividade por hora trabalhada. Então, aquela tarefa torna-se mais viável e, assim, a atividade laboral deixa de absorver todas as energias diárias de uma pessoa.

Já no Vale do Silício, donde poderíamos esperar o mesmo, parece que, na duração da jornada de trabalho, a moda ainda é seguir o modelo da primeira revolução industrial: uma jornada interminável de trabalho. Como foi estampado numa camiseta muito popular nas empresas start-up, “9 to 5 is for the weak”. O que em outros países é uma aspiração, ali, na Califórnia, é para os fracos, para aqueles que não aspiram triunfar ou para os trabalhadores candidatos ao seguro-desemprego.

Em outras palavras, é preciso sacrificar tudo no altar do trabalho. Família, férias, hobbies, amizades e até o ócio (no sentido grego da expressão, por favor). Dessa maneira, ficará demonstrado que o sujeito é um trabalhador comprometido com a empresa, pois sua jornada laborativa só termina quando acaba. Muitos chamam isso de “cultura da empresa”, o que, na prática, não passa de pressão psicológica ou assédio moral, como no caso do Jeff Bezos, que parece ter um certo apreço por hábitos laborais que asfixiam a vida de seus empregados.

O engrandecimento contemporâneo da dimensão laboral decorre da conjunção íntima de dois fatores: o enaltecimento teórico do poder transformador do trabalho, preconizado paradigmaticamente por Descartes, e a verificação efetiva desse mesmo poder, encarnado, ao passo dos séculos, num progressivo e efetivo domínio sobre a natureza.

Vivemos no auge dessa conjunção e, hoje, o trabalho é consagrado como elemento estruturador de toda a civilização ocidental. A nobreza e o status que dele derivam adquirem cada vez mais importância e, como efeito, passam a desentranhar os campos de sua natureza íntima e de sua índole profundamente pessoal.

Nesses campos, podemos proporcionar bens ou serviços necessários e úteis, transformar a natureza em seu benefício, desenvolver nossos talentos naturais, aperfeiçoar uma série de virtudes, servir aos demais e, em coopereção com eles, agir em prol do bem comum. Sob esse ângulo, o trabalho toma um lugar tão central na vida humana, a ponto de ser quase inconcebível uma vida sem trabalho. Como diz Camus, sem trabalho, toda a vida apodrece, mas quando o trabalho é anódino, a vida se asfixia e morre.

É preciso trabalhar duro para se conseguir um lugar ao sol. Contudo, viver para trabalhar – e não trabalhar para viver – acaba por nos conduzir para uma espécie de cegueira para as realidades mais propriamente humanas, aquelas justamente ligadas às dimensões do espírito humano, provocada por um radical ofuscamento que o resplendor deslumbrante do poder transformador do trabalho produz em cada um de nós. O trabalho deixa de ser um valor-útil e vira um valor-fim.

A conversão de um valor-útil num valor-fim, no dizer de Morente, é um erro ou uma aberração estimativa. A mutação do meio em fim acarreta os funestos efeitos já preconizados por Tomás de Aquino, segundo o qual, se aquilo que é para um meio, busca-se como um fim, desfaz-se e destrói-se a ordem da natureza.

Aplicada essa advertência ao trabalho humano, podemos declarar que, quando o trabalho é convertido no objetivo supremo em relação ao qual o homem subordina toda sua atividade e toda sua existência, desvirtuam-se tanto a natureza do trabalho, quanto a natureza do ser humano.

Podemos nos entregar à aventura de transformação das coisas materiais pelo trabalho, mas devemos fazê-lo em busca do aspecto transcendente que corresponda às nossas exigências interiores mais profundas. Quando o homem não é reduzido à uma versão unidimensional de sua realidade, de fato, o trabalho liberta.

Quanto a mim, convidaria os jovens do Vale do Silício a trabalhar intensamente das nove às cinco e, a partir das cinco, a trabalhar o espírito. Não sei se aceitariam. Afinal, enfrentar nossos demônios, depois de um dia de labor, não é para os fracos. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 01/11/2017, Página A-2, Opinião.