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Opinião Pública | 31/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Às vezes, tenho a impressão de que festa com data marcada, como a da virada de ano, começa e não vira nada. Quem sabe vem daí a razão do provérbio popular, segundo o qual o melhor da festa é esperar por ela. De fato, a véspera deixa a imaginação fora de si. Depois, surge a dura realidade e que fica sempre aquém do estratosférico horizonte criado pela imaginação alada. Para o mundo imaterial dos sonhos, vale a máxima do mundo mais aqui embaixo da gulodice: os olhos são maiores que a barriga.

Mais um ano se passou. Pensamos e não fizemos. Fizemos sem pensar. Pensamos demais e fizemos de menos. Ou, ainda, nem pensamos e nem fizemos. Enfim, cada um que se curve e reflita sobre a vida que levou no ano passado. E uma boa forma de começar nosso exame pode ser, simplesmente, agradecer. Sim, um espírito de gratidão é capaz de dar outro sentido à nossa vida.

A gratidão, esse sentimento puro e desinteressado, faz com que o homem converta-se a si mesmo em devedor daquele de quem se recebe um dom. É uma intensificação da virtude da justiça, porque busca afirmar ao outro pagando-lhe amorosamente o devido a ele. Haver recebido põe o homem frente à justa obrigação de devolver ao menos uma parte do dom recebido. Muitas vezes este dever se vive, mais radicalmente, como ato prazeroso e espontâneo de agradecimento.

Nota-se, assim, que a gratidão, no mundo de nossa existência, tem uma dimensão social, ética e estética. Sob as mais variadas formas, ponto que deixo ao exclusivo gosto de cada um. Existem agradecimentos polidos (“Fico-lhe obrigado por tanta gentileza”) e não polidos (“Valeu!”). Agradecimentos masculinos (“Obrigado!”), femininos (“Obrigada!”) e politicamente corretos (“Obrigadx!”). Agradecimentos elegantes (“Estou ternamente agradecido!”) e comuns (“Agradeço a você!”). Agradecimentos antigos (“É alta a mercê que me fazes!”), modernos (“Obrigado!”), pós-modernos (“Obrigado eu!” e, na forma meio descortês, “Obrigado você!”) e virtuais (“#‎obrigadooogalera!”). Agradecimentos curtos (“Grato!”) e longos (“Muitíssimo obrigado!”).

Por falar em forma, para além de um certo formalismo vazio, bem ao gosto kantiano, que o cotidiano tende a arremessá-las, todas essas expressões, à primeira vista, tão inofensivas e pueris, incidem, originariamente, sobre aquelas importantes dimensões de nossa existência e, muitas vezes, mostram-se autênticas mensagens cifradas, por vezes infinitamente sutis, surpreendentes e sábias, como sempre nos ensinaram a prosa, a poesia, a filosofia, mas, sobretudo, a linguagem, por meio da etimologia e da semântica.

Sob esse ângulo, o dinamismo da linguagem pode minar o sentido mais profundo do “obrigado” que, como outras expressões do cotidiano, é depositário da destilação das grandes experiências esquecidas. E se quisermos resgatar aquele sentido que elas encerram, devemos voltar-nos, criticamente, para esse depósito. Sob certa forma, é uma espécie do “eterno retorno” de Nietzsche, nem que seja ao dicionário, responsável por detectar e registrar tais sentidos.

Então, deixo por aqui meus agradecimentos a todos que contribuíram para minhas conquistas pessoais em 2014, mas, principalmente, para os leitores cordatos que interagiram comigo depois de cada artigo publicado. Cada qual, à sua maneira, sempre me ensinou um pormenor virtuoso a ser incorporado no baú das minhas ideias. Agradecimentos polidos, não polidos, masculinos, femininos, politicamente corretos, elegantes, comuns, antigos, modernos, pós-modernos, virtuais, curtos e longos e outros mais.

Este singelo agradecimento, como epílogo de 2014, serve, também, como prólogo de 2015, dessa vez, na expectativa de realização de mais uma “contribuição demográfica” à humanidade. Sempre em companhia dos livros, que são meu último reduto em busca de uma vida ainda não vivida: tal como os mendigos de Oxford, sempre bêbados (no meu caso, não necessariamente) e agarrados aos opúsculos.

Acabo por aqui, porque estou percebendo que o agradecimento está ficando muito extenso, a ponto de pretender conquistar a atenção de uma leitura maior que uma xícara de café que, se for da Nespresso, deveria ser ingerido às colheradas. Tal como uma sopa e para o desespero dos baristas mais ortodoxos. Por fim, lembro ao leitor que o colunista merece umas férias e a coluna regressa apenas em fevereiro.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 31.12.2014, Página-A2, Opinião.