Como viver?


Recentemente, numa disciplina para introduzir os alunos de pós-graduação no mundo da ética e realçar suas distinções ao longo da história do pensamento, fiz a eterna pergunta do famoso romance russo Crime e Castigo, uma das mais famosas obras literárias de Dostoievski: “Por que eu não deveria matar uma velha agiota a quem devo algum dinheiro?”.

Um sujeito temente a Deus responderia que não o faria para não ser condenado ao inferno, pois matar fere um mandamento do Decálogo. Um sujeito mais pragmático admitiria que ninguém gostaria de ser futilmente morto por outra pessoa e, por isso, não só se absteria de matá-la, mas tal conduta ainda deveria ser punida socialmente.

Um sujeito kantiano diria que matar alguém, nessas condições, não estaria de acordo com o postulado apriorístico segundo o qual o homem é um fim em si mesmo. Se a resposta viesse de algum homem grego do século V a. C., ele diria que não mataria, porque teria que viver consigo mesmo pelo resto de seus dias e, logo, não gostaria de estar sempre na companhia de um assassino.

A mesma resposta negativa com diferentes justificativas, mas todas elas sugerem que o foco esteja no caráter do devedor da velha agiota. “Como viver?” – é a pergunta de Sócrates que inaugura na Grécia do século V a investigação das questões humanas, feita na linha de uma ideia de moralidade pessoal e em tom reflexivo.

A questão socrática indica que o plano ético permeia as ações humanas, porque o homem é um ser livre e, sem liberdade, não há ética. A liberdade supõe a operação sobre alternativas contingentes e variáveis: diante das opções postas na mesa, avaliamos e escolhemos. A decisão supõe a possibilidade e a necessidade de se estimar as coisas e as ações humanas para o atendimento de nossas demandas.

Nesse momento em que estimamos que isso é bom e aquilo é ruim, então, adentramos na esfera do valor. Eis a sacada socrática. Na medida em que se escolhe, avalia-se para obter a consciência daquilo que é preferido. Ao se decidir entre duas ou mais opções, pondera-se, sob algum prisma, o que é melhor em relação à outra e, depois, opta-se por um caminho apenas.

Contudo, não há fórmulas matemáticas ou manuais acabados na órbita ética. É o campo do encontro do indivíduo com seus deveres prático-existenciais, donde ninguém está a salvo. A medida da ética é sempre uma conquista particular, uma experiência prudencial e uma atitude intransferível de cada um.

Podemos partilhar dificuldades, aconselharmo-nos, ler e instruir-nos. Sentir e aquilatar o que intuem nossa mente e nosso coração. Mas, ao final, qualquer que seja a resposta, o outro será o destinatário de nossa ação e, por isso, aquela medida é a forma mais apropriada de se exercer a responsabilidade moral, a irmã-siamesa da liberdade.

A ética permeia não só o agir pessoal, mas também o agir profissional dos indivíduos. No Direito, por exemplo, seu conhecimento não pode ser detidamente elaborado, cuidadosamente meditado e humanamente vivido sem que as questões de ética estejam presentes no ambiente de formação e de qualificação para o exercício das profissões jurídicas, porque os membros desse ramo devem substituir a violência e a arbitrariedade pela consecução do justo concreto das pessoas, ao mesmo tempo em que promovem a paz que toda sociedade necessita para seu desenvolvimento harmônico.

A ética também navega por outras dimensões profissionais de nossa realidade, como a política e a economia. Mas, hoje, ficaremos por aqui. Num mundo dividido entre o individualismo consumista e o coletivismo estrutural homogeneizante, convém resgatar a ética em suas duas principais dimensões: a liberdade individual e a reciprocidade ao outro.

Se nossa experiência oscila entre a dinâmica da virtude e do vício, do acerto e do desacerto, da luta e do sossego, do racional e do irracional, nesse resgate ético, é importante seguir o conselho aristotélico: não se estuda ética para se saber o que é a virtude, mas para se aprender a ser virtuoso.

Por isso, é acertada a pergunta “Como viver?” e não “O que é viver?”. Dessa maneira, teremos mais chance de saber que matar uma velha usurária não é a coisa certa a se fazer. Por quaisquer dos motivos anteriores. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/03/2018, Página A-2, Opinião.